Para assinalar o Dia Mundial do Doente, o Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa e Polo do Porto, promoveu ontem, dia 10Fev, às 10h00, uma conferência proferida pelo Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, D. Rui Valério, intitulada “A Eutanásia nos limites da Civilização”.
Realizada presencialmente no auditória do HFAR de Lisboa, com a participação de Médicos, Enfermeiros, Auxiliares, Capelães… foi seguida por video-conferência pelo HFAR do Porto.
Para além dos participantes, estiveram: o Diretor de Saúde Militar MGEN Rodrigues Batista, o Diretor do HFAR Comodoro MN Quaresma Guerreiro, e o Presidente da Liga dos Amigos do HFAR TGEN Vizela Cardoso, entre outras entidades.
Após a Conferência seguiu-se um interessante diálogo-debate que demonstrou bem o interesse da temática e a sua pertinência.
Depois, o Senhor Bispo foi visitar todos os doentes oferecendo a cada um um símbolo da Esperança, acompanhado de uma pagela com a Oração da Confiança.
Disponibilizamos o texto da Conferência proferida pelo Bispo D. Rui Valério:
A EUTANÁSIA NOS LIMITES DA CIVILIZAÇÃO
Hospital das Forças Armadas – Lisboa e Porto
A Eutanásia é um tema transversal aos mais diversos âmbitos da vida individual, social e cultural. Embora esteja a ser discutida sobretudo em âmbito legislativo, diz respeito à vida de todos os cidadãos enquanto pessoas. E tudo o que for decidido relativamente à questão da eutanásia tem implicações no todo existencial da sociedade e na vida quotidiana dos cidadãos.
Desde há muito tempo que se tem vindo a discutir sobre a possibilidade de recorrer à Eutanásia como solução para o problema de doença prolongada ou de um intenso sofrimento físico. Pretende-se que tal prática, até agora ilícita do ponto de vista jurídico, seja finalmente legalizada, como já acontece noutros países.
A Eutanásia não é para confundir com a «obstinação terapêutica», distinção que nem sempre é bem entendida, como se se quisesse meter em ato todas as possíveis intervenções médicas, sem uma prévia avaliação considerando as razões fundadas para se ter esperança de uma possível cura e de uma justa proporcionalidade da cura.
Contudo, enquanto que no caso da renúncia à chamada obstinação terapêutica, a morte é vista como um mal que não pode ser evitado, no caso da Eutanásia a morte vem explicitamente procurada e é provocada, quer seja de Eutanásia ativa, através da ministração de substâncias letais no doente, quer seja na sua forma mais passiva, com a omissão de tratamentos e outros apoios necessários à sobrevivência – como por exemplo interromper a própria alimentação, ou recusar dar de beber.
A intenção de quem pratica um ato eutanásico não é o de resignação face à inevitabilidade da morte, mas sim a escolha explicita, de pôr fim à existência do doente.
A Eutanásia podendo ser praticada contra a vontade do doente, se o fosse, configurar-se-ia como homicídio. Ou então, mesmo que viesse a satisfazer um seu pedido, teríamos sempre a satisfação de uma vontade, a do doente, de colocar um fim à própria vida. Neste último caso, a Eutanásia viria a identificar-se fortemente com o chamado «suicídio assistido», no qual é o próprio doente a dar a morte a si mesmo, mediante um auxílio que lhe é proporcionado da parte do pessoal médico, o qual lhe prepara substâncias letais que o doente toma de maneira autónoma, com as suas próprias mãos.
Assim, o suicídio assistido só formalmente é que se diferencia da Eutanásia uma vez que, em ambos os casos, a intenção do ato e os seus efeitos são precisamente os mesmos, ou seja, a morte da pessoa.
A admissão desta prática teria consequências extremamente relevantes do ponto de vista cultural, na medida em que o suicídio assistido é entendido, pelos seus promotores, como um direito que deve ser garantido e satisfeito a quem sofre de uma doença incurável, como expressão da liberdade pessoal. Para tanto, bastaria apenas a manifestação da vontade de não querer continuar a viver, e a esta intenção deveria ser dado, imediatamente, seguimento e posto em prática.
Devemos parar e olhar com atenção para esta passagem crucial que constitui a principal base de apoio à posição de quem reivindica o direito ao suicídio assistido, mas que, ao mesmo tempo, representa o ponto de maior fragilidade do raciocínio que a orienta. De facto, considerar que satisfazer o pedido de quem quer morrer equivale a salvaguardar a liberdade pessoal, é não só colocar a liberdade a depender somente de impulsos individuais, mas, sobretudo, é confrontar-se com uma contradição que, moralmente, pode ser formulada da seguinte forma: em que medida é que a salvaguarda (a salvação) da liberdade pessoal, a sua exaltação e afirmação máxima realiza-se em tirar a própria vida; para salvar a liberdade tem de se sacrificar a própria pessoa… como é que é possível que se tenha de chegar ao ponto de se ter que eliminar a vida para se dizer que essa é a máxima liberdade?!
Queremos dizer que, mesmo no caso de doença grave não se pode aceitar o princípio pelo qual o pedido para morrer deva ser executado só porque tal pedido advém da liberdade da pessoa. Também sentimos alguma dificuldade em aceitar quem afirma que a decisão de dar a morte a si mesmo, uma escolha de autêntica liberdade, pois não se pode conceber a liberdade como um contentor que tenha se ser atuado com qualquer conteúdo, isso, no limite, significaria que a decisão de morrer ou de viver são iguais e equivalentes. Não são! Porque senão não haveria nenhuma razão para impedir qualquer o suicido de quem quer que seja. Se assim fosse, era o próprio fundamento da vida e da convivência social que estariam comprometidos.
2. O VALOR DO PRIMADO DA VIDA
A vontade de pôr fim à vida, mesmo quando atravessada por doença e sofrimento, pode revelar uma mentalidade que hoje está muito em voga, ou seja considerar que quem sofre é um peso para os outros. O doente torna-se como que um peso para a família. Na sociedade altamente embebida de mentalidade técnica, como o é a nossa, emerge um dado paradoxal: por um lado aprecia-se o forte, o pujante, promove-se o competente e a competência, o eficaz e a eficácia, mas em relação ao débil, ao fraco, ao vulnerável é cada vez mais difícil acompanhá-lo, apoiá-lo e até mesmo compreendê-lo, ou mesmo ajudá-lo. Gunther Anders, filósofo alemão de origem judaica, que nos anos trinta teve de emigrar para os EUA, (esteve casado com Hanna Arendt, aluno de Heidegger) e foi trabalhar para a Ford. Escreveu ao seu mestre, Martin Hedegger “caro Mestre, dizia-nos que o ser humano é o pastor do ser, mas aqui nesta fábrica eu não passo de pastor de máquinas em relação às quais, no entanto, nós estamos em elevadíssima desvantagem: elas não adoecem, nós sim; elas não têm estados de alma, nós sim”…
Uma sociedade que é eficientíssima a condecorar os fortes, mas hesitante e ineficaz a acompanhar os frágeis e débeis, e mesmo o auxílio à fragilidade é interpretado e visto como um ato heroico.
O doente sente-se, ele próprio, um peso, porque o apoio que recebe assume um aspeto cada vez menos humano e social. Na balança do custo-benefício, o tratamento de quem tem necessidade aparece, muitas vezes, como desadequado, demasiado incerto… é realmente dramático que a condição de quem é menos autónomo e mais dependente seja percecionada como um desperdício para a família, para a sociedade e para a comunidade dos fortes.
Ser um peso para os outros é, em termos psicológicos, a causa dos maiores dramas. Chegar ao ponto de sentir que já não é mais do que um peso, um fardo… acho que isso é o verdadeiro inferno. Mas esta avaliação só resulta de uma cultura, de uma mentalidade. Quando a sociedade está rendida a avaliar tudo, e também o ser humano na perspetiva da utilidade, que se explicita fundamentalmente para nós, dentro do binómio “produzir” ou “consumir”: e se a pessoa já não produz, nem consome, então só atrapalha. Temos um caso edificante.
