HOMILIA DIA DA FORÇA AÉREA – VISEU
XIII DOM C TEMPO COMUM
1. Na cultura iconográfica cristã dos primeiros séculos era prática atribuir um significado específico a cada cor: o vermelho, cor do sangue, representava a vida e, como tal, era aplicado a Deus, fonte de vida; o branco indicava o espírito.Quanto ao ser humano, vinha identificado com acor azul. E a razão desta atribuição é deveras interessante: o ser humano é a única criatura capaz de olhar para o céu. Este poder exercido pelo céu como referência capaz de construir coisas tão grandiosas como uma identidade, uma natureza, foi uma constante ao longo dos séculos. Desde sempre, o céu exerceu sobre a humanidade um extraordinário fascínio e uma fonte de inspiração.
2. Fascínio, porque o homem sempre viu nas alturas um misterioso convite para ele próprio procurar crescer em elevação moral, heroica e humana. O céu sempre se revelou pródigo em auxiliar o ser humano a perscrutar nos recessos mais recônditos da sua alma, porque a sua essência está mais na procura do que na posse; porque a sua vocação de ser pessoa realiza-se mais no sair e caminhar do que no permanecer. Sim, se a presença na Terra levou o ser humano a sentir-se húmus, ou seja, feito do pó da Terra, a contemplação do céu abriu-lhe a paisagem da alma, rasgou-lhe o horizonte da sua dimensão espiritual. A Terra recorda-nos a nossa natureza corpórea e, por isso, material, mas o céu transporta-nos para a galáxia da alma onde nos reconhecemos seres espirituais, habitados e animados pelo Espírito de Deus.
Este dia de comemoração da Força Aérea Portuguesa é de memória e de reconhecimento pelo serviço que tem vindo a prestar a Portugal ao longo dos anos; mas a nossa gratidão brota também do reconhecimento da função simbólica desta venerável instituição, uma vez que também tem contribuído para não nos tornarmos reféns do materialismo. Como sentinela vigilante, mantém desperta em nós a chama da vocação para o Infinito. Os militares da Força Aérea elevam-se em estatura moral tanto quanto são capazes de ascender fisicamente, para nos ajudarem a manter abertos os horizontes do «sempre mais além».
3. O céu foi também fonte de inspiração, porque nos desvenda algo que intuitivamente adivinhamos constituir a realização da própria humanidade, como projeto humanista, comunitário e social. Como não decifrar, na liberdade com que as nuvens se movem e modificam as suas imaginativas formas, o rosto da própria liberdade? Adquire, pois, significativo relevo o que São Paulo escreve aos Gálatas e que escutámos na segunda leitura: «Foi para a verdadeira liberdade que Cristo nos libertou».Paulo passa depois a explicar que essa verdadeira liberdade se adquire quando nos deixamos conduzir pelo Espírito e não pela satisfação dos instintos da carne. A liberdade assim entendida tem um sentido que é a caridade, o amor, que consiste em nos «colocarmos ao serviço uns dos outros».
E como não ficar deslumbrado com a proporção que existe entre a elevação vertical e a distância horizontal? Quanto mais alto se sobe, mais longe se alcança com a vista. Este facto remete-nos para a maravilhosa grandeza da universalidade enquanto perceção de que o mundo é mais, muito mais, do que o estreito espaço do nosso reduto pessoal. Além disso, o céu também não conhece fronteiras. É, portanto, um apelo à liberdade do ser humano.
Bem-aventurados, pois, os que fazem do céu o seu campo de honra e, tendo assimilado o horizonte que este lhes oferece, sentem-se nesta comunhão de destino solidários com toda a humanidade!
4. A palavra de Deus, focalizando-se no mistério do chamamento dirigido a cada um, remete-nos para o contexto da Terra e também para o contexto do céu. Na primeira leitura, a Terra é o lugar do trabalho, da permanência, de onde Eliseu é retirado em função de uma outra perspetiva de vida, ou seja, ser ungido como Profeta do Senhor.O evangelho refere o céu como origem do fogo que desce sobre a Terra, qual símbolo de purificação. Nos lábios de Jesus, o mesmo céu é a pátria das aves que voam inteiramente confiantes nas dádivas de Deus, elevando-se, assim, a paradigmas de abandono à providência.
5. Hoje comemoramos o aniversário da Força Aérea Portuguesa. Na senda da Palavra de Deus escutada, também vós, caros Militares, com a vossa missão, respondeis a um tríplice chamamento:
Primeiro, sois chamados a ser testemunhas: se Portugal é a vossa Pátria, o céu é o vosso lar. Com a vossa propensão para as alturas estais a recordar e a sublinhar que o ser humano é constitucionalmente ordenado para se transcender a si próprio, para se projetar em Deus. Nessa medida, a parábola existencial do ser humano não se esgota ali, naquele pequeno reduto de terra que ele habita e ocupa, mas está sempre nessa tensão para o alto. E vós viveis e testemunhais essa singular vocação do ser humano de ser estruturalmente chamado a subir. É, por isso, que o texto bíblico usa uma palavra que é transversal a todas as histórias de chamamento, trata-se do verbo “levantar-se”. Nessa medida, a Força Aérea, sempre que ascende numa das suas aeronaves para as alturas do céu, está a responder, em nome de toda a humanidade, ao apelo de perseguir os caminhos da plenitude da vida. Vincais bem o facto incontornável de cada um de nós ser Homo Viator que, na pena da escritora Cristina Campo, significa “que se o homem conhecesse o tremendo poder da sua alma quando um movimento constante e vertical lhe assegura uma espécie de corda que o une a Deus, talvez um mundo como o nosso deixasse de aterrá-lo e, bem entendido, de fasciná-lo.”
O segundo chamamento é o de construirdes pegadas do absoluto: Não há longe, nem distância, diz aquele que ascende às alturas porque tudo sob o seu olhar se redimensiona e até relativiza. Ele, o que voa, vê as distâncias a encurtarem-se, os espaços a reduzirem as suas dimensões. No desempenho da vossa missão, ao rasgar os céus e ao subir às alturas, colheis o sentido do efémero, do transitório, do que vai diminuindo e crescendo, em suma, captais o relativo, mas, ao mesmo tempo, e mais do que ninguém, alcançais também o sentido do Absoluto. Sim, na vida, há realidades que, independentemente do ponto ou do ângulo em que são visualizadas, nunca perdem importância, nem grandeza, nem estatuto, pois são absolutas.
Em primeiro lugar, naturalmente, está Deus, o Absoluto por excelência. E quando se descobre e se apreende que só Ele é Senhor Absoluto, então, a exemplo de Eliseu, de São Paulo e dos que deixaram tudo para seguir Jesus, percebe-se que tudo o resto é relativo e tem caráter contingente. Mais, percebe-se que vale a pena jogar a vida, o presente e o futuro, não pelo que é efémero e passageiro, mas pelo que é eterno e, portanto, absoluto. Esta experiência que, no dia a dia da Força Aérea, é feita assiduamente constitui o contexto para responder à voz que me diz «Vem e segue-me» e nos oferece razões para deixar tudo e segui-l’O.
Mas também a vida e a dignidade da pessoa humana têm caráter absoluto. A história da Força Aérea está escrita a letras de oiro. Cada vida que através dela e nela serviu Portugal é uma história completa de total entrega e doação que continua e mantem atual a dádiva de Cristo na Cruz por amor da humanidade. Dádiva feita no Calvário de Jerusalém para onde Ele se dirige resolutamente, como escutámos no Evangelho. Lembramos, homenageamos e rezamos, de maneira particular, por aquelas e aqueles que se ofereceram pelo que é intemporal e eternamente constitui o absoluto perene à face da Terra. Através da dádiva das suas vidas pela Pátria e pela vida dos outros, captamos a caráter permanente de algo num mundo onde tudo parece derramar-se na escuridão da morte. E aquilo que tem raízes em Deus e que, portanto, não passa, é a vida e a dignidade dos seres humanos.
O terceiro chamamento que vos é dirigido consiste em construirdes a verdade, através da união. Dizia um famoso poeta que «somos anjos de uma asa apenas. Só permanecendo abraçados,podemos voar». E Santo Agostinho reforça que «Sem ti, nada faz Aquele que, mesmo sem ti, te criou». No horizonte do chamamento de Eliseu, dos apóstolos, está a verdade da importância inadiável de cada um para os outros e da sua colaboração e contributo em ordem à construção de um mundo de rosto humano. O próprio Jesus instituiu um pequeno grupo, enviando-os dois a dois, incumbindo-os de anunciarem o Reino de Deus.
A Força Aérea é verdadeiramente mestra em humanidade porque a verdade da sua grandeza, a principal verdade do seu poder não são as máquinas, embora muito sofisticadas e tecnologicamente avançadíssimas, mas são as pessoas. As pessoas são o esplendor da sua existência, o critério da sua ação e o padrão das suas opções.
Ex Mero Motu
Nossa Senhora do Ar protegei a Força Aérea.