“Vós sois filhos da luz e filhos do dia” (1 Tes 5, 5)

A historieta é bem conhecida, mas vale a pena recordá-la. Numa cidade cosmopolita, havia um velho estabelecimento comercial que tinha sobre a porta a designação da actividade: “Loja dos dons de Deus”. Curiosamente, era a menos frequentada. Mas um jovem, tomado de curiosidade, decidiu-se a entrar. E, em antigos depósitos de madeira, viu escrito o nome de imensos produtos. Perguntou se eram caros. O dono, um simpático ancião, garantiu-lhe que eram muito baratos. Assim sendo, o jovem aventurou-se a pedir o máximo daquilo que sentia fazer-lhe falta. Como quem pede vários sabores de gelado em dia quente de verão, olhou para os produtos e pediu amor, coragem, fé, alegria, esperança, paz, respeito, solidariedade, salvação, ânimo, humildade. E muito mais. Lentamente, o dono da loja percorreu os depósitos e meteu tudo num tão pequeno saquinho que cabia na palma da mão. “Só isto?” – perguntou o comprador. “Chega” – respondeu-lhe o velho. “É que na loja dos dons de Deus não se vendem frutos. Só sementes”.

A parábola do Evangelho de hoje tem muito de comum com esta historieta. É uma parábola típica deste final de ano litúrgico, quando o espírito da celebração nos obriga a colocar-nos a pergunta radical: como vai a tua vida? Está cheia de frutos das sementes que Deus depositou em ti ou vazia de sentido e de qualidades? Com os dons que Deus te deu tens ajudado o mundo a crescer em humanidade e a tornar-se rico dos valores que não escravizam, mas elevam o homem, todos os homens, a experimentar e exprimir a dignidade de filhos de Deus?

De facto, a parábola dos talentos não nos deixa indiferentes: ela é para nós. Somos nós os directos colaboradores deste senhor rico e generoso –o próprio Deus- que deposita nas nossas mãos dons de elevado valor. Ele parece retirar-se da história para que possamos ser nós a edificá-la no exercício da nossa liberdade pessoal. Mas isso não denota desinteresse. Pelo contrário: Ele não quer uma história fruto do acaso, mas que siga numa direcção precisa. Por isso, quando menos se espera, Ele vem confrontar os colaboradores com a obra realizada. E quem produziu frutos de humanização, é elogiado. Quem, mesmo que aparente honestidade, não colocou os dons recebidos ao serviço dos irmãos, é excluído do convívio desse Senhor e lançado nas trevas. Porque Ele é luz, a luz do mundo.

É para aqui que se dirige o ensino da parábola. Ou por medo, ou por desinteresse, ou por indecisão, ou até por falsa segurança de não perder o que ainda resta, há sempre a tendência de deixar estar as coisas como estão e enterrar o talento. Assim acontece na nossa relação com o mundo e com a Igreja. Imaginamos que, no mundo, nada podemos fazer contra o mal estrutural. Por exemplo, perante o fanatismo violento e assassino do Califado Islâmico ou dos bandidos que fazem desaparecer centena e meia de jovens para vincarem bem a lei da droga. Ou que não conseguimos intervir no campo da cultura dos costumes e das leis porque estes constituiriam o domínio quase exclusivo de poderosas organizações que se reúnem secretamente, nas trevas do desconhecido, para, em segredo, planearem a desintegração da sociedade por intermédio da destruição, subtil mas eficiente, desse cimento da coesão social que é a fé religiosa e a sua consequente dimensão ética ou moral. E dentro da Igreja corremos o mesmo risco de imaginarmos que, neste tempo de aridez, já não é pouco mantermos o que nos resta. Ou, para usar a conhecida expressão, com o pretexto de conservarmos a catedral, conservarmos antes as teias de aranha. O Papa Francisco não se cansa de nos alertar: não chega uma pastoral de simples administração ou conservação, mas a natureza do Evangelho reclama um estado permanente de saída, de missão, de inovação, de ida às periferias (cf EG 25).

Esta é a vocação cristã: a capacidade de reconhecer a própria dependência de Deus, origem de todos os dons, e de colaborar com Ele na edificação da história, gerando “novos céus e nova terra onde habite a justiça” (2 Ped 3, 13). É que os talentos não podem não ter consequências sociais. O cristão aprende a viver em modo sóbrio e solidário, consciente de que, esteja onde estiver, ninguém pode ser afastado da mesa da alimentação e do convívio do mundo. Por isso, vive com sabedoria o valor do tempo, como espaço de redenção da sociedade, da história e de todas as coisas negativas que nelas ainda se encontram.

É o que procuramos fazer com esta campanha, promovida pela Caritas Portuguesa, dos “dez milhões de estrelas, um gesto pela paz”. Queremos recordar aos dez milhões de portugueses que os muitos milhões de lâmpadas eléctricas que se acenderão por motivo do próximo Natal não chegam para aquecer os corações e a vida, elevar os enlodados na indignidade da pobreza e mudar a história do mundo. Quando muito, mudarão a história das caixas registadoras do comércio. Por isso, queremos acender a estrela que sois vós, a estrela da vossa consciência, o lugar íntimo onde ressoa a voz de Deus que interpela e compromete. E dez milhões de estrelas darão muita luz, farão recuar muitas trevas, iluminarão muitos aspectos da vida até agora desconhecidos, gerarão muita harmonia pessoal e colectiva a que damos o nome de paz.

Ainda nos lembramos da primeira leitura? Falava da mulher virtuosa e providente, capaz de organizar a vida dessa casa dos sonhos e do amor que é a família, mas também pronta a acolher o mundo no seu coração: “Abre as mãos ao pobre e estende os braços ao indigente” (Prov 31, 20). A Igreja vê nesta passagem bíblica uma antevisão de Nossa Senhora, a encarnação da sabedoria, da providência e da solicitude divinas. Nela, os dons de Deus não foram escondidos no cofre das falsas seguranças da própria vida. Mas os talentos recebidos germinaram no seu ser a ponto de se tornarem luz e salvação para o mundo.

Aqui, neste santuário de Fátima, pedimos a Nossa Senhora nos ajude a fazer como ela fez e a ser como ela é.

Manuel Linda