Decorreu hoje, 11 de dezembro, na Igreja da Memória, Sé Catedral da Diocese das Forças Armadas e de Segurança, a Tomada de Posse Canónica de D. Rui Valério, como Ordinário Castrense.

Na Cerimónia estiveram presentes o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, os Chefes dos Ramos, o Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana, um representante do Diretor Geral da Policia de Segurança Pública, Almirantes, Oficiais Generais e vários Dirigentes do Ministério da Defesa Nacional, da Administração Interna e de outros Organismos e muitos Oficiais, Sargentos Praças e Funcionários Civis que quiseram assistir e participar no ato.

No início da Cerimónia, D. Rino Passigato, Núncio Apostólico, que concelebrou juntamente com os Capelães Militares, que constituem o clero desta Diocese Castrense, leu as Letras Apostólicas da nomeação e, no final, depois de lida a Ata da Tomada de Posse, procedeu-se à assinatura da mesma.

A Celebração contou com uma Guarda de Honra ao Altar constituída por cadetes dos três Ramos das Forças Armadas e das Forças de Segurança e a Animação Litúrgica esteve a cargo do Coro da Marinha. Os Toques de Homenagem aos Mortos foi executado pela Fanfarra do Exército e alunos dos Pupilos do Exército serviram ao Altar como Acólitos.

Transcrevemos a Homilia proferida pelo prelado:

“O tempo que na Igreja nos está a ser dado viver é o Advento que constitui uma oportunidade não só para uma revisão de vida, mas mais ainda, para revisitarmos o que é genuinamente cristão e que foi uma das principais pérolas que o cristianismo ofereceu ao mundo, tendo, desse modo, contribuído para a formação do modelo de cultura e sociedade a que normalmente chamamos “ocidental”.

De facto, o Advento focaliza-se na Vinda do Salvador, que já veio, vem e virá. Toda a nossa atenção e todas as nossas esperanças se dirigem para Ele na medida em que “virá libertar e resgatar…”. A possibilidade de um Salvador remete-nos, necessariamente, para a certeza da Salvação. Na verdade, não pode haver Salvador sem salvação, senão que Salvador seria? E assim, à luz desse Messias Salvador, nós afirmamos a nossa fé na salvação do mundo, na salvação da história, da humanidade e de cada um. Nada é tão genuinamente cristão como a certeza de que nunca nada está perdido. A salvação é tanto certeza como vocação — tudo o que é, é chamado a ser redimido. Esta foi, porventura, uma das dádivas mais marcantes que o cristianismo concedeu ao Ocidente: a certeza da salvação. E foi à sua luz que se construiu e continua a construir a história da cultura ocidental. Desde a ciência moderna, ao surgimento dos Estados-Nação modernos, tudo brota dessa ideia-fundacional, aliada à figura de Jesus, a partir da qual não nos resignamos a forças opressivas, a circunstâncias ou a movimentações históricas. E até mesmo figuras tão aparentemente distantes do cristianismo como Marx e Freud, afinal baseiam as suas propostas no tesouro da salvação: para Marx, o passado era de exploração, mas o presente é de luta para que o futuro floresça em “amanhãs que cantam” e Freud aplica à sua teoria o esquema claramente evangélico: se o passado foi regressão e neurose, o presente é terapia e o futuro é cura.

O Evangelho que acabámos de ouvir (Mt 18, 12-14) vem concretizar, através de um gesto real, o significado e o alcance da salvação: trata-se de uma parábola simples, que, no entanto, constitui um tesouro da literatura ocidental, a partir da qual tão maravilhosamente se tem feito poesia, se tem elaborado doutrina social e se tem afirmado o valor e a dignidade da pessoa humana. Enfim, uma parábola humilde, bem ao jeito de Jesus, que, porém, tem força revolucionária.

Desde logo porque a coragem do pastor o eloquente retrato bíblico de um Deus que zela pelo bem-estar e a felicidade do ser humano impele-o a deixar no deserto as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que se havia perdido: não há dúvida de que uma tal atitude desconcertante nos cria alguma admiração e até embaraço. Porque não está na ordem normal das coisas pôr em pé de igualdade uma quantidade tão expressiva, 99, com a insignificância de apenas uma unidade… Quando o nosso juízo assenta preferencialmente na quantificação, no peso dos números, a soma avultada de 99 não se equipara, de modo algum, à irrelevância de um só. E, contudo, foi a reviravolta desta forma de pensar que Jesus visou com esta modesta, mas incisiva parábola. Para Ele, tem tanto valor, tanto peso, tanta importância uma multidão de gente como uma única pessoa! Vale tanto uma pessoa como a humanidade inteira. Esta é a carga revolucionária da sua mensagem, em ordem à afirmação indiscutível da dignidade da pessoa humana e, também, em ordem ao estabelecimento de uma sociedade de rosto autenticamente humano, onde o peso dos números se cala face ao valor inestimável da pessoa. Na sua singularidade, na sua individualidade, na grandeza da sua dignidade.

