Ele é a nossa paz” (Ef 3, 14)

Caríssimo homens e mulheres que servis a paz, a liberdade e a tranquilidade dos portugueses nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança,

no conhecido e belíssimo conto “Os três reis do Oriente”, a grande poetisa católica Sophia de Mello Andresen escreve que, já madrugada, depois de um lauto banquete e de os convivas se terem retirado, o rei Baltasar deu umas voltas a pé, nos jardins do palácio, para rememorar a festa acabada de acontecer e ajudar a difícil digestão. É então que depara com um homem jovem, encostado a um muro. Pergunta-lhe quem é. Mas este apenas consegue balbuciar que tem fome. O rei imediatamente se prontifica a servir-lhe toda a comida que ele deseje. E manda-o entrar para o palácio. Porém o mendigo imaginou que, estando indocumentado em propriedade real, certamente seria preso. Desconfiou do rei e fugiu em louca correria. Baltasar ordenou aos seus guardas que procurassem o jovem esquálido, esfomeado e roto e que o convencessem que o rei apenas pretendia dar-lhe de comer. Ao fim do dia, os guardas regressaram dizendo que não conseguiram identificar tal homem, pois mais de metade da cidade se encontrava em semelhantes condições. E o rei sofreu com a realidade que ele desconhecia.

Na manhã seguinte, Baltasar foi à esplanada dos templos pedir o auxílio dos deuses para os pobres e sofredores. Aproximou-se de todos os altares, dos dos desuses da riqueza, do poder, da glória, do comércio, da fertilidade, da sabedoria… Mas em nenhum viu referência aos sofredores. Encontrou os responsáveis pelos templos e pediu-lhes: “Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e ofendidos para que eu o implore e adore”. Ao fim de longo silêncio, responderam: “Desse deus nada sabemos”. Nessa noite, Baltasar subiu ao terraço do palácio, olhou para o céu, na direcção de uma estrela mais brilhante e que se movimentava lentamente e rezou assim: “Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?”.

Caros amigos, não é da minha maneira de ser passar a vida a dizer mal do nosso mundo. Mas há que encarar a realidade de frente. E o que por aí vemos é que muitos se prostram demasiadamente diante dos altares dos falsos deuses, dos ídolos que não libertam, mas oprimem. Por isso, não chegam a contemplar o verdadeiro rosto de Deus porque O não descobrem no irmão carente. Não «vêem» a Deus porque fecham os olhos aos sofrimentos dos irmãos ou não suportam o que vêem porque se privam da força d’Aquele que redime o mal pela sua cruz. Cultuam ao deus do êxito. Como tal, do Deus verdadeiro têm de confessar como os pagãos: “Desse deus… nada sabemos”.

A forma como estamos a celebrar o Natal faz-nos compreender isto. Deixamo-nos possuir por um sem-número de preocupações e correrias e… nem sequer pensamos que o Natal é o nascimento do Menino Jesus, o Filho que o Pai envia a visitar o seu povo; fazemos iluminações e a nossa alma continua às escuras; armamos presépios e fechamos o coração ao Deus-Menino; colocamos lá as figuras da família de Nazaré e nada fazemos para que a nossa se torne mais sólida; representamos os pastores pobremente vestidos e em nada nos comprometemos com a grande multidão dos carenciados; suspendemos um anjinho de barro com a faixa onde se lê “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Ele ama” e nem damos glória a Deus pela prática dos actos religiosos –nem sequer pela Missa de Natal- nem somos construtores da paz porque o seu fermento não reside dentro de nós. Foi assim no passado e é assim hoje; dá-se isto em nós e acontece no mundo que nos rodeia. Porque se cultuam falsos altares, tivemos e temos de conviver com «eras do massacre», com o terror em estado puro, quer esse terror se chame «Grande Guerra», da qual comemoramos o centenário, quer se trate do «califado islâmico do Isis». Seria ocasião de voltar às palavras de Baltasar: “E como poderei suportar o que vi se não te vir?”.

Alguns anos depois do verdadeiro Natal, Paulo de Tarso, aquele que antes «não via porque não O via» e depois que O viu passou a testemunhá-l’O apostolicamente, ao rememorar a obra e a acção de Cristo, escrevia assim: “Ele é a nossa paz. Ele destruiu o muro de inimizade entre os povos. […] Ele fez um homem novo, edificou a paz reconciliando-nos com Deus” (Ef 2, 14-16). Sim, a paz, esse qualificativo supremo do homem novo, só se constrói mediante a abolição dos muros que nos separam dos irmãos e da sua sorte e pela reconciliação com Deus, expressa numa fé vivida, cultivada e celebrada nos sacramentos.

Caros membros do Ordinariato Castrense, se a vossa profissão é serdes «trabalhadores da paz», não vos esqueçais: começai pelo difícil trabalho de a edificar em vós, na vossa família e com os vossos camaradas. Que este Natal de 2014 seja vivido sob o signo da autenticidade. Não matemos o Natal! Respeitemos a verdade das coisas e dos nomes e não chamemos Natal ao nosso materialismo, ao nosso consumismo, à nossa falta de solidariedade, ao nosso ateísmo prático. Limpemos o pó e as impurezas que se agarraram às nossas celebrações para que brilhe aquilo que as motiva, a única razão que lhes deu origem. E a razão é esta: procedermos à abertura de coração a um Deus que nos ama tanto que, «por nós homens e para nossa salvação», veio habitar entre nós para nos reconciliar uns com os outros e nos conduzir à verdadeira intimidade com Deus Pai. No mínimo dos mínimos, neste Natal, seremos capazes de exprimir esta verdade num gesto de carinho aos outros e na prática religiosa da Missa e, porventura, da confissão e da comunhão?

A todos, votos de santo e feliz Natal, abençoado pelo Autor da nossa salvação.

 

+ Manuel Linda

Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança