Na chamada “Missa Crismal, os capelães reúnem-se com o seu bispo para renovarem as promessas sacerdotais e consagrarem os santos óleos. D. Manuel Linda pronunciou a seguinte homilia.
“A vossa linhagem será célebre entre os povos” (Is 61, 9)
Homilia na Missa Crismal de 2016
Caros Padres, quase conhecemos de cor as leituras que escutamos. Concretamente a primeira, pois a tradição da Igreja sempre aplicou a nós, sacerdotes, a unção a que o Profeta se refere: “O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque me ungiu”. Aliás, tal como fez o Senhor Jesus, o qual, como ouvimos no Evangelho, identifica a sua missão messiânica com a tarefa sacerdotal e revê-se completamente nas consequências lógicas que derivam desta unção: “Enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, a curar os desesperados, a anunciar a emancipação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; […] a consolar os tristes, […] a mudar a cinza [dos aflitos de Sião] em coroa, a alterar o seu semblante triste em perfume de festa e o seu abatimento em cânticos de alegria”, etc. E Isaías conclui esta nobreza da função sacerdotal com expressões grandiosas: “Vós sereis chamados «Sacerdotes do Senhor», «Ministros do nosso Deus.» […] Ele dar-vos-á fielmente a sua recompensa […]. A vossa linhagem será célebre entre os povos […]. Quantos vos virem terão de vos reconhecer como estirpe que o Senhor abençoou”.
Mas, hoje, verifica-se este reconhecimento? À primeira vista, não parece. Socialmente desvalorizada, a figura do padre é vítima frequente de uma comunicação social sensacionalista, daqueles que se acham autorizados a dar sentenças em matéria religiosa com a mesma ligeireza com que se discutem clubites de futebol e mesmo de cristãos que se imaginam apenas portadores de direitos e não de deveres. E sofreis com isto. Hoje não é fácil ser padre, de facto. Não custa celebrar os sacramentos e presidir aos ritos. Mas governar, dirigir, pregar, orientar, discernir… está a tornar-se um calvário. Tende a certeza que conheço muito bem esta situação e sofro por vos ver sofrer.
Graças a Deus que, no meio castrense, as coisas não se passam desta forma. Pelo contrário: como tantas vezes tenho dito, neste particular, somos uns privilegiados, pois tratam-nos com imenso respeito e a consideração que nos devotam é elevada. Estou em crer, até, que esta estima está em alta e com tendência para aumentar.
Não chega, porém, inventariar a sintomatologia: