O novo bispo das Forças Armadas e Segurança, D. Rui Valério, não se considera um bispo especial nem quer ser polémico. Em entrevista à TSF fala, entre outros temas, sobre o papel das Forças Armadas e Tancos.
D. Rui Valério é o novo bispo das Forças Armadas e de Segurança. Faz amanhã, 54 anos de idade, nas vésperas de Natal, e provém do Instituto Missionário Monfortino. Tem como diocese o Ordinariato castrense com sede na Igreja da Memória, em Lisboa. Na entrevista, conduzida por Manuel Vilas Boas, o novo bispo considera que as Forças Armadas são uma instância de serviço à pátria. Sobre Tancos prefere refletir na responsabilidade das entidades militares.
Dom Rui Valério tem consciência de que é um bispo especial? É claro que segundo o direito canónico é sucessor dos apóstolos.
Ser um bispo especial, acho que é uma designação demasiadamente forte e talvez exagerada. Eu sou um dos bispos que existem na Igreja Católica ao serviço do povo de Deus e é assim que me sinto. Não me sinto… pelo facto… agora que a Diocese, da qual eu sou responsável, que é a Diocese das Forças Armadas seja uma diocese, a muitos títulos, especial, a Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança, isso é verdade. Mas o ser especial da parte da Diocese torne o bispo automaticamente um bispo especial não acompanho esse raciocino nem essa lógica, uma vez que, sou um dos sucessores dos apóstolos entre todos os outros que o são. Se nós tivermos de falar de um bispo especial não é o bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança. Nem de outra diocese. É apenas do Diocese de Roma. Esse é que é um bispo especial por causa de ser, também, o Papa.
O seu rebanho, em termos pastorais, é diferente do que paira pelas outras dioceses. A sua gente tem farda e presa a disciplina. São homens e mulheres militares e das Forças Armadas e de Segurança.
Esse caráter da farda, realmente, é um elemento de distinção e de identificação. Mas, ao mesmo tempo evoca um conjunto de valores, um conjunto de princípios, uma determinada maneira de viver, de agir, uma determinada conduta, que, muito embora seja referenciada ao simbolismo da farda, no entanto, seria desejável que todos esses princípios e valores fizessem parte integrante, não apenas de uma franja da sociedade, que é os militares e as forças de segurança, mas que esses valores e esses princípios e essa conduta fizessem parte integrante e estivessem presentes dentro da sociedade no seu todo. Ou seja, a primeira abordagem às fardas e ao caráter distintivo que os militares e as forças de segurança trazem, embora os distinga, no entanto, o segundo momento deveríamos dizer o seguinte: oxalá que tudo aquilo que essa diferenciação representa integrasse a sociedade no seu conjunto e na sua totalidade.
O senhor bispo foi, antes, assistente religioso da Marinha, tanto quanto sei.
É sempre com um misto de saudade e de orgulho que eu evoco esses tempos gloriosos, desde logo porque, quando regressei de Roma, onde eu estive a estudar Teologia e Filosofia, e vim para Portugal de forma definitiva, digamos, é curioso que o primeiro trabalho pastoral que eu tive foi exatamente como capelão militar. E depois, a acompanhar essa primeira experiência, até como jovem sacerdote, tive a boa fortuna, a graça, de ter encontrado um conjunto de personalidades militares que foram capazes, não apenas de representar uma certa continuidade entre o que nós pregamos e praticamos nos seminários e nas universidades pontifícias, mas também uma continuidade ali no âmbito militar. Com este acrescento. Eram pessoas que não apenas referiam esses valores, esses princípios, essa conduta, essa estatura e estrutura moral, mas eram pessoas que o praticavam efetivamente, que o viviam. Ou seja, não o apregoavam somente, mas também o tornavam real e efetivo e visível.
Dom Rui Valério chegou recentemente a esta condição de bispo. Posso perguntar-lhe se já tem um plano de intervenção. O que é que faz afinal um bispo das Forças Armadas e de Segurança pelos quartéis do país?
Quando eu recebi a nomeação, eu fiz-me uma pergunta
Não estranhou a nomeação?
Estranhei a nomeação completamente e por isso me fiz uma pergunta. Enfim, não vou aqui repetir, porque era incapaz de o fazer, mas os moldes em como a notícia ou, enfim, a eleição do Papa me transmitida. Ela foi-me transmitida, em primeiro lugar, pelo senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, e quando ele me estava a transmitir, estávamos ali em diálogo, mas imediatamente quando ele viu a minha surpresa, eu pessoalmente me retirei interiormente para questionar nosso Senhor, o que é que ele estava a fazer. Não verbalizei exteriormente.
Mas pediram-lhe autorização ou nomearam-no sem autorização?
A nomeação chega-nos e é-nos comunicado que o Santo Padre pensou na pessoa para. E, a partir daí há uma reflexão que a pessoa faz, embora seja, muito rápida, muito veloz e, mediante essa reflexão que a pessoa faz, imediatamente, brota ali uma decisão. Até, no meu caso, foi uma decisão que teve de ser tomada assim com bastante prazo, ou seja, nesse entretanto, o que é que eu fiz? Eu estava a falar com senhor Cardeal Patriarca e fiz esse tal retiro interior para perguntar a Jesus, nosso Senhor, “mas que ideia era essa de …” e de repente veio-me à mente o porquê. E a única coisa que eu pensei logo foi “estamos em ano missionário”. Pelo menos aqui em Portugal. Estamos em ano missionário. Será que o facto de estarmos neste tal ano extraordinário missionário é, de alguma forma significativo ou relevante, para esta eleição? Eu encontrei uma resposta, não sei se é real ou não objetiva, mas pelo menos foi o que me deu logo ali muito à vontade. É por isso. ou seja, é um missionário que se quer para as Forças Armadas. E para as Forças de Segurança. E, a partir daí está já todo um programa estabelecido.
Porque de facto o senhor é o primeiro bispo missionário numa congregação, uma sociedade missionária que se chama Monfortino.
Exatamente. E que tem no nome oficial Missionário. E missionário significa esta valência, esta pujança de ser enviado. E ser enviado para estar com. Não é para ser enviado para levar apenas uma boa nova, uma boa mensagem, não é apenas para ser enviado para realizar grandes obras, que também poderão acontecer, mas, o primeiro passo do ser missionário é partilhar vida, fadiga, alegrias e tristezas com aqueles aos quais nós somos enviados.
Já vou voltar a essa sua condição de missionário, mas, entretanto, Dom Rui Valério, como sabe Portugal já não é na prática um país de maioria católica. Que presença têm as outras confissões e religiões no quadro da assistência religiosa. Podem os protestantes, os judeus, os islâmicos, os budistas terem assistência religiosa nas Forças Armadas? Não o perturba?
Absolutamente. E quero dizer uma coisa. Que o modus operandi na sociedade, está estabelecida e consagrada na nossa Constituição, como país, como nação, como república, portanto os princípios e o modus operandi que valem para a sociedade no seu todo vale também para dentro dos quartéis. Ou seja, da mesma forma que um cidadão português, hoje em dia, sob a alçada e patrocínio dessa lei que é a Liberdade Religiosa, pode praticar a religião que entende, a religião que é mais de acordo com, enfim, o seu caráter, enfim, a religião que quer, assim dentro dos quartéis também. Portanto, lá existe uma total, plena, absoluta liberdade religiosa, tal como na sociedade civil
Mas quem coordena é o Bispo das Forças Armadas…
O Bispo das Forças Armadas coordena a assistência religiosa católica, dos católicos
Só dos católicos?
Só dos católicos. Existe, no Decreto Lei, na lei que regula a assistência religiosa às Forças Armadas, existe também a possibilidade de outras confissões, de também outras expressões religiosas terem todo o quadro, enfim, de capelães, assistentes, acompanhadores, diretores espirituais… tal como a igreja católica.
Não o perturba, senhor Bispo das Forças Armadas e de Segurança, a instituição que usa armas de fogo? Essa questão ponha-se, como sabe, e de modo especial, durante a Guerra Colonial, que fez, pelo menos, 13 mil mortos, mobilizados para as três clássicas frentes de guerra que nós tínhamos.
É curioso que na pergunta que faz já está a dar a resposta. Ou seja, aquilo que está no horizonte da minha ação não são objetos, são pessoas. Aquelas pessoas que porventura poderão ter as mesmas interrogações que, enfim, todas as outras pessoas possam fazer, mas eu sou enviado para aquelas pessoas que ali estão e as quais têm dentro de si este objetivo e esta meta. Que é a paz. E é para elas que eu sou enviado.
Mas também podem morrer em guerra.
Essa morte em guerra, de um militar ou de um agente de segurança, é sempre em nome de um bem maior. Mas eles têm adquirido, exatamente, essa dimensão do sacrifício pelos outros. E repare, é uma linguagem esta que tem ecos na nossa educação, na nossa tradição, na nossa cultura, independentemente de ser religiosa ou não. Nós estamos já na quadra do Natal. Mas repare que as referências para explicar e para interpretar a hermenêutica, a gramática, a maneira de viver, a maneira de agir, a maneira de missionar do militar ou do agente de segurança, é uma gramática muito parecida à que usamos no quadro Pasqual: Cristo que dá a vida, Cristo que oferece a sua vida por. E o militar é uma continuação e uma perpetuação dessa disponibilidade. A tudo dar pelo bem da Nação, pelo bem dos outros, pelo bem da paz, pelo bem da liberdade. E essa disposição a dar tudo contempla a possibilidade de dar a sua própria vida. Aliás, o quadro de honra, o verdadeiro quadro de honra do militar e dos agentes de segurança qual é? São os nossos heróis. São aqueles que, pelos outros, pela pátria, pela nação, pela sociedade e pelos grandes valores que norteiam e iluminam uma sociedade civilizada, enfim, foram chamados a esta dádiva total e absoluta de si próprios através do oferecimento da vida.
Foi no início deste mês de dezembro que Dom Rui Valério tomou posse como capelão chefe do Ordinariato Castrense, no Salão Nobre do Ministério da Defesa Nacional e perante os ministros da Administração Interna e da Defesa Nacional. Foi uma cerimónia de alguma pompa e circunstância
Que me emocionou muito e me deu um certo nervosismo, porque nunca me encontrei na presença assim tão diretamente de tão ilustres personagens e personalidades do nosso país. No entanto eu entendi aqui com muita simplicidade. Uma vez que o meu lema fundamental é o de “nas tuas mãos para servir” foi exatamente isso que me acompanhou ao longo de todo o cerimonial, o qual aliás, foi feito e vivido com muito respeito de parte a parte, e do qual eu retive uma ideia, que me alegra muito, como cidadão e como bispo. Como cidadão porque verifico que é um reconhecimento de coisas maravilhosas, de todo um tesouro precioso, que a igreja tem dado ao longo destes séculos de nacionalidade a Portugal. E é um reconhecimento. Eu como cidadão eu fico muito feliz por isso. Assim como outras instituições, como outros horizontes e orientações têm feito e contribuído para que Portugal seja este país que é e os cidadãos portugueses sejam o que são. Portanto, como cidadão eu fico deveras feliz por sentir que há um reconhecimento. E depois, como bispo, porque além desta dimensão do reconhecimento entendi aquela cerimónia como um ser chamado a continuar a colaborar e a continuar a trilhar um caminho que já foi percorrido, já foi feito, e que há uma disposição, quer da parte da Igreja, quer da parte do Estado português, quer da parte das Forças Armadas e Forças de Segurança, em que esse caminho continue, progrida, face ao bem comum.
Entretanto a posse canónica deu-se mais tarde e na igreja que é sede das Forças Armadas, no que respeita ao Ordinariato Castrense
Exatamente, foi no dia 11 de dezembro, que nós precedemos exatamente à tomada de posse canónica, com o bispo, que se sentou, pela primeira vez na sua cátedra, na sé episcopal, no Ordinariato Castrense
Que é na Igreja da Memória, próxima do Mosteiro dos Jerónimos
E que tem em si uma história maravilhosa. Também tiveram presentes as altas chefias militares, porque coincidiu a tomada de posse canónica, onde esteve presente o senhor apostólico, como representante de Sua Santidade o Papa, tiveram também presentes todas as chefias militares, e todas as chefias das Forças de Segurança, tanto da GNR como da Polícia da Segurança Pública, e de outras forças policiais do país, porque se entendeu, a parte das chefias, que seria uma ocasião para uma apresentação mais explicita e mais direta, enfim, à própria diocese, se me é permitida esta expressão.
