A 16 e 17 de Junho, decorreu, como previsto, a 35ª Peregrinação Militar Nacional a Fátima. Neste ano, notou-se um acréscimo de participantes. Entre estes, pela primeira vez, um peregrino muito especial: o Comandante Supremo das Forças Armadas.
Eis o texto da homilia do Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança:
Homilia na Missa da 35ª Peregrinação Militar Nacional a Fátima
“Onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração” (Mt 6, 21)
Esta nossa peregrinação decorre num tempo e contexto balizados por dois temas incontornáveis: o Ano Santo da Misericórdia e a preparação do centenário das aparições de Fátima. É lógico, portanto, que nesta homilia me cinja a estes âmbitos, os quais, aliás, se entrecruzam e quase se confundem.
Como sabemos, as aparições de Nossa Senhora, em 1917, foram antecedidas por três aparições do Anjo que viria a identificar-se como “Anjo da Paz” e “Anjo Custódio de Portugal”. Na primeira, na primavera de 1916, quando o mundo se debatia com a “carnificina inútil” da terrível grande guerra, o Anjo começou por dirigir-se aos pastorinhos com estas palavras: “Não temais. Sou o Anjo da Paz. Orai comigo”. Repare-se nesta trilogia de conceitos com a qual se inaugura a mensagem de Fátima: a ausência do medo interliga-se com a paz e estas duas com a oração.
De facto, o mundo daquele tempo parecia excluir Deus da história, da cultura e da vida da sociedade. Centrou tudo no homem e, porventura, no seu ser mais instintivo ou animalesco. O resultado foi a hecatombe da guerra, o imenso sofrimento de milhões e milhões e a destruição em massa. Como escrevia o Papa Francisco, há uma semana, na mensagem que enviou ao Congresso Eucarístico Nacional que decorreu precisamente neste santuário, “um antropocentrismo desordenado gera uma sociedade desordenada”. Ontem como hoje. Por isso, o centro da mensagem do Anjo, há pouco referida, parece ser “orai comigo”. É que orar é abrir-se ao mistério, centrar-se em Deus e não na pessoa auto-suficiente. E quando tal acontece, o resultado é a garantia da paz e da boa convivência.
Neste sentido, como refere um arguto teólogo, “Fátima é a mais profética das aparições modernas”. Não enquanto prenúncio de ameaças ou adivinhação de catástrofes. Mas precisamente no seu contrário: na busca e no convite à leitura do presente à luz de Deus e do seu plano salvífico para a humanidade. É-o enquanto denúncia do mal no mundo e anúncio de novas possibilidades de paz, harmonia, liberdade e fraternidade, se soubermos e quisermos reconfigurar o futuro na convivência com Deus, pois isso pressupõe e gera a convivência com todos os outros, independentemente das suas situações existenciais de raça, credo, estatuto social, riqueza acumulada, pertença partidária, identificação cultural, etc.
Ora, é aqui que a mensagem de Fátima se interliga com o tema da misericórdia. Porque Deus é misericordioso, porque o seu coração pulsa em nosso favor, temos a certeza de que a última palavra sobre o destino da humanidade pertence a Ele e ao seu projecto de vida em plenitude e não à força cega de um qualquer determinismo, a uma espécie de sentença inapelável de que seria o homem a destruir o próprio homem. Não! Se Deus é misericórdia, com a sua ajuda e no exercício da nossa plena liberdade, o mal do presente há-de ser gradualmente reduzido, até à sua completa aniquilação, e o futuro há-de abrir-se à plenitude da graça, da bondade e da felicidade. É nesta linha do sadio optimismo cristão ou da virtude da esperança que devem ser lidas as palavras da Senhora numa das suas aparições: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”.
Sim, o mal, que tantas vezes é tão forte que parece quimicamente puro, fruto dos corações não transformados pela graça, é passagem e não meta, é momento efémero e não realidade definitiva. Mas, precisamente por isso, também constitui forte interpelação que não nos pode deixar indiferentes, já que o ser misericordioso de Deus reclama acções de misericórdia por parte de quem se tem por seu filho. Esta actuação humana originada na fé concede-nos a certeza que o drama não se converterá em tragédia. Aceitemos, pois, este apelo à liberdade e responsabilidade humanas, pessoais e colectivas, para que se corrijam caminhos, se reavaliem opções, se afinem rumos e se preencham com valores as lacunas da cultura. E, fundamentalmente, para que nos predisponhamos a não nos fecharmos em nós mesmos, mas reservemos espaço para que Deus nos habite e habite a sociedade.
Fátima interpela, pois, a história. A propósito: se a nossa história se cruzou com a de tantos povos, no próximo ano, centenário das aparições, não seria altura de convidar os militares e polícias que constituem o espaço da lusofonia para um reencontro neste altar da paz no mundo, após tantos desencontros e vicissitudes que nos separaram e opuseram e deixaram marcas de dor em ambos os lados? Sei bem que as distâncias geográficas são quase inultrapassáveis. Não obstante, ouso sonhar… Lanço o repto aos agentes políticos e às chefias militares e policiais: com algum apoio logístico, talvez isso pudesse passar do sonho à realização…
Fátima pede humanismo ou «suplemento de alma». Mas garante, também, que o Deus de Jesus Cristo não é indiferente aos nossos dramas pessoais e colectivos. E indica-nos a via da salvação, o caminho da plenitude, mesmo que, para isso, tenha de enviar o Anjo e a sua Mãe do céu à terra. Nisto se verifica a misericórdia do nosso Deus que não desiste de nós ainda que nós desistamos d’Ele e Lhe voltemos as costas. Ou até quando tudo parece perdido. É o que confirma a primeira leitura desta Missa. A pérfida e ímpia rainha Atália, por vingança e para restabelecer o culto pagão de Baal, projecta exterminar a descendência do rei David. Porém, uma outra mulher, Josebá, consegue subtrair da morte um bebé e escondê-lo no templo. Quando este atinge os seis anos –a idade da razão- é apresentado ao Exército que o reconhece e aclama como verdadeiro rei de Israel e depõe Atália. Acontece, assim, uma espécie de 25 de Abril daquela altura que repõe o direito e a justiça usurpados ao povo. Deste modo, a descendência de David prosseguiu e, como sabemos, dele nos nasceu Jesus Cristo, o Salvador. Repare-se neste dado paradigmático: é no templo, isto é, junto de Deus, que a verdade se reconhece como verdade e a mentira se descobre como mentira. Ontem como hoje.
Caros peregrinos, não hesitemos em colocar-nos do lado de Deus, em sermos pessoas de Deus. Com toda a determinação e confiança, já que, como intuiu a grande escritora Agustina Bessa Luís, “o homem de Deus é menino pela confiança e é adulto pelo reconhecimento da paz do coração”.
Invoco do Alto, por intercessão de Nossa Senhora de Fátima e dos Beatos Francisco e Jacinta Marto, que quantos servem as Forças Armadas e as Forças de Segurança vivam e promovam a paz precisamente nesta «infância espiritual» que os leve a sentir-se «homens e mulheres de Deus». Homens e mulheres misericordiosos, pois a misericórdia é, de facto, o acto supremo pelo qual Deus vem ao encontro do mundo e lhe assegura um futuro de luz e de realização.
Manuel Linda