A 10 de Outubro, o diário italiano LA CROCE publicou uma longa entrevista com o Ordinário Militar para Portugal a propósito do centenário das aparições de Fátima. De seguida, transcrevem-se algumas passagens, em tradução para o português.

 La Croce: Sob o ponto de vista da fé e da paz, que é que mudou no mundo com a mensagem de Fátima?

Manuel Linda: Infelizmente, no bem, não houve as mudanças desejáveis. Nos inícios do século XX, a mentalidade dos dirigentes estava fortemente centrada no materialismo, no positivismo e ate no ateísmo. Era o ponto de chegada mais alto do iluminismo do século XVIII. Claro que, nessa cultura, Deus não tinha direitos de cidadania. Por isso, como sabemos, ao conceito filosófico de “morte de Deus” seguiu-se a efectiva “morte do homem” de que as guerras mundiais constituíram expressão.

É neste contexto que se insere Fátima. As aparições constituem uma advertência materna, uma intervenção amorosa do Céu em favor da humanidade, um recobrar de esperança numa mundo que precisava dela. E é por este motivo que a Igreja tanto valoriza estas aparições.

 

Possui real importância para o mundo uma mensagem dirigida a pastorinhos que nem ler e escrever sabiam?

Em Fátima existe um texto e um contexto. O texto é o diálogo da Senhora com Lúcia. É feito num registo pueril. Doutra forma, os Pastorinhos não entenderiam nada. Mas o contexto é altamente teológico. Logo na primeira aparição, os videntes sentem-se envolvidos, física e existencialmente, “na luz de Deus”. E eles dão-se conta de que a paz, as boas relações sociais, a fraternidade universal somente se podem construir no âmbito desta luz. Quando se fala em penitência, conversão e oração, particularmente a favor dos pecadores, aponta-se para esta nova ordem de valores.

Eis, pois, a “actualidade” de Fátima: ela faz memória de um tempo que não importa repetir (as atrocidades da primeira grande guerra) e é profecia de uma nova relação com Deus, origem e garantia de uma outra atitude existencial para com os irmãos.

 

Há quem diga que o «segredo de Fátima» ainda não foi completamente revelado…

Para além do que já foi revelado pela Santa Sé, tudo o que se diga sobre o segredo de Fátima é pura especulação. E nós sabemos que há mentes pouco sadias. Particularmente neste tempo de medos e ameaças mundiais. Mas fiquemos tranquilos: todo o segredo foi já revelado e na sua totalidade.

 

Num dos escritos da Irmã Lúcia diz-se que se Portugal aprovasse o aborto teria muito que sofrer. E Portugal aprovou-o como, praticamente, em toda a Europa…

Hoje não há fronteiras no que diz respeito à cultura política e à de massas. Por isso mesmo, infelizmente, entre nós acontecem as mesmas propostas políticas de toda a Europa no que diz respeito ao que chamamos “temas fracturantes”. Um deles é esse.

O que a serva de Deus Lúcia escreveu é a sua percepção moral, a sua maneira de ver as coisas. E numa linguagem, certamente, figurada. Não se trata de uma revelação divina. Ninguém veio, do Céu, dizer-lhe isso. Como tal, tem o valor que tem: uma chamada de atenção de uma alma piedosa, uma advertência para o abaixamento do tónus moral da sociedade. Mas não uma “ameaça” do Céu.

 

O Papa emérito, Bento XVI, escreveu que “Fátima não terminou”. Será que se referia a alguma ameaça?

Os Papas e os teólogos têm acentuado que a mensagem de Fátima se reporta à essência do Evangelho: a conversão, a penitência e a mudança de vida. Ora, como o Evangelho é para sempre, também o mesmo se pode dizer a respeito de um acontecimento que, mesmo privado, se refere ao centro da Boa Nova da Salvação. Por isso, tem razão o Papa Emérito ao referir que a mensagem de Fátima não terminou.

 

Mas fala-se em inferno, “bispo vestido de branco” martirizado, etc. Não há, aqui, referência a ameaças de destruição, a coisas pavorosas?

Tal como na Revelação divina, também a respeito da mensagem de Fátima tem de haver um progresso na sua compreensão: hoje não é possível vê-la com a mesma ingenuidade de há cem anos. Fátima esta a ser objecto de estudos teológicos e científicos de todo o género. Ora, um dos aspectos mais colocados em relevo é que a visão catastrófica é mais típica da mente popular, dos simples, do que do centro da mensagem revelada aos Pastorinhos. Esta, o centro da mensagem, é mais admoestação e ânimo maternal do que ameaça de castigo ou declaração de um final dramático. Por algum motivo, as aparições formais terminam com o chamado “milagre do sol”, quando o sol “dançou”. Esta dança é sinal de festa, de final feliz, de namoro entre o céu e a terra.

 

Que mensagem nos pode deixar sobre Fátima?

Creio que tudo se pode resumir àquele brado que o Papa Francisco entoou em Fátima, há precisamente meio ano: “Nós temos Mãe!”. Sim, nós temos uma Mãe que nos garante o triunfo do amor de Deus nos dramas da história! Nós temos uma Mãe que, qual «Mulher» do Apocalipse, nos defende do poder do mal pela lógica do refúgio em Deus. Nós temos uma Mãe que nos apela à missão de “rezar pelos pecadores”, isto é, de sairmos do nosso individualismo para fazermos dos outros participantes na mesma fraternidade universal mediante a comum paternidade divina, obtendo, assim, a paz.

Nós temos uma Mãe que é já o cumprimento da promessa da Salvação.

Não estamos sós! O mal, a destruição e a morte não serão a última palavra da história, mas sim Deus e a vida em plenitude que Ele oferece misericordiosamente.