“Nós vivemos numa sociedade cristã. Independentemente das posições de cada um, se é crente ou não crente, indiferente ou agnóstico, a verdade é que o nosso mundo cultural, os seus valores orientadores, as suas principais instituições tradicionais, os princípios que regem a própria sociedade são do cristianismo. Por isso, quando a União Europeia decidiu estabelecer alguns preâmbulos teóricos e morais relativos aos princípios que praticamente estão presentes em toda a Europa, se perguntou se deveria inserir a tradição cristã nesses princípios e decidiu que não, por uma questão de respeito pelas outras tradições religiosas e pelos que não têm nenhuma opção religiosa, tomou uma decisão que, para mim, enquanto estudioso, não enquanto crente — que, de facto, não sou —, é pura e simplesmente absurda e insustentável. A nossa sociedade é profundamente cristã.
Ignorar que a Europa foi construída pelos monges beneditinos que a unificaram por meio do sistema de conventos, de acordo com o princípio que de um convento se deveria ver o outro e segundo o critério do “ora et labora” (reza e trabalha), é falsificar a história.
Portanto, não é verdade, como defendem os nossos amigos franceses, que a Europa de hoje deriva exclusivamente do iluminismo. Esta é a típica maneira chauvinista dos franceses olharem para as coisas. Pensam que tudo existe só por causa e a partir da França. Certamente, deram um contributo importante; mas, em rigor, é mínimo comparado com os dois mil anos de cristianismo. E nós nunca o devemos esquecer.”
Estas declarações não são da autoria de um papa, nem tão-pouco pertencem a um crente, mas foram proferidas pelo insuspeito Carlo Sini, eminente filósofo italiano que se autodefine como “não-crente”, que, no entanto, em nome da honestidade intelectual, sabe reconhecer o decisivo contributo do cristianismo para a construção do mundo hodierno, pelo menos do mundo ocidental.
De facto, o cristianismo introduziu uma conceção de vida que, assentando na “conversão”, “metanóia”, abriu às pessoas novos horizontes de possibilidades. Aquele jeito simples de Jesus mostrar como dentro de cada um estão infinitas potencialidades de viver a vida, de planear e construir o mundo, de edificar a relação com os outros… com a particularidade de o fazer através de um humilde convite a mudar e a ir mais além, afigura-se tocante ainda hoje. Tocante ao ponto de plasmar uma cultura, um modo de ser, porque, entretanto, se entranhou na estrutura humana de cada um. No que tem de mais estruturante, de facto, o Ocidente deve-o a esse impulso de querer ir mais além.
Ir além de si mesmo, para caminhar ao encontro do outro, no amor, no serviço e na solidariedade.
Ir além do instante, acreditando no futuro e construindo-o a partir de um presente cheio de esperança.
Ir além do nosso pequeno quintal que, tantas vezes, só nos aferrolha, para fazer do próprio mundo a estrada onde caminhamos.
Tudo isto é património ou, melhor, é marca do cristianismo na cultura e na sociedade.
E, no entanto, aquilo que confere às pessoas esta extraordinária capacidade de infinitas possibilidades inscreve-se na própria natureza da sua condição de criatura. De facto, ninguém é criador de si mesmo, nem ninguém se inventou ou fez a si próprio. Tanto a vida como o que somos são dons recebidos e recebidos de Alguém!
Assim, podemos dizer que aquilo que constitui o fundamento da própria condição humana reside, por um lado, na assumida evidência de que nós somos chamados a abrir-nos a outras e novas possibilidades (“ser para…”) e, por outro lado, que não somos nós a fonte de nós mesmos.
Portanto, o cristianismo, tal como nos transmite que o ser humano possui essa incomensurável possibilidade de ir além de si, do seu presente, do seu espaço, também nos revela que a condição dessa possibilidade reside na sua derivação de um Outro, de Deus que se fez e faz próximo de cada um e, de cada um, vem ao encontro.
+ Rui Valério