No que respeita ao Ordinariato Castrense, que é a sua diocese, está tudo salvaguardado pelo artigo quinto do Decreto-Lei 251 de 2009 na decorrência da Concordata retificada em 2004. Nessa cerimónia o senhor bispo falava de lealdade cooperante com as autoridades do Estado. De que lado fica a separação da Igreja do Estado?
Eu acho que essa separação só é salvaguardada afirmada e aprofundada na medida em que houver uma cooperação. Porque é a cooperação e é a lealdade, de parte a parte, que faz com que essa separação, ou seja, evitar a confusão mas que se mantenha a unidade, por isso é que é separação – não é divisão – fala-se de separação mas não de divisão. Ora bem, essa separação é que cada uma das entidades está consciente de que não é a outra, não se confunde com ela, mas, no entanto, tem consciência igual de que precisa da outra parte para o exercício da sua missão. Ou seja, há uma consciência de que ambas as partes podem dar e devem receber uma da outra, mas isso só se estabelece na medida em que há uma cooperação, em que há uma lealdade. E esta lealdade não é só face ao outro, é uma lealdade face ao próprio património histórico, cultural, ao próprio património de fé, de missão, que se tem trilhado, e que, no entanto, se pode por ao serviço um do outro. Ora isto só numa perspetiva de lealdade e de cooperação recíproca.
Por ocasião da tomada de posse, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, valorizava a sua condição de missionário Monfortino, de quê Dom Rui é o primeiro bispo em Portugal. Sente essa distinção? Um missionário para as Forças Armadas e de Segurança é assim?
É já todo um programa que nos levava muito longe. Desde logo porque, não haja dúvida nenhuma de que o missionário é aquele, e agora vou aqui recuperar uma frase que é muito querida ao Papa Francisco e que já entrou no léxico normal, quotidiano da igreja de hoje em dia, que é aquela do “ir às periferias”. O missionário é esse. Essa pessoa, esse agente. Das periferias. E, nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança tantas vezes nós encontramos situações, que muito embora sejam vividas e protagonizadas por pessoas que estão bem no cerne e bem no centro da vida, mas, no entanto, são considerados como periferia. Por vários motivos. Até pelas vicissitudes próprias da história, próprias da vida e próprias dos acontecimentos. Ora bem, não estou só a pensar naqueles que estão no ativo, naqueles que estão presentes – não nos esqueçamos de que nós, enfim, como instituição de Força Militar e de Força de Segurança, também possuímos aqueles que estão hospitalizados, também possuímos aqueles que estão a passar por momentos menos propícios, também contemplamos pessoas que, eventualmente, se sentem um bocadinho injustiçadas, por tantas coisas, por isso é que eu digo que, o ser missionário é estado de disponibilidade, o ir ao encontro de todos, inclusivamente aqueles que estão nessas periferias da existência.
Em 2016, no ano da Misericórdia, Dom Rui Valério foi escolhido entre 1071 padres pelo Papa Francisco, de que falou agora, para ser missionário da Misericórdia. Isso deu-lhe alguns galões especiais? Aproximo-o da sua nomeação episcopal?
Se por galões entende um crescimento espiritual interior, de uma vida mais em sintonia com a oração, se por galões entende que aumentou a minha consciência e a minha sensibilidade para o sofrimento que brota do pecado e do peso de consciência, então aí posso-lhe garantir que sim. Fiquei muito enriquecido. Não só pelo ministério da confissão, do encontro, do acolhimento, das outras pessoas que me procuravam, mas até pelas experiências felizes que eu tive, de ir pregar, de ir confessar, inclusivamente para o estrangeiro. Uma experiência que nunca mais irei esquecer, por muitos anos que viva, foram aquelas semanas que passei na Califórnia, junto dos nossos emigrantes, precisamente como missionário da Misericórdia. Algo que me emocionou e algo que contribuiu para a minha consciência de que o sofrimento do ser humano não vem só, enfim, das suas carências económicas, dos seus desentendimentos familiares, mas o sofrimento do ser humano deriva, em larga medida, por essa consciência do pecado, pecado que está presente na sociedade e nas estruturas. E, depois, naturalmente, na vida de cada um de nós. Se isso teve alguma contribuição para o Santo Padre eleger este pobre e humilde servo e pecador para ser bispo e para mais bispo da Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança, eu sinceramente… eu não sei que lhe ei-de dizer.
Mas encontrou o Papa Francisco
No dia 8 de fevereiro de 2016 tive com o Papa Francisco no Vaticano, numa sala muito grande onde estávamos mais de 800 missionários da Misericórdia, e foi muito agradável estar perto dele. Porquê? Porque percebeu-se que … dizer que é um homem que está para além do protocolo, isso é dizer pouco. Mas é alguém que tem a capacidade rara de se fazer próximo. Nós estávamos ali com o Santo Padre, com alguém com quem nunca tinha partilhado – conhecia-o da televisão – e de repente temos a sensação de nos conhecermos desde sempre. A maneira como ele fala, o que ele diz. São palavras do quotidiano, quer dizer, não vem com aquelas declarações de infabilidade e dogmáticas. Não. Fala de saúde, fala de doença…
Vejo que é admirador do Papa Francisco. Mas nem todos os bispos são admiradores do Papa Francisco, como sabe.
Penso que a relação que cada um de nós tem com o Papa do momento deriva, antes de mais, talvez de uma sensibilidade e de um feitio pessoal, agora, que eu ainda não encontrei e não conheço quem, pelo menos não se deixasse interpelar pelas palavras, e sobretudo pelos gestos, do Papa Francisco. Ainda não encontrei. Que é uma pessoa, que é um pastor, que é um vigário de Cristo que nos coloca a nós, cristãos, e sobretudo aos bispos, aos pastores, aos padres… que é alguém que nos coloca em interrogação, que nos incomoda, que mexe connosco, isso é verdade. Vou-lhe contar um exemplo, sem me alongar muito. Um dos missionários da Misericórdia contou a sua experiência de missionário da Misericórdia, como é que estava a ser efetuada. E o Santo Padre interessou-se particularmente por este ministério. Que era alguém, um padre, ele era da diocese de Florença, estava a exercer o seu ministério em Roma e estava-o a exercer exatamente para as periferias no sentido literal da palavra. Ou seja, a paróquia dele era a estrada, ligada, enfim, ao mundo das pessoas, das senhoras que estão à beira da estrada, e em Roma isso é um flagelo, era muito feito à base da noite. E o Santo Padre interessou-se, aliás, como todos nós, porque de repente vemos alguém cuja sacristia pode ser uma sala de uma discoteca para falar com um jovem que encontra. E isso interesse-o assim como interessou um outro, da Austrália, que a casa paroquial dele era uma carrinha onde ele tinha o leito para pernoitar e tinha o cartório paroquial. E ele, durante o ano, percorria a sua paróquia toda, dentro daquela carrinha confessava, atendia, elaborava os processos de casamento… porque a sua paróquia, o terreno era tão extenso, tão extenso, tão extenso que era assim que ele tinha de fazer. São experiências que nos enriquecem e, sobretudo, que deram oportunidade para contemplar o Santo Padre, o Papa Francisco sintonizado com estas situações, interessado nelas.
Deixando alguns lados para trás, da vida militar, que vai ocupar a densidade da sua vida, olhando este país e a igreja católica, não o perturba que 55% das crianças nasçam fora do matrimónio e do casamento?
Talvez que o mais me perturba, ainda mais do que isso, é o facto de que os nascimentos e a natalidade estar a diminuir consideravelmente. Nós temos um palmarés, sabe. Somos a população mais envelhecida da Europa. Isso é o que me preocupa de facto.
Mas sob o ponto de vista religioso não o perturba que as crianças não sejam batizadas? Por exemplo?
Mas eu não sei… ponho sérias dúvidas que a percentagem de não batizados seja assim tão elevada. Como sabe, durante muitos anos, fui pároco em dois contextos diferentes. Estive no Alentejo, em Castro Verde, durante alguns anos, como pároco e como vice pároco. E depois tive numa paróquia dos arredores de Lisboa, que é Póvoa de Santo Adrião e Olival de Basto. E repare, sobretudo naquela vigoraria, a taxa de nascimento era considerável. Não me leva a dizer que a maior parte das crianças que nasçam não sejam batizadas. Antes pelo contrário. E estou um pouco à vontade para falar porque o concelho, que é Loures/Odivelas, o concelho de Odivelas tem o bonito palmarés de ser o concelho que mostra uma taxa de natalidade mais elevada do país. E, portanto, aquilo que nós verificamos é que, efetivamente, o nascer fora do casamento canónico não significa que a criança que nasça depois não seja batizada. Atenção.
Mas a igreja muitas vezes põe obstáculos a esse batismo. Há aí normas que…
O direito canónico é bem claro a esse propósito e já agora, que estamos a falar disso, o direito canónico não proíbe, não impede, não bloqueia, não recusa o batismo a ninguém.
E o Papa Francisco é exemplo disso mesmo
A condição em que estão os pais da criança, do adolescente ou do jovem que pede o batismo, a sua condição pode levar o pastor, no seu discernimento pastoral, como pai, a ter uma conversa com os pais, mas não é impeditivo. Não é impedimento absolutamente. Aliás, o direito canónico, a última revisão que se teve, de 83/84 é bem clara a esse ponto. O ónus da responsabilidade recai sobre quem? Sobre os padrinhos. Aí sim, existe uma série de condições que vão respeitadas, que vão observadas, mas para dizer o quê? Para dizer que, não pelo facto de os pais viverem em situação A ou situação B é impeditivo para que alguém receba o batismo. E que isto fique bem claro. De uma vez por todas. Não se recusa o batismo a ninguém.
Por outro lado, senhor bispo há vocações para o episcopado do que para pároco de aldeia. Vai-me dizer que os bispos portugueses são pouco mais de 50, comparando com os mais de 3.000 padres portugueses em exercício. Há mais vocação para bispo do que para padre?
Acho que a vocação… nem é para bispo nem é para ser padre. A vocação fundamentalmente é para seguir Jesus e para se pôr ao serviço dele, da sua vontade, para construir o Reino de Deus. Se esse chamamento – porque ninguém é padre porque quer, ou pelo menos só porque quer, ninguém é bispo porque quer, aliás, não o é de facto. Mas é um chamamento que nos chega, ao qual a pessoa é convidada a responder numa disponibilidade total. Mas, para servir o Reino, para servir a igreja, para servir o santo povo de Deus. É por ele que nós estamos. É em função dele que nós vivemos. E, de maneiras que, a vocação é única. É uma só. A de dizer sim, como Nossa Senhora, ao chamamento de Jesus.
Mas porque é que estão vazios os seminários em quase todo o país?
Penso que a razão não seja explicitamente de crise de vocação para o sacerdócio. Já agora, se me permite, e não vou cometer nenhuma inconfidência, eu ainda ontem falava com alguém do exército, em que ele usou, para o seu ambiente, a mesma palavra que estamos a usar aqui para os seminários: crise de vocação para militar. Isso diz-nos algo não apenas da situação da igreja, não apenas da situação militar, mas se calhar diz-nos… se calhar não, muito certamente está-nos a dizer muito acerca da sociedade na qual nós vivemos. Acerca dos valores, das propostas que hoje chegam aos jovens, a maneira como são transmitidos. Porque existe de facto… vivemos numa sociedade onde há crise vocacional. Mas não é só uma crise vocacional para o sacerdócio. Há pouco o senhor jornalista não dizia, e não se referia, a casamentos, a matrimónios que não estão organizados pelo vínculo do matrimónio? Isso é uma crise vocacional ao matrimónio. Portanto, a crise vocacional tanto se aplica ao sacerdócio como ao militar, como à família… Há uma crise de facto.
Então o que é que mais o preocupa no catolicismo português? A baixa acentuada da prática religiosa?
Eu não vejo, realmente com um grande sentir e um grande peso… eu não olho para a minha querida Igreja e que o primeiro sentimento que brote é a preocupação. Não. Eu olho para a minha Igreja e o primeiro sentimento que eu sinto, dentro do coração e da alma, é uma grande alegria. Porque somos uma Igreja humilde, simples, mas em que eu vejo os leigos, o Povo de Deus, faz ponte, faz união com os pastores. É uma Igreja em que eu vejo que continua a existir os três amores. Um grande amor à eucaristia, um grande amor a Nossa Senhora, e um grande amor ao Santo Padre. Esta é a Igreja que eu vejo. Que depois seja uma Igreja que está na história, que seja uma Igreja que se deixa enlamear pelos problemas do mundo, que viva dentro de si as perplexidades, que são as perplexidades de todos, naturalmente que isto é uma constatação que nós fazemos. Mas é um desafio, mais do que uma preocupação. Aquilo que a minha Igreja me lança é um desafio. Para a servir melhor, para ser parte, se me permite, para ser parte da solução. Não para ser parte do problema.
Se me permite, senhor bispo Dom Rui Valério, quer ser também um bispo polémico por isso não lhe vou pedir uma opinião sobre o caso de Tancos.
Não há bispos polémicos. Eu não usava essa palavra. Talvez profeta. Que faz parte integrante do nosso ministério. E não é por ser bispo. É por sermos batizados. Lá está, sacerdotes, reis e profetas. E, por vezes, o ser profetas, impele-nos a denunciar o mal quando ele precisa de ser denunciado. Já agora falou de Tancos… não me vou esquivar. Vou fazer, antes de mais, duas constatações. Mas muito breves e simples. A primeira constatação que eu faço é que – mas tenho de fazer uma premissa, não estou muito dentro do assunto, não tenho acompanhado, e então nos últimos tempos estou verdadeiramente afastado, mas a ideia com que eu fiquei e com que tenho ficado é que Tancos tornou-se um tema em Portugal acerca do qual as opiniões se multiplicam. Se me é permitido dizer é que de Tancos eu já ouvi, quem dizia que Tancos nem sequer existe, que é uma cidade mítica como a Atlântica, a quem diz que, não senhora, todos os conflitos da última década foram provocados com armas que vieram… portanto, dentro destes dois extremos, cá dentro, existem opiniões para todos os gostos e sensibilidades. Portanto, a primeira reação, a primeira constatação é que penso que há muita opinião, muita dissertação sobre Tancos, mas poucos factos. A segunda constatação que faço é que infelizmente esse tema, ou outros que venham a surgir das Forças Armadas ou das Forças de Segurança Pública, e eu gostaria muito de dizer isto, deveriam ser sempre ocasião para o país refletir, para a sociedade refletir acerca de que Forças Armadas nós queremos para Portugal. Acho, já agora, se me permite, uma coisa. Quando se acabou com o chamado Serviço Militar Obrigatório, eu não estou aqui a defender que ele deva ser reposto, só estou aqui a fazer uma anotação, quando se acabou com essa proposta, com essa iniciativa que Portugal tinha, acabou-se com ela, e a minha pergunta hoje é: aquilo que as Forças Armadas e as Forças da Segurança davam, mas estamos a falar do Serviço Militar Obrigatório, aquilo que Portugal, que os jovens portugueses recebiam, por acaso foi substituído por mais alguém? Por mais alguma instituição? Vejo que as Forças Armadas uma coisa que transmitiam era um sentido de responsabilidade à pessoa. O sentido do respeito, e já agora uma palavra que eu não tenho medo de a usar, o sentido da disciplina. Pergunto. Não recebendo isso das Forças Armadas por acaso outra instituição veio ocupar o lugar para transmitir às novas gerações estas coisas? A família está verdadeiramente em grado e capacitada? A escola? E, portanto, penso que Portugal, é uma opinião muito pessoal, deveria, realmente, refletir, questionar-se, mas que Forças Armadas nós queremos. Porque as Forças Armadas têm muito para dar. Eu à pouco falava de uma palavra que sei que está completamente fora de moda, mas eu tenho um à vontade para a referir, porque a primeira pessoa a quem a ouvi dizer foi o Beckenbauer. A palavra disciplina. Foi um programa de televisão em que este jogador, alemão, queria explicar como é que ele se tornou no que era. E então ele dizia “foi com disciplina”. O Cristiano Ronaldo tornou-se o grande Cristiano, apreciado e admirado por todos nós, ele próprio o afirma, porque vive com disciplina. E, portanto, penso que as Forças Armadas, uma das coisas que têm para contribuir para a sociedade, era exatamente estes valores, estes princípios, enfim, que o faziam muito bem.
Há momentos quando falávamos de batismos, na ocasião não me ocorreu, mas, julgo oportuna e peço-lhe a resposta, se julga oportuna a pastoral a igreja junto dos casais?