A tecnologia não está ao serviço do homem quando o reduz a uma coisa, quando distingue entre aqueles que ainda merecem ser tratados e aqueles que não merecem, por serem considerados apenas um fardo, e por vezes — na verdade — um descarte. A prática da eutanásia, que já se tornou legal em vários países, só aparentemente visa promover a liberdade pessoal; na realidade, baseia-se numa visão utilitarista da pessoa, que se torna inútil ou pode ser equiparada a um custo, se do ponto de vista médico ela não tiver esperança de recuperação ou não puder evitar mais a dor. Pelo contrário, o compromisso de acompanhar o doente e os seus entes queridos, em todas as fases, procurando aliviar o seu sofrimento através da paliação, ou oferecendo um ambiente familiar num número cada vez maior de hospices, contribui para criar uma cultura e práticas mais atentas ao valor de cada pessoa. Nunca desanimeis por causa de incompreensões que possais encontrar, ou diante da insistente proposta de caminhos mais radicais e apressados. Se escolherdes a morte, os problemas estão de certa forma resolvidos; mas quanta amargura por trás desse raciocínio, e que rejeição da esperança implica escolher desistir de tudo e romper todos os laços! Às vezes, estamos numa espécie de caixa de Pandora: todas as coisas são conhecidas, tudo é explicado, tudo é resolvido, mas apenas uma coisa ficou escondida: a esperança. E devemos procurá-la. Como traduzir a esperança, na verdade, como proporcioná-la nos casos mais extremos.
Quando um doente pede para morrer porque acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece que é um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a tua vida perdeu dignidade, és um peso para os outros». Mas a resposta deve ser outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável para todos nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais carecidos de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de quem não pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
Vendo bem, esta perspetiva mostra como só tem lugar aquilo que traz algum benefício, lucro, ou conveniência material. Devemos estar atentos para não nos deixarmos cair na vertigem da indiferença, e ceder à mentalidade economicista ou tecnocrata que só vê o lucro e a máxima produtividade com o emprego mínimo de meios. Ao doente, como a todo o ser humano, é necessário envolvê-lo de amor, que é a principal força para viver. É necessário fazer sentir ao doente que nunca é, nem será um fardo para quem o rodeia, mas que ele próprio gera em nós proximidade e cura. Na senda da mais sólida e humanista tradição ocidental, onde preside a perspetiva cristã, também nós dizemos que ser pessoa é estar aberto e orientado para o tu de todos os outros. Esses “outros” não são algoritmos, nem números ou códigos de barras, mas são rostos, são histórias de vida, são pessoas. “A pessoa só existe enquanto estiver orientada para os outros, só se conhece através dos outros e encontra-se a si mesma somente nos outros”, como dizia Mounier na sua obra fundamental O Personalismo.
Cada pessoa tem, pois, uma intrínseca e inata necessidade constitutiva de se relacionar com os outros e só se pode realizar através do dom de si e na abertura ao próximo. Somos pessoas, não meros indivíduos e não há ninguém que só tenha capacidade para dar, ou para receber, mas todos e cada um somos sempre e ao mesmo tempo, sujeitos de doação e de receção – damos e recebemos.
A própria doença, se vivida num contexto de relações humanas e verdadeiras, pode assumir contornos muito diferentes e positivos, permitindo compreender e sentir, ao doente que sofre, que ele não recebe apenas, mas que também dá, e muito. Assim, exclui-se desta reciprocidade – de dar e receber protagonizada pelo próprio doente sofredor – digo-o com imenso respeito, mas com igual franqueza, é um ato de incompreensível individualismo, é negar, ou não querer ver, que mesmo em condição de extrema vulnerabilidade é possível ser agente de dádiva.
Eis aqui, pois, um dos fundamentos que possuímos para não aceitar que exista um direito de, a si mesmo, dar-se a morte. Viver é um direito, mas é também um dever, uma obrigação para todos, inclusive para quem está doente. A vida não é propriedade nossa, que só a nós pertence e a nós diz respeito, é, essencialmente, um dom que recebemos e todos nós somos, uns para os outros devedores de amor, partilha e solidariedade.
De facto, a vida não pode ser concebida como um objeto de uso privado, como se estivesse de forma incondicional à disposição do seu proprietário para a usar ou a deitar fora de acordo com o seu estado de espírito ou determinada circunstância. Ninguém vive para si mesmo, como também ninguém morre para si próprio. A vida tem uma referência social e transpessoal, associada ao amor, à responsabilidade, à interdependência e ao bem comum.
E o valor da vida de cada pessoa para toda a sociedade não desaparece quando essa pessoa deixa de ser útil, deixa de produzir, perde quaisquer capacidades, ou pode vir a ser sentida como “peso” pelos outros.
A Assembleia da República prepara-se para discutir e votar a possibilidade de a eutanásia ser praticada em certas condições. Independentemente de existirem diferentes projetos (apresentados por vários grupos parlamentares), o aspeto central é saber se se deve ou não permitir a eutanásia para as situações em que uma pessoa se encontra num sofrimento muito grande em virtude de uma doença incurável e que conduzirá inevitavelmente à sua morte, manifestando essa mesma pessoa de forma livre e totalmente esclarecida a vontade de morrer como forma de evitar esse mesmo sofrimento. Ou seja, deve ou não ser concedido a qualquer cidadão o direito a uma morte “boa”, por compaixão pelo seu sofrimento ou por clemência.
De forma sintética, podemos dizer que subjacente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido está a pretensão de redefinir tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais relativas ao respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar quando o visado quer viver. Consequentemente, intenta-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre merecedora de proteção, porque um bem em si mesma, e porque dotada de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana podem variar e podem perder-se. Ora, na nossa conceção, isto é inaceitável.
Pretendem apenas reconhecer a licitude da supressão da vida, quando consentida, em situações de sofrimento intolerável ou em fases terminais. Desta forma, atentam contra o princípio de que a vida humana tem sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das condições externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não merece proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder dignidade.
Quanto a este argumento, temos de reafirmar que a explicitação mais acutilante da dignidade da vida é o reconhecimento do direito à própria vida. A dignidade é um direito da vida, mas também o viver é um direito da dignidade; por isso é que a vida, sim, é o direito por excelência. A morte não é um direito, é uma inevitável condição do ser humano, por isso a palavra dignidade só se pode aplicar à pessoa enquanto pessoa.
O designado “direito de morrer de forma digna” é uma expressão mal formulada que gera equívocos pois, por um lado, a morte não se constitui como direito, muito pelo contrário: o direito que é consagrado na nossa constituição é o direito à vida e a sua inviolabilidade; por outro lado, não existem mortes mais dignas do que outras, mas a sua inevitabilidade e circunstâncias. É no apoio fornecido em vida que se pode conferir dignidade ao percurso que um paciente percorre até à sua morte, direito que se pode deduzir da leitura da nossa constituição, e relativamente ao qual o estado, em muitos casos, tem vindo a falhar de forma hedionda.
A dignidade humana, que deve ser garantida sempre e também no fim da vida, não passa pelo direito a pedir a morte, mas pela garantia de todos os cuidados para evitar o sofrimento, como indicam os códigos deontológicos dos profissionais de saúde, reafirmados no contexto das reincidentes iniciativas legislativas de alguns grupos parlamentares pelas respetivas ordens profissionais
Quando se discute a legislação de um Estado laico, importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma sabedoria acumulada, um fundamento para as opções a tomar. O valor intrínseco da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações está profundamente enraizado na nossa cultura e tem, inegavelmente, a marca judaico-cristã. Mas não é difícil encontrar na razão universal uma sólida base para esse princípio. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº 1).
A vida humana é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. É também o pressuposto da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular.
O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde, por exemplo.
Por isso, ficamos preocupados e perplexos quando verificamos, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 5/2023, o pronunciamento pela inconstitucionalidade de alguns artigos e alíneas do Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República, cuja apreciação foi requerida. Não vou entrar nesse debate – não é este o lugar – mas quando os juízes são os próprios a constatar que tal Decreto “considera a morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”; e que o número três do mesmo artigo definia que a morte medicamente assistida “ocorre em conformidade com a vontade e a decisão da própria pessoa, que se encontre numa das seguintes situações”, sendo a alínea b) referente à situação de “doença grave e incurável” e “lesão definitiva de gravidade extrema”, então – defende o juiz – “o efeito conjunto da eliminação das palavras fatal, referida à doença, e antecipação, referida à morte assistida descriminalizada, traduz um significativo alargamento dos casos desta: se a menção da fatalidade da doença permitia situar temporalmente os acontecimentos relevantes por referência ao momento provável da morte, a menção da antecipação desta reforçava a ideia de que aquela ocorreria seguramente num futuro próximo”. Ora, no último Decreto essas referências simplesmente desapareceram.
4. O PERIGO DA SELEÇÃO E A URGÊNCIA DA SOLIDARIEDADE
A mensagem que, através da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves implicações sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença e o sofrimento.
Há o sério risco de que a morte passe a ser encarada como resposta a estas situações, já que a solução não passaria por um esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste novo contexto cultural, o amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão encorajados, como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e que se sentem, obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como “solução” para os seus problemas. E também é natural que haja doentes, de modo particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”.
É este, sem dúvida, um perigo agravado num contexto de envelhecimento da população e de restrições financeiras dos serviços de saúde que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê gastar tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas podem ser encurtadas?
Não podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não têm acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento.
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá para atenuar a consciência social da importância e urgência de alterar esta situação, porque poderá ser vista como uma alternativa mais fácil e económica.
E quais as consequências sociais caso venha a ser contemplado, na legislação vigente, a legitimidade do suicídio assistido e da eutanásia? Não é preciso muito para perceber que se abriria uma caixa de pandora a ponto de se cair na banalização do pôr termo à vida, e essa banalização ocorreria com o auxílio e apoio de estruturas médico-sanitárias legais do próprio Estado. A possibilidade de acabar com a vidare presentaria, aparentemente, uma via de escape de modo a garantir a liberdade e por fim ao sofrimento, mas na realidade não se terminava com o sofrimento, mas sim com a vida. Reitero, não se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as técnicas analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável. Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina paliativa e do amor concreto para com quem sofre.
Para além do círculo afetivo dos seus familiares e amigos, a dignidade de quem sofre reclama o cuidado médico proporcionado, mesmo que os atos terapêuticos e os analgésicos possam, pelo efeito secundário inerente a muitos deles, contribuir para algum encurtamento da vida. Neste caso, não se trata de eutanásia, pois o objetivo não é dar a morte, mas preservar a dignidade humana e a «santidade de vida», minimizando o sofrimento e criando as condições para a «qualidade de vida» possível.
Por outro lado, o suicídio assistido mais do que expressar liberdade, gera incerteza acerca do que é mais conveniente, se continuar com a existência se eliminá-la. Repito, viver ou acabar com a vida de um ser humano não pode ser, em momento algum, objeto de hesitação alguma, mas sempre de uma única e só certeza, a opção pela vida. A simples possibilidade de existir um dilema, de continuar ou acabar, é esvaziar a própria vida de sentido, seria um cenário devastador sobretudo para aquelas fases de transição no itinerário de crescimento de uma pessoa e que, por vezes, são tão críticas, senão mesmo dramáticas. Por exemplo o que sucede a um adolescente quando sente que para ser ainda criança já é muito crescido e para ser adultos ainda é muito jovem… Quem se aproxima deles, ouve-se muitas vezes: «prefiro morrer». Esta frase que, aparentemente sem motivo nem razão, mas que eventualmente poderia via a tornar-se concreta e até real!
A introdução da eutanásia também conduziria a outros cenários: por exemplo: a selecionar, mediante o requisito de determinados padrões consagrados pelo Estado, sobre quem poderia ou não ser tratado e curado, e quem não teria esse direito. O caso ocorrido em Inglaterra, ao pequeno Charly a quem, contra a vontade dos pais, foi negada a oportunidade das curas necessárias, representa o exemplo de um caso típico.
Já somos uma sociedade que determina quem, entre os seres humanos, seja pessoa e tenha o direito de nascer e/ou de viver. Os mais débeis e indefesos são eugeneticamente selecionados e se possuírem qualquer defeito ou mal formação já não lhes é consentido nascer. As leis que se anteveem não prometem nada de construtivo ou humanizador, fazendo com que a vida humana seja, cada vez mais, semelhante a um objeto.
Também o sagrado princípio médico cuja missão é servir a vida, viria a ser atropelado.
A dor, o sofrimento, o sentido da vida e da morte são realidades que a mentalidade contemporânea tem dificuldade em enfrentar com o olhar cheio de esperança. No entanto, sem uma esperança firme que o ajude a viver a dor e a morte, o ser humano não consegue viver bem, nem conservar uma prospetiva confiante perante o seu futuro.
“A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre”. (Papa Bento XVI)
+Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança
Lisboa, 10 de fevereiro de 23