Rumamos a este Mosteiro da Batalha, mandado erigir em acção de graças pela conquista da liberdade de nos orientarmos enquanto povo e nação, para comemorar um outro acontecimento bélico, de consequências bem trágicas: o nonagésimo sexto aniversário da batalha de La Lys, carnificina escusada, mas efeito lógico daquela mentalidade que antepõe os rancores, ódios e interesses próprios à boa harmonia, à solidariedade e à paz. Rumamos também, pela septuagésima oitava vez, ao túmulo do soldado desconhecido, em gesto de reconhecimento e gratidão a todos aqueles que, consciente ou implicitamente, deram tudo o que tinham em prol dos outros: a própria vida. Para além das convenientes cerimónias militares, sempre avivadoras da memória colectiva, fazemo-lo também com a celebração desta Eucaristia. Para os crentes, ela constitui não só sufrágio para quem já partiu ao encontro da «pátria grande» da eternidade, mas, para nós os vivos, interpelação ou repto a que nos configuremos com Aquele que celebramos.

De facto, celebramos o Senhor Jesus Cristo, prefigurado na pessoa de Jeremias, da primeira leitura. Neste texto, assistimos à confissão de quem descreve as suas dores e angústias face à missão a cumprir e aos planos destrutores dos seus adversários. Mas também tomamos contacto com um verdadeiro hino de confiança em Deus. É que o profeta acredita no bom êxito final ou que o bem há-de vencer o mal. Por isso a leitura termina com esta expressão: “A vós, Senhor, confio a minha causa”. O que deu mote para o salmo responsorial: “Senhor, meu Deus, em vós espero”.

Se aplicarmos isto a Jesus Cristo, nas proximidades da sua Páscoa, contemplamos Alguém que realiza obra redentora em benefício de todos, mas que, curiosamente, não é aceite por todos e até é recusada por muitos. Por isso, a certeza de que essa grande obra comporta sofrimento e dor. Mas redunda em salvação universal. Mesmo para aqueles que o não sabem. Como, aliás, reconheceram os simples deste trecho do Evangelho acabado de proclamar: “Nunca ninguém falou [e fez] como este homem”.

Neste nosso mundo, que ainda não atingiu a plenitude do humanismo, os homens e mulheres militares ou pertencentes às forças de segurança sabem bem como é difícil e causa sofrimento esta sublime tarefa da liberdade e da paz. E também não desconhecem que ela é fruto de um coração sensível e não da brutalidade da violência. Por isso, mais que ninguém, opõem-se ao fragor das armas. Se, em caso extremo, tiverem de as usar para defender valores inegociáveis, dirigem o seu pensamento para as vítimas, para as destruições e para a dor causada. Contribuem fortemente, portanto, para criar uma nova cultura do humanismo, do respeito e da solidariedade entre as pessoas e entre as nações. Colocam-se na linha da frente da defesa daquela mentalidade que o Papa João Paulo II assim referiu: “Já deveria ser evidente para todos que a guerra, ressalvando a licitude da defesa contra o agressor, como meio para resolver as controvérsias entre os Estados foi excluída pela consciência de grande parte da humanidade, antes mesmo que pela Carta das Nações Unidas. O vasto movimento contemporâneo a favor da paz, a qual, segundo o ensinamento do Concílio Vaticano II, não se reduz a uma «mera ausência de guerra» (GS 78), traduz esta convicção de pessoas de todos os continentes e de todas as culturas”.

Ora, é aqui que recebe pleno assento a dimensão religiosa. Sem excluir, de maneira nenhuma, que há pessoas sem fé tão empenhados na causa da paz como os crentes, estes, se cristãos, sabem bem que, na nossa perspectiva, a paz passa por mediações e contributos por parte daqueles cujo coração é habitado pelos sentimentos de concórdia, de fraternidade e de amor, e jamais pelo ódio, pelo ressentimento ou pela retaliação. É nesta perspectiva que dizemos que a paz é dom de Deus. E dom que deve ser invocado, insistentemente, pela oração e pela penitência. É que, sem a purificação e a conversação do coração não há paz. Nem sequer connosco mesmos. Muito menos com os outros, a começar pela própria família. E, obviamente, muito menos ainda, com quem não participa de dimensões tais como nacionalidade, língua ou cultura.

De resto, a experiência ensina-nos que os muitos males que nascem desmesuradamente do egoísmo de pessoas e grupos laçam raízes na cultura que afasta Deus da sociedade ou na mente daqueles que O procuram fazer desaparecer do horizonte da sua vida. É que, “sem Deus, nada se explica e tudo se justifica. Construir uma sociedade ignorando a transcendência é construir um mundo que termina” por negar os direitos humanos e, consequentemente, por aniquilar “os próprios cidadãos” (Juan del Rio, Maria, columna firme de nuestra fe).

A propósito da sociedade nova a edificar, vale a pena citar o Papa Francisco: “A Igreja, advogada da justiça e defensora dos pobres […], deseja oferecer a sua colaboração a todas as iniciativas que possam significar um verdadeiro desenvolvimento de cada homem e de todos os homens. Queridos amigos, certamente é necessário dar pão a quem tem fome […]. Mas há ainda uma fome mais profunda: a fome de felicidade que só Deus pode saciar. Fome de dignidade. Não há uma verdadeira promoção do bem comum, nem um verdadeiro desenvolvimento do homem, quando se ignoram os bens imateriais ou pilares fundamentais que sustentam uma nação: a vida […], a família […], a educação integral […], a saúde […] e a segurança, na convicção de que a violência só se pode vencer partindo da mudança do coração humano” (Discurso de 27/07/2013).

Caros cristãos, servidores da liberdade e da segurança dos portugueses, neste aniversário da Batalha de La Lys e na romagem ao túmulo do soldado desconhecido, termino fazendo minhas as palavras do meu colega Arcebispo Castrense de Espanha: “Necessitais da mística da fé para que nunca vos falte a valentia na acção, a coerência de vida em todas as situações da profissão, a generosidade na camaradagem e o sentir-se sempre orgulhoso do dever bem cumprido” (Juan del Rio, ibid., 56).

Deus vos ajude.

Manuel Linda