Não sou dos que se mantêm cegos face aos avanços civilizacionais que nós, no Ocidente, e também aqui em Portugal, já alcançámos, precisamente no que ao sentido do valor da pessoa diz respeito. Por uma pessoa, por uma apenas, não tenho assistido apenas à afirmação do respeito, mas também já testemunhei a mobilização de muitos meios, de muita gente, quando se tornou evidente a necessidade de proceder ao seu resgate. E estou, naturalmente, a falar das Forças Armadas e Forças de Segurança. Todavia, deparamos ainda com alguns sinais contraditórios na sociedade atual: em determinadas circunstâncias, parece que o facto de serem poucos, ou ser-se parte de uma pequena e irrelevante franja ou pertencer a um grupo sem peso mediático provoca uma avaliação menos personalista do seu valor.

Entendo que um dos contributos que nós, Forças Armadas e Forças de Segurança, podemos e devemos dar hoje à sociedade, pós-moderna e pós tantas coisas que fervilha na cultura do niilismo, é, ao lado da nossa missão e vocação específicas, também o sentido do valor incomensurável da pessoa, de cada pessoa.

Mas, além de desvendar referências antropológicas, o evangelho entende abrir horizontes de contemplação do verdadeiro rosto de Deus. Na verdade, uma das imagens mais usadas e ousadas ao longo de toda a bíblia é precisamente a do Pastor. E é essa que aqui regressa, na parábola hoje lida, com o intuito de nos revelar um Deus que não exige do ser humano sacrifícios ou oblações. Que não o põe, perdoem-me os militares, em sentido… mas que vai à procura. É, de facto, um retrato inesperado de Deus! Quem julgaria ver esse Deus omnipotente e santo sujar as mãos com o cuidado quotidiano de cada ser humano? Porém, na parábola hoje proclamada Deus é alguém que se faz à estrada para procurar cada um nos caminhos lamacentos da vida. E por mais tresmalhados que estejamos, nunca nos dá por definitivamente perdidos, pondo-se no nosso encalço, por montes e vales, até nos encontrar nas zonas mais recônditas e obscuras da floresta da nossa ingratidão. A paciência de Deus é infinita e o seu amor não tem limites, por isso, jamais desiste de alguém. A especialidade de Deus é fazer-se ao caminho, ao encontro de cada um, até o recuperar para a sua companhia. E, por vezes, fugimos para bem longe dele, para os locais mais abstrusos ou de mais difícil acesso, obrigando o próprio Deus a percorrer estradas secundárias e até caminhos de terra batida… Mas Ele não desiste. Porque nenhum pai autêntico pode alguma vez desistir do seu filho, por mais desnorteado que esteja. É isso mesmo a dignidade inalienável do ser humano: porque somos amados eternamente por Deus, independentemente dos nossos méritos, gozamos no seu coração de pai de um valor desmedido. O ser humano é esse tesouro com que todos os dias nos confrontamos, sem dúvida merecedor de empenho, compromisso, ação e dedicação.     

“E se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo que se alegra mais por causa dela do que pelas noventa e nove que não se tresmalharam.” (Mt 18, 13). Refere-se aqui uma das maiores aspirações do ser humano: a alegria. Em função dela está disposto a tudo, por ela faz sacrifícios e passa privações…

Jesus, na sua iluminada sabedoria, alia a “alegria” ao “encontro”. É o encontro com quem estava perdido que suscita alegria porque representa o sucesso da salvação. Quando falta a capacidade de sair para fora de si mesmo e ir ao encontro do outro, não só não é possível concretizar o sonho vivo da esperança, mas nem sequer é possível uma sociedade de rosto iluminado. Se cada fação ficar fechado no reduto do seu individualismo, sem querer cooperar com os demais, nunca acenderá uma centelha de luz que ilumine o mundo.

Vamos assim pôr a nossa condição de homens e mulheres sob a força protetora deste Pastor que não se cansa de nós, deste Deus que deixa a sua zona de conforto para resgatar o que estava perdido. Sejamos nós também, à sua imagem e semelhança, fautores de salvação para todos os que andam por caminhos ínvios. E não passemos pelas bermas da cidade com olhar indiferente aos que nela vivem ou sobrevivem, para que se realize definitivamente essa salvação em função da qual Jesus veio até nós e entregou a sua vida.”