DA HOSTILIDADE À HOSPITALIDADE
A Marinha Portuguesa celebra hoje o seu dia com a satisfação do dever cumprido. Herdeira e continuadora do melhor espírito aventureiro e globalizador dos marinheiros de todos os tempos, tem plena consciência do seu inestimável contributo para a edificação de um mundo que se conheça e reconheça como habitado pela mesma humanidade, portadora dos mesmos direitos e deveres, não obstante as diferenças que a constituem. Diferenças que não podem constituir títulos de superioridade ou inferioridade, mas vias de acesso à completa fraternidade de irmãos, iguais em dignidade, mesmo que diferentes na cor da pele, nos costumes, nas línguas e na religião. É a grande complementaridade que torna rico e belo este nosso mundo que aspira a uma nova alma, uma nova sensibilidade ética, a tornar-se a casa comum em que todos caibam e possam coabitar em paz e em segurança, ultrapassando as estreitas fronteiras dos nacionalismos políticos e económicos. É esta nova cultura que fará esquecer a hostilidade e a substituirá pela hospitalidade, atitudes antagónicas, é certo, mas que, quer na etimologia das palavras, quer na realidade do dia-a-dia, se aproximam mais do que desejaríamos. Os portugueses que chegaram a Calecute, na Índia, a 20 de Maio de 1498, capitaneados por Vasco da Gama –motivo direto para celebrarmos hoje o Dia da Marinha- mesmo, porventura, sem se darem conta do alcance futuro do seu gesto, estavam no sentido da história ao contribuírem determinantemente para este mundo mais unido, em ordem à profunda fraternidade de irmãos sob a comum paternidade de Deus.
Claro que as grandes ações humanas supõem sempre investimento, sacrifício e dor. Viver humanamente, por natureza, já reclama a sua quota de renúncia a tanta coisa e até uma certa imolação. Mas viver ao nível do abrir sulcos para o encontro de uma humanidade que nem sequer se conhecia, pressupõe uma forte dose de sofrimento e aflições. Não é impunemente que tripulamos o navio da vida e, muito mais, os navios que sulcam os mares Por parte dos intervenientes diretos e por parte dos seus familiares. Ontem e hoje. Como sabemos, os nossos poetas cantaram bem estes factos.
Ora, precisamente pela ação realizada, temos motivos para ação de graças a Deus que deu força e coragem para isso. Agradecemos sermos hoje um mundo mais unido que há alguns séculos atrás. Pedimos que, no presente e no futuro, sejamos dignos deste passado. Suplicamos a bênção consoladora para quantos sofrem e se privam de tanta coisa por causa das ausências inerentes às missões: as esposas ou maridos que têm de suportar o afastamento dos cônjuges, os filhos que não podem brincar com os seus pais, os pais que não podem contar histórias de embalar aos seus filhos, os amigos que se privam do convívio dos seus afeiçoados, a solidão do mar, os trabalhos redobrados das tempestades, etc. Por tudo isto, sempre no respeito mais absoluto pela liberdade de consciência de participar ou não participar, no Dia da Marinha tem pleno cabimento uma celebração religiosa, como esta Missa.
Hoje, curiosamente, o Evangelho fala-nos de caminhos. S. Tomé lamentava-se de não conhecer o caminho de acesso ao Pai comum da humanidade, de Quem Jesus tanto tinha falado no decurso da Sua vida pública. Então, Jesus apresentou-lho com toda a clareza e proximidade: “Eu é que sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim”. Implicitamente, fica garantido com toda a segurança: a humanidade não se sentirá filha do mesmo Pai se não seguir por Jesus Cristo. E se não tiver um Pai comum, como se poderá sentir unida e irmã?
Eis, pois, a necessidade de seguir o caminho apontado por Jesus. Caminho que é Ele mesmo. Claro: compreendemos que, biblicamente, a palavra «caminho» se deve entender como uma metáfora. Representa o sentido da vida humana, a sua meta, sua conduta e comportamento, aquilo que faz e aquilo que sabe evitar. E é nisto que o caminho do homem, de cada homem individualmente e da humanidade em geral, se pode encontrar ou afastar dos «caminhos de Deus». O caminho do homem encontra-se com os de Deus quando a verdade, a justiça, o bem e a beleza não são mero produto por nós fabricado, mas aproximação e adesão perfeita à plenitude da Verdade, da Justiça, do Bem e da Beleza que é o próprio Deus revelado em Jesus Cristo. E, deste modo, o caminho do homem funde-se no caminho de Deus. Como tal, Jesus pode garantir-nos que, só caminhando por Ele chegaremos ao Pai: “Ninguém vai ao Pai senão por Mim”. Não tanto pelos Seus mandamentos ou normas práticas. Mas pela plenitude da adesão íntima Àquele que, sendo o verdadeiro Homem é também o verdadeiro Deus.
Caros cristãos, em Portugal, encerra-se hoje uma semana dedicada à temática da vida, proposta pela Igreja, subordinada ao tema: “Gerar Vida – Construir Futuro”. A reflexão sobre este tema é um desafio que se lança a todos –pessoas e instituições- para pensarmos no valor da vida, sua qualidade e santidade. E sua direção. Uma vida que se feche em si, perde-se; mas se se doa, edifica e perdura. E faz passar as outras vidas da hostilidade à hospitalidade. É o exemplo de Jesus Cristo. Também nisto Ele é caminho para a única Verdade. Damos graças a Deus porque, muitas pessoas e instituições, a começar pela Marinha, entenderam isto muito bem.
Manuel Linda