ATÉ QUANDO, SENHOR?

Na oração do meio-dia cantamos, do Salmo 13: «Até quando, Senhor?». Antes do covid-19, quanto entoava estas palavras, pensava nos meus irmãos e irmãs no Iraque. Agora, estas palavras encontramo-las nos nossos lábios. Até quanto durará a pandemia, Senhor? As equipas médicas perguntam-se quantas horas terão de trabalhar de maneira estafante, arriscando a própria vida. Até quando os pais poderão estar fechados com as suas crianças, pacientes e amorosos? Até quando os avós não poderão voltar a desfrutar dos seus netos? Até quando não poderei dispor dos resultados do meu teste ao coronavírus? Por quanto tempo poderei viver?

Também no meu espaçoso convento de Oxford pergunto: «Até quando, Senhor?», antes de ver novamente as pessoas que amo. Skype e Zoom não são a mesma coisa. Até quando antes que possa abraçar e apertar quantos me são queridos – e se isso não acontecer? Uma ausência breve aguça o sentido da espera, mas quando é prolongada corrói a nossa humanidade. No romance “Sede”, de Amélie Nothomb, Jesus compraz-se da sua sede: «Tendo arquejado por causa da sede durante um certo tempo, não bebo do copo apressadamente. Saboreio um pouquinho, tenho-a na boca antes de a cuspir. Experimento quanto é maravilhosa». Mas sobre a cruz, esta sede torna-se horrível e atropela todas as sensações.

Normalmente, relacionamo-nos com este «até quando» em referência a um calendário que estrutura o nosso tempo: reencontros de família, as etapas da nossa fé, os ritmos da escola e universidade, eventos desportivos. Mas o que é que estrutura o nosso tempo agora? É algo sem forma, e sendo assim é difícil fazê-lo durar. «O tempo findou», observava Hamlet, devastado. Parece que convivemos com o vírus desde há anos, e não semanas. Um amigo escreveu-me: «As notícias dos meios de comunicação fazem-se sentir pior, mas sem elas tenho a sensação de que me falta alguma coisa. A quarentena torna-me nervoso em relação ao mundo exterior, mas também claustrofóbico». Tenho no quarto uma pilha de livros que desde há tempos queria ler, mas não consigo manter-me sentado. A única tentação é escrever e responder aos “e-mails” e permanecer colado às notícias.

A resposta a este grito, «até quando», não é uma data na agenda, mas uma maneira de viver o tempo. Martin Luther King perguntava-se por quanto tempo o seu povo se manteria oprimido. «Por quanto difícil seja o momento, por quanto frustrante seja a nossa época, não durará muito, porque a verdade reprimida debaixo da terra ressurgirá de novo. Até quando? Não muito, porque o arco da moral universal é amplo mas flete-se para a justiça. Deus soou fortemente as trompetas que nunca baterão em retirada. Ele está a erguer ao alto os corações dos homens antes de se sentar no seu trono para julgar. Alma minha, sê veloz a responder a Deus. Sede jubilantes, ó meus pés. O nosso Deus pôs-se em marcha». «Não muito tempo» durou aquela situação, e não porque houvesse uma data em que o preconceito pudesse acabar, mas porque Martin Luther King tinha aprendido a viver cada dia com esperança.

John Henry Newman dizia que um cristão é alguém que espera Cristo, e por isso já está tocado pela sua vinda. No segundo domingo da Páscoa de 1945, quando a Gestapo o vai buscar para o matar, Dietrich Bonhoeffer só teve tempo de sussurrar uma mensagem a um companheiro de prisão, para que a levasse ao seu amigo, o bispo de Chichester George Bell: «Este é o fim, mas para mim é o início… A nossa vitória é certa». Também agora o segredo é viver os nossos dias plasmados pela esperança. O teólogo batista Ian Stackhouse disse-o assim: «Parece-me que a batalha pela civilização se baseará no desafio brutalmente simples de viver um só dia bem». Isto, sustenta Stackhouse, é o dom da Liturgia das Horas.

Os meus pais descobriram o ritmo vivificante da oração do Breviário. Um membro do laicado dominicano, que a ele aderiu após a condenação à prisão por ter sido sicário da máfia, disse-me um dia que se tinha tornado como uma religiosa, porque recitava o seu Ofício de manhã, ao meio-dia e ao anoitecer. As pessoas podem encontrar outros ritmos mais fecundos. Um amigo meu, médico, que está prestes a reformar-se, estruturou o seu tempo em torno à família, corrida, jardinagem, música e poesia. Estamos a redescobrir a alegria de uma vida regulada. Nunca vivi uma vida tão regular desde que era noviço! Como é que se vê que foi um bom dia? A Liturgia das Horas forma-nos ao ponto de podermos andar com a memória carregada do passado, estar abertos ao futuro com as suas promessas, e assim viver o presente. Oferece-nos uma indicação sobre como todos nós, fechados em casa, podemos estruturar os nossos dias de maneira a viver segundo a esperança. A Liturgia das Horas, em cada oração – exceto a Hora Sexta e o Ofício das Leituras – tem um cântico que nos convida a viver este momento do dia. Em Genésis 1, o dia começa à tarde, como acontece para todas as grandes festas. John Donne chama à escuridão «o irmão antigo da luz». A aurora chega como um dom inesperado. Para nos prepararmos para no novo dia, à tarde ou de noite, temos de ir com o pensamento para o passado, com os seus pesos e os seus ressentimentos. Estar em silêncio com as outras pessoas, numa família ou no andar de um prédio, ou mesmo numa comunidade religiosa, são esforços que se acumulam e intensificam as tensões.

Numa sociedade em quarentena, após algumas semanas passadas fechados, os pensamentos homicidas emergem. O Magnificat nas Vésperas é o canto de uma mulher que recorda com gratidão as grandes coisas que o Senhor fez por ela. De que modo terá lidado com o futuro? Como podemos marcar cada dia com gratidão pelas graças recebidas e pelas pessoas que nos guiam? Devemos encontrar o tempo para dizer o nosso obrigado, mesmo que não possamos viver o sacramento da Ação de Graças, a Eucaristia. Muitas pessoas estão a ver a missa pela internet no nosso convento, pessoas que nunca aqui vieram ao vivo. À noite, nas Completas, somos convidados a saudar o dia, e também as nossas vidas. Como Simeão, cantamos: «Agora deixa, ó Senhor, que o teu servo vá em paz, segundo a tua palavra» (Lucas 2,29). S. Paulo convida-nos a fazer um gesto preciso: «Não se ponha o sol sobre a vossa ira» (Efésios 4,16). É o tempo para purificar os nossos pensamentos das feridas do dia, de maneira que possamos estar em paz uns com os outros. De uma maneira ou de outra precisamos de um ato quotidiano de perdão mútuo, curando-nos as velhas feridas. De outra forma, não seremos capazes de dormir. O dia é o tempo dos novos inícios. É de dia que Cristo ressuscitado aparece no jardim. Todas as Laudes são um convite a estar abertos à promessa do Senhor. O canto do Benedictus” é o louvor de Zacarias pelo seu filho, o João Batista do futuro. As crianças são as promessas do futuro.

Durante o genocídio do Ruanda, um dos meus confrades veio até mim a chorar porque todos aqueles que amava tinham sido aniquilados. No Natal seguinte enviou-me uma fotografia com duas recém-nascidas. No verso, escreveu: «O Ruanda tem um futuro». A Hora Sexta do Breviário não apresenta nenhum cântico. Convida-nos a fazer frente ao mais árduo dos desafios: viver agora, mais do que permanecer armadilhados no passado e disparar para o futuro. Jesus era um homem que vivia cada dia que lhe vinha ao encontro. Caminhava quando vê o pequeno Zaqueu na árvore: «Zaqueu, desce, porque hoje tenho de ficar em tua casa». Jesus agarra o tempo presente: «Hoje a salvação entrou nesta casa» (Lucas 19,1-10). Esperar que a quarentena termine totalmente pode ser a coisa mais dura que somos chamados a superar. Por agora preparo-me para romper o isolamento e dar um passeio nos parques de Oxford. Mas oiço a voz do “abba” Moisés, o padre do deserto, que me recorda: «Senta-te na tua cela, e a cela ensinar-te-á tudo». O Senhor está a chegar. Até quando? Não falta muito.

Timothy Radcliffe, op
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Livro de Horas
Publicado em 15.05.2020