Estes textos bíblicos, agora mesmo proclamados, não foram escolhidos propositadamente para esta nossa celebração: são as leituras que a Igreja propõe aos cristãos de todo o mundo no dia de hoje. E, entretanto, elas são preciosas para o nosso contexto: motivam a possibilidade de uma reflexão que se prenda com a nossa razão de ser e os critérios da nossa actuação.

Ainda nos lembramos delas? A primeira contava como um crente, chamado Estevão, é falsamente acusado e condenado. Trata-se do primeiro mártir cristão, já que, depois dele e como ele, uma série incontável de homens e de mulheres de todas as idades e condições sociais, tiveram de pagar com o sangue e o extremo sofrimento a ousadia da fidelidade à fé em Jesus Cristo e o «atrevimento» da caridade em favor dos outros, seus concidadãos. E porquê? Porque o Espírito de Jesus ressuscitado lhes incutiu a coragem e o sentido de orientação de vida, mesmo que tivessem de navegar a contracorrente da cultura dominante. Na mente do escritor sagrado é muita clara a associação da «história» de Estevão com a de Jesus, pois ambos os processos seguem os mesmos passos: as mesmas falsas testemunhas, o mesmo ódio da parte dos acusadores e, da parte de Estêvão, o mesmo olhar fixo em Deus e as mesmas palavras de perdão para os seus algozes, como Jesus para com aqueles que O crucificavam. Por seu lado, o Evangelho, vinca bem esta necessidade de identificação entre o crente e o seu Senhor: a partir do acontecimento da multiplicação dos pães, Jesus vai fazer uma longa catequese sobre o Pão da Vida. Para fazer ver que, para além do necessário pão para o corpo, o verdadeiro alimento é a fome de Deus, a fé e sua vivência nos sacramentos. O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes era apenas um sinal: da mesma forma que, biologicamente, não sobrevivemos sem alimento, também como homens, como grupo, como comunidade e até como povo, não nos aguentamos facilmente sem esse alimento que é Ele próprio, o Senhor ressuscitado. Acreditar em Jesus e viver dessa fé é um verdadeiro alimento que gera um específico timbre de vida nova nas pessoas e nas comunidades.

Então, para nós hoje, aqui e agora, que nos dizem este martírio de Santo Estevão e a adesão à vida nova que Jesus nos traz?

Sabemos bem que, no mundo, está presente o insondável mistério do mal que se opõe fortemente à realização integral da pessoa humana e, por vezes, até a aniquila e a destrói: sonhamos com vida e deparamo-nos com violência e homicídios; queremos segurança e confrontamo-nos com quem atenta contra pessoas e bens; aspiramos à sociedade pacífica e sabemos que o regime democrático também tem inimigos; etc. etc. É o mistério do mal na sua plenitude e profundidade, inerente à liberdade humana: a mesma liberdade de fazer o bem possibilita-nos também a liberdade física de operar o mal. Claro que gostaríamos que não fosse assim: preferíamos só a liberdade do bem. Mas essa seria determinismo e não liberdade humana. Seria pré-programação ou automatismo. Mas a liberdade pessoal conjuga-se com opção e opção sensata: para que meta quero caminhar ou com que critérios pretendo edificar a minha vida? Daqui que, ao contrário dos animais, nos construamos como homens e, indirectamente, como povos, à medida que formos capazes de canalizar a nossa liberdade para a prática daquelas acções boas, nobres e justas que nos realizam e edificam, em detrimento daquelas más que só nos arruínam e destroem. Em poucas palavras: abrem-se à nossa frente dois caminhos: o que nos leva a olhar para baixo, para os animais e parecermo-nos como eles ou o de olhar para o alto, pôr os olhos em Deus e agir como Ele age.

É com este omnipresente e impenetrável mistério do mal que lida esta força de segurança que é a por mim muito admirada Guarda Nacional Republicana. Lida com os abismos do mal em toda a sua plenitude: mal moral dos crimes, homicídios e violência de toda a ordem; mal social causado pelos inimigos da ordem pública e da sociedade democrática da boa convivência em liberdade; e até lida com o mal físico da doença e da velhice, observável nas muitas campanhas e programas de apoio a idosos. Aliás, é o que a lei lhe atribui, embora dito por outras palavras: “A Guarda tem por missão, no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e protecção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei”.

Como cumprir esta missão tão nobre e tão difícil? Como proceder para que a liberdade humana seja, para todos, liberdade do bem e para que a sociedade se humanize a ponto de atingir esse alto ideal da modernidade que é a fraternidade, tornando-se, assim, família de irmãos? Para isso, é inegável o valor do progresso cultural e civilizacional, o contributo indispensável da educação, a força persuasiva e preventiva da lei e até aqueles sentimentos de interdependência que arrancam da natural condição humana da necessidade do outro para a sua própria sobrevivência. Mas, tudo isto, pode parecer exterior à pessoa e até imposição de fora. E a imposição possui sempre o cunho de odioso. Por isso, nós, os cristãos, acrescentamos algo que é muito mais interno e profundamente humano: um coração bom e generoso, trabalhado pela força do Espírito de Deus e da nossa vontade e formado continuamente segundo o exemplo do coração bondoso e magnânimo de Jesus Cristo que não reserva nada para Si, mas Se dá todo aos outros, até ao fim, até à dádiva da própria vida.

Caros militares da GNR, enquanto bispo e enquanto crente é o que ouso propor-vos. Usai sempre um coração cheio do Espírito de Jesus ressuscitado na vossa nobre função social. Mas em círculos concêntricos que se alargam. Começai na ordem da vossa vida familiar: afastai o mal da divisão, da tristeza, da incompreensão, do egoísmo, da insensibilidade, da violência e outros e redimi-os na generosidade operativa de verdes na pessoa do familiar o próprio rosto de Jesus. Sim, vede Jesus na vossa esposa ou marido e nos vossos filhos e as relações familiares transformam-se. Depois, privilegiai aqueles que participam da vossa condição de servidores do bem público na mesma força de segurança. Conhecemos bem as imensas carências e dificuldades que alguns têm de suportar nos difíceis tempos que correm. Pois, é aí que mais se reclama a nossa presença solidária no amparo emocional, na proximidade afectiva, no apoio psicológico e, obviamente, em todos os tipos de ajuda, incluindo a económica. Evidentemente, para se chegar a esta actuação positiva, mas difícil, há que, previamente, retirar as negatividades em que, muitas vezes, nos enrolamos: a competição doentia, os ciúmes que levam à inveja, a indiferença que mata, a frieza que nos separa, as incompreensões que podem conduzir ao desejo de vingança.

Sim, que a GNR se distinga, a nível interno e da família, por este timbre de qualidade relacional que, em termos religiosos, poderíamos denominar como fraternidade de irmãos. E se estes valores forem vividos com convicção, acabam por passar para o exterior, na vosso missão social, e sereis agentes privilegiados da edificação da civilização do amor, da liberdade, da justiça e da paz, ao fim e ao cabo, anseio profundo de todos os homens e mulheres, mesmo que o não formulem.

Invoco para vós e para esta missão o especial auxílio da nossa Padroeira, Nossa Senhora do Carmo. Que com a sua solicitude materna se ponha fim ao abismo do mistério do mal e, no Espírito do seu Filho ressuscitado, participemos na qualidade da Sua vida nova.

 

Manuel Linda