Realizou-se hoje, dia 5 de Novembro, uma Celebração Litúrgica na Igreja de Santa Maria de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, presidida pelo Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, D. Rui Valério, e concelebrada por praticamente todos os Capelães da Zona Pastoral de Lisboa.
 
A Cerimónia serviu parahomenagear aquelas e aqueles que serviram Portugal nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança e que agora vivem na eternidade, tendo vencido os limites e as provações do tempo, tal como referia o Prelado na sua homilia.

Memória“, “Comunhão” e “Esperança” foi a tríplice vivência que o Bispo Castrense sublinhou ao celebrar aqueles “verdadeiros Bem-Aventurados por terem alcançado o glorioso triunfo da vida eterna, como na vida terrena haviam triunfado no cumprimento do dever, na dedicação aos outros e no amor e serviço à Pátria“.

Participaram na Celebração a Secretária de Estado de Recursos Humanos e Antigos Combatentes, o Chefe de Estado Maior do Exército, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o Presidente da Academia de Marinha, o Chefe da Casa Militar do Presidente da Republica, o Secretário-Geral do Ministro da Defesa Nacional, o Secretário-Geral da Administração Interna, o Director-Geral de Recursos de Defesa Nacional, o Presidente da Liga dos Combatentes, o Vice-Chefe de Estado-Maior da Armada, o Segundo Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana, o Director Nacional da Policia de Segurança Pública, entre muitos outros militares e civis.

A Celebração contou com uma Guarda de Honra ao Altar constituída por cadetes dos três Ramos das Forças Armadas e das Forças de Segurança e a Animação Litúrgica esteve a cargo do Coro da Academia Militar. Alunos dos Pupilos do Exército e do Colégio Militar serviram ao altar como acólitos e os Toques de Homenagem aos Mortos foi executado pela Fanfarra do Exército.

Transcrevemos a Homilia de D. Rui Valério.

 
Homillia da Missa dos Fiéis Defuntos
 
1. O sentido da nossa presença, hoje, brota do desejo profundo de homenagear aquelas e aqueles que serviram Portugal nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança e que agora vivem na eternidade, tendo vencido os limites e as provações do tempo. A sua nova condição é de verdadeiros Bem-Aventurados por terem alcançado o glorioso triunfo da vida eterna, como na vida terrena haviam triunfado no cumprimento do dever, na dedicação aos outros e no amor e serviço à Pátria. Por isso, a nossa homenagem adquire uma tríplice vivência, dando a este dia uma coloração de eternidade, projetada nas realidades temporais.
 
2. Primeiro, fazemos memória, recordamos aquelas e aqueles que nos precederam e dos quais nós somos, de certo modo, o fruto. Somos o fruto do seu empenho e da dedicação com que abraçaram e desempenharam a sua missão a servir Portugal. Recordamos o quanto eles continuam ainda vivos, não só nas obras que realizaram e que ainda persistem, nem somente na nossa saudade, mas também nos valores que nos legaram, nos caminhos da honra que percorreram, no serviço de dedicação à Pátria que viveram, bem como nas atitudes que nós assumimos e nos continuam a guiar na nossa missão, iluminando as nossas vidas.
 
A memória é aquilo que fortalece um povo porque o radica num caminho, numa história e numa vida que o precederam. A memória faz com que compreendamos que não estamos sozinhos, que somos uma nação com uma história, um passado, uma marca já deixada no mundo. Através da memória, nós alcançámos no passado a raiz do que somos no presente e, por isso, só a memória nos abre à esperança, somente o sentido do passado nos oferece um terreno sólido para construir o futuro. Nessa medida, os que terminaram o seu curso nas estradas do tempo e já entraram na glória da eternidade ainda continuam vivos no meio de nós.
 
Se o prémio do pecado foi a morte, como escreve a Escritura (cf Rm 6,23), então o prémio do serviço, da dedicação e do amor é a eternidade. E hoje recordamos as pessoas e as suas obras, pois através dos seus feitos, alcançaram uma coroa incorruptível. Nós próprios nos sentimos pedras vivas sustentadas pela argamassa do heroísmo e da dedicação à pátria dos que nos precederam nesta vida. Eles continuam a inspirar-nos.
 
3. Em segundo lugar, construímos comunhão. Na Eucaristia realiza-se a máxima comunhão uma vez que reúne num mesmo e único mistério a terra e o céu, o temporal e o eterno. Enquanto celebração da morte e ressurreição de Cristo, participa nela quem já goza da condição de nova criatura, na qual habita a vida divina.
 
Nesta medida, realiza-se, na Eucaristia, a mais sublime solidariedade entre nós e aqueles que nos precederam, porque nós como eles e com eles estamos vivificados pela mesma vida eterna que recebemos no Batismo e, como eles e com eles, contemplamos e celebramos o mesmo Senhor e Rei do Universo no seu eterno ato de se oferecer perpetuamente ao Pai por amor. Homenagear em ação de sufrágio os que já vivem na eternidade coloca-nos numa atitude de verdadeira comunhão com eles, por meio da qual transcendemos a mera recordação e nos descobrimos companheiros, no sentido etimológico da palavra, ou seja, “comensais do mesmo pão”. E o pão que todos partilhamos à volta da mesma mesa é Cristo, que a todos oferece a vida plena.
 
4. Em terceiro lugar, vivemos este dia na mais deslumbrante e profunda esperança. Fortalecidos pela força da camaradagem e iluminados pela Luz da Ressurreição, podemos contemplar o rosto dos que nos precederam e dizer com Fernando Pessoa:
 
A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
 
A morte não nos aprisiona num amargo bloqueio de perspetivas, mas abre-nos para horizontes de vida em plenitude, que não é uma cópia infinita do tempo presente, mas algo completamente novo: através dela, é-nos dada a graça de contemplar, no horizonte da história, um novo céu e uma nova terra.
 
5. Sentimo-nos tocados fundamentalmente pelo paradoxo implícito na realidade da própria morte. Tal paradoxo tem sido equacionado não só pelas culturas de todos os tempos, como também por cada pessoa quando se questiona acerca do sentido da vida. De facto, como pode a morte ter a definitiva palavra sobre o ser humano e a sua própria vida quando esse mesmo ser humano acalenta em si a sede de infinito, possui um desejo de perfeição acima de todas as possibilidades históricas, transporta rasgos de eternidade e intuições de imortalidade? Como pode ocorrer uma conciliação entre os mais profundos sonhos humanos, que apontam para o infinito, e a realidade da morte que é a materialização da finitude?
 
A intuição dos gregos antigos foi genial, se bem que apenas ofereça perspetivas sobre o seu significado. De entre a maneira de nomear o homem, os gregos tinham duas palavras antropos ou aner, mas eles raramente as empregavam, preferiam utilizar para o ser humano o atributo mortal. A morte era a sua condição fundamental e determinante. Para eles, não se morria porque se tinha alcançado a velhice ou se tinha contraído uma doença ou sofrido um acidente… A sua visão era exatamente o oposto: porque é mortal, o ser humano envelhece, adoece e sofre acidentes. Esta perspetiva, se, por um lado, criava uma visão trágica da vida, também introduzia, no tecido da existência humana, a ideia do limite e, como tal, da ponderação.
 
6. Como falar de algo de que não se tem experiência direta, como é o caso da morte? Paradoxalmente, na própria Bíblia a morte nunca é um fim em si mesma, mas sempre um meio, como se lhe faltasse aquela consistência indispensável para ter um estatuto autónomo. E, de facto, a morte não existe em si, existe sempre em alguém ou em alguma coisa. Por isso, falamos da morte de alguém ou de alguma criatura… Mas nunca ninguém viu o rosto da morte. Assim, na Bíblia, a morte surge quando Caim mata Abel por inveja e ciúme (cf Gn 4), ou seja, a morte é a materialização de um sentimento demolidor.
 
No Novo Testamento, por referência a Jesus Cristo, a morte é referida como meio, nunca como fim: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância… Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Vim para dar a minha vida pelos irmãos; ninguém ma tira mas sou eu que a dou» (Jo 10, 10. 18). Na Escritura, quando se pensa ou se refere a morte, imediatamente se pensa em quem morreu. Possui, pois, um caráter relacional, e, como tal, a sua compreensão e eventual resolução terão de ser procuradas fora dela, em alguém ou em alguma coisa. A morte não pode ser a fonte do seu próprio significado e do seu próprio sentido: temos de o procurar em alguém ou alguma coisa. Este é o caminho que a palavra de Deus nos apresenta, revelando que o trajeto de busca de sentido nos conduz a Cristo.
 
De acordo com os textos do Novo Testamento, também não é possível falar de Cristo sem referir a sua morte. E se, por um lado, se revelou um acontecimento trágico, ignominioso e devastador, por outro lado, permitiu realizar a mais maravilhosa obra alguma vez concluída sobre a terra: a dádiva total da própria vida por amor. É, portanto, na mais dramática e, de certa forma, abjeta realidade do mundo que tem lugar a mais bela e significativa ação alguma vez efetuada à face da terra, o amor extremo até ao limite da dádiva da própria vida.
 
7. O cristianismo, substancialmente, tem na morte o seu lugar fundador. Na morte como entrega, doação, oferta de si mesmo, Cristo revela-se o libertador de todo a opressão, incluindo a tirania da própria morte. Uma redenção da morte que não é teórica ou meramente doutrinal, mas existencial. Ou seja, o próprio Cristo, Filho de Deus, assumiu a morte e passou através dela para o regaço de Deus, onde a morte já não cabe.
 
É célebre o seguinte adágio dos Padres da Igreja: «o que foi assumido pelo Filho de Deus também foi redimido». Assim sendo, e porque Cristo assumiu a morte até às últimas consequências, a condição humana foi resgatada da morte enquanto realidade definitiva para a qual não havia solução. A própria identidade da morte transformou-se radical e profundamente. A principal gramática da nova condição da morte vem expressa pelas palavras por Ele pronunciadas sobre a Cruz «Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito» (Lc 23, 46). Tais palavras não só definem os moldes da Sua vida, mas identificam a Sua própria morte como doação e entrega. Com Cristo, entrou inegavelmente na história uma nova compreensão acerca da morte, que perde o seu estatuto de poder avassalador sobre tudo aquilo em que toca e torna-se uma dádiva, uma oferta, uma doação de si mesmo por amor.
 
8.Nesta nova compreensão da realidade, “a morte abre-se à vida em plenitude, que não é uma cópia infinita do tempo presente, mas algo completamente novo. A fé diz-nos que a imortalidade verdadeira à qual aspiramos não é uma ideia, um conceito, mas uma relação de comunhão plena com o Deus vivo: é estar nas suas mãos, no seu amor infinito e tornar-nos um só n’Ele juntamente com todos os irmãos e irmãs que Ele criou e redimiu, bem como com a criação inteira. A nossa esperança repousa no amor de Deus que resplandece na Cruz de Cristo e faz ressoar no coração as palavras de Jesus ao bom ladrão: «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc23, 43). Esta é a vida que alcançou a sua plenitude em Deus; uma vida que agora só podemos entrever, tal como avistamos o céu sereno através da neblina.” (Papa Bento XVI) Mas que os nossos camaradas já desfrutam e gozam na perpétua alegria da bem-aventurança eterna.
 
Como expressão da solidariedade que exaltamos nesta homenagem, façamos nossos os versos de Rilke:
 
«Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Um morrer que venha dessa vida
que reparte por nós amor, sentido e aflição.
Porque nós somos apenas a casca e a folha
A grande morte, que cada um traz em si,
é o fruto à volta do qual tudo gira.» Amen!