D. Rui Valério presidiu ontem, na Igreja de S. Domingos, a uma Celebração Eucarística, por ocasião do 216.º aniversário do Colégio Militar.

Missa na Igreja de S. Domingos – 216º Aniversário do Colégio Militar.   Foto: Colégio Militar (facebook))

Transcrevemos a sua Homilia.

HOMILIA NO DIA DO COLÉGIO MILITAR

VIII Dom Tempo Comum C

 Caríssimos irmãos em Cristo

Os textos bíblicos que acabámos de escutar são profundamente inspiradores, como de resto é apanágio de toda a Palavra de Deus. Mas hoje, mais do que nunca, revelam o seu cariz nitidamente sapiencial. Por isso oferecem-nos uma perspetiva sobre a vida, norteada por duas realidades: por um lado, a presença do DOM; por outro, a presença da AÇÃO que acompanha o dom. A história concreta e quotidiana é a principal fonte da via sapiencial. O ser humano que se deixa conduzir pela sabedoria reconhece aquilo que é gratuitamente dado e oferecido, ao mesmo tempo que assume o compromisso orientado para a ação.

Desde logo, recordemos que a inteira criação foi confiada ao ser humano, não para dela dispor como bem entender, mas para a trabalhar, proteger e dela cuidar. Num momento crucial da história de Israel, Deus oferece ao povo, que era escravo no Egito, o dom da libertação, acompanhado, porém, pelas múltiplas dificuldades da travessia do deserto que o povo tinha de empreender. Também Jesus, que se aproxima de cada um para oferecer o dom da salvação, pede, ao mesmo tempo, a conversão e a fé, como inalienáveis contrapartidas ao dom recebido.

Iluminados por esta luz, é essencial observarmos que os desafios colocados hoje a cada um são plasmados pela mesma urgência de reconhecer, com gratidão, aquilo que é oferecido gratuitamente e de assumir o imperativo de se comprometer na ação.

Um dos dons que recebemos de Deus é o facto incontornável de termos nascido numa Pátria e de a ela pertencermos. Contudo, é essa mesma Pátria que pede a nossa colaboração e compromisso, de modo a honrá-la com total dedicação, servindo-a acima de nós mesmos e dos nossos interesses particulares.

Reconheço aqui o caráter sapiencial do Colégio Militar. Oferece muito a cada um dos que aceitaram viver de acordo com o seu espírito. Desde logo, oferece a glória e o prestígio que foi acumulando ao longo da sua profícua existência histórica de mais de dois séculos; oferece ainda a formação escolar que ministra com rigor e competência, bem como a formação humana, moldando o caráter de acordo com os princípios que advoga, transformando, assim, cada aluno num homem novo, de acordo com os mais elevados padrões humanistas… mas também transmite uma rara capacidade de envolvimento e compromisso na construção da história e da sociedade, patente no modo como os alunos, tanto antigos como atuais, organizam as suas vidas e se envolvem dedicadamente em prol do bem comum. A vossa história e tradição atestam que haveis dado a outros o que de outros haveis recebido. O que gratuitamente vos foi oferecido, tornou-se ação incomensurável no serviço e na entrega, sob o lema que congrega para a unidade: “um por todos, todos por um”. Neste sentido, o Evangelho oferece-nos um manancial de referências que todos reconhecem no Colégio Militar: “Todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre”; “Cada árvore conhece-se pelo seu fruto”; “O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem”.

A mesma Palavra que escutámos nesta cerimónia oferece três paradigmas que inspiram todo aquele que pretende orientar a sua vida com sabedoria:

1. Primeiro, a autenticidade. Tal como o crivo agitado põe à vista as impurezas do trigo, o calor do forno obriga o vaso do oleiro a demonstrar a sua excelência e o fruto da árvore revela a qualidade do campo, também a palavra, ensina o Ben Sira, revela claramente o íntimo do coração do ser humano. Ainda que se viva mergulhado no fingimento, no engano ou no disfarce, a palavra proferida acaba por revelar os sentimentos mais profundos, assumindo o estatuto de banco de prova. A autenticidade de uma pessoa revela-se, portanto, na sua palavra, nomeadamente na capacidade e força que essa palavra tem de ser criadora de história e de vida, de se tornar acontecimento. Apraz-nos hoje recordar e, sobretudo, celebrar a palavra que é pronunciada no Colégio Militar: uma palavra que se faz acontecimento e se torna realidade. Nessa medida, qualifica a autenticidade dos que lá foram ou são mestres e dos que lá foram ou são discípulos.

2. O segundo paradigma é o serviço, apresentado por são Paulo como a força que vence a morte. De facto, “A morte — escreve o apóstolo dos gentios — foi absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória?”; e conclui: “permanecei firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor, sabendo que o vosso esforço não é inútil.” Esta “obra”, tal como o “esforço” a que se refere, tem a marca indelével do serviço. E se a morte entrou pelo pecado do egoísmo e da desconfiança, todo o ato de servir constitui uma verdadeira ressurreição. “Servir” é a maior honra e glória que se presta à vida. Por isso, a casa onde servir não é só um atributo mais ou menos acidental, mas é a marca absoluta da sua identidade, só pode ser um viveiro de esperança.

Bem-haja, Colégio Militar, por dar à esperança o sólido alicerce do serviço. Quando assim é, a esperança é já, de algum modo, a vitória antecipada.

3. O terceiro paradigma, define-se como a sabedoria do olhar.

Quando nos encontramos com Jesus, percebemos que o seu objetivo não é manter no ser humano um espírito letárgico, bem pelo contrário. A sua palavra desperta-nos, faz-nos ver, ilumina o presente. Torna-nos artífices de uma história com visão de futuro. A pergunta provocadora que lança — «Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?» — quer tão-só despertar em nós a sede da verdade e suscitar a fome da autêntica luz. De facto, motivados pela ligação ao transcendente, somos chamados a reconhecer o que outros rejeitam ou fingem não ver: a franja negligenciada da sociedade ou as ameaças à paz promovidas pela ausência de valores.

Efetivamente, há experiências na vida que não só abrem novos horizontes, como também permitem encontrar novos sentidos nos acontecimentos da história e até novas identidades em cada ser humano, uma vez que nenhuma pessoa poderá ser encarada como gente anónima, fruto da nossa indiferença, da frieza do nosso coração ou do egoísmo com que negligentemente conduzimos a nossa história pessoal. Assumindo a perspetiva de Cristo, todo o ser humano, qualquer que seja a sua condição de vida, é um irmão, a quem nós devemos, em consciência, servir e dispensar auxílio.

Presto aqui, com todos vós, a minha homenagem ao Colégio Militar por ter sido, ao longo dos tempos, e continuar a ser, lugar dessa experiência reveladora de humanidade, que transparece luminosamente nas palavras e ações do próprio Cristo, Senhor Nosso. Ámen.

Foto: Colégio Militar (Facebook)