Verificamos com alegria, e isto é mesmo uma verificação de alegria, nos últimos meses, na sequência da amori leticia, todas as dioceses, a começar pela diocese de Roma, de Buenos Aires, de Lisboa, Braga, Miranda/Bragança ou Bragança/Miranda, todas as dioceses se mobilizaram no sentido de organizar e estruturar e repensar e repropor essa tal pastoral. De maneiras que a Igreja não está nem surda nem cega face a esse desafio e está a dar uma resposta. E é uma resposta que nos alegra. Porque significa que esses casais estão em situação de ter uma prática, às vezes até profunda e intensa na paróquia, e esses casais estão a ser acarinhados, estão a ser acompanhados, estão a ser amados por parte da Igreja. Está tudo a fazer para responder cabalmente aquilo que é necessário.
Na mensagem de Natal que acaba de divulgar, como bispo militar, refere os invernos de sacrifício e de solidão. É esta humanidade de sede, de frio e de solidão, de atentados terroristas, que vivemos?
A nossa sociedade é caracterizada fundamentalmente por dois grandes invernos, se me é permitida esta imagem. O primeiro é aquele que deriva da tecnologia. Vivemos numa sociedade da técnica. Onde o ser humano é tratado como tratamos um aparelho. Onde de o ser humano se espera o que nós esperamos de uma máquina. De uma máquina ninguém espera que esteja doente. De uma máquina ninguém espera que entre em depressão. De uma máquina ninguém espera que tenha febre, que tenha crises, assim também hoje vivemos numa sociedade onde, enfim, não se contempla isso para o ser humano. E por isso é uma sociedade, em larga medida, de inverno. Por outro lado, falou dos ataques terroristas que são verdadeiramente um tormento. São uma chaga. Que nos envergonham. Agora, tenho sempre uma visão de esperança, face a isto. Porque, quando eu vejo a Igreja a repropor a necessidade de construirmos uma sociedade de rosto humano iluminado, quando eu vejo uma Igreja mais preocupada em ir ao encontro da pessoa, em estar com ela, em ser capaz de ouvi-la, de escutá-la, de acompanhá-la, isto aqui dá-me uma grande esperança. Ou seja, não obstante, e não foi por acaso que usei a palavra inverno, porque ao inverno segue-se sempre, até pela força natural das coisas, segue-se sempre a primavera. Eu amo pensar, eu amo imaginar, eu amo sonhar que essa primavera é representada pela Igreja.
Senhor bispo, a nossa conversa está a terminar, na eminência do Natal, que se aproxima, a quem deixa uma mensagem especial. Aos seus homens e mulheres das Forças Armadas e de Segurança?
Em primeiro lugar eu vou dirigir esta mensagem exatamente para homens e mulheres que servem Portugal nas Forças Armadas e Forças de Segurança, vou ter um carinho especial e um cuidado especial para dirigir esta mensagem a dois grupos, digamos assim. Antes de mais os doentes. Sejam aqueles doentes que estão acamados, nos hospitais, sejam aqueles doentes que vivem verdadeiros tormentos dentro da alma, dentro do espírito, portanto, para vós, cara irmã e caro irmão doente, que padece no sofrimento e no sacrifício, lembre-se. Nunca estamos sós. Há sempre uma companhia, uma presença na vida que nós sentimos no pulsar do coração, que irrompe. A outra mensagem gostaria de a dirigir às mulheres e homens portugueses que estão em missões internacionais. Vou fazer o nome de algumas delas, apenas algumas delas, sem as escutar. Estão neste momento na República Centro-Africana alguns dos nossos estão inclusivamente a proteger pessoas concretas, junto a uma paróquia e a uma igreja que até, para nós portugueses, tem um significado especial, junto da paróquia de Nossa Senhora de Fátima, os nossos militares estão a proteger pessoas, mulheres, homens, crianças. Pensos nos nossos militares e Forças de Segurança que estão no Afeganistão, aqueles que estão no Iraque, aqueles que estão no Mediterrâneo, aqueles que estão na Somália, na Europa também temos pessoas do Exército, da Força Aérea, de Forças de Segurança e da Marinha, na Polónia, na Roménia…enfim, para todos aqueles que em nome de Portugal, em nome da paz, em nome da liberdade, em nome da felicidade, em nome da alegria, estão em missões, fora do seu lar, vão passar o Natal afastados da família, um bem haja para vós e quero-vos dizer que eu tenho presente, bem como todos nós que cá estamos, e rezamos por vós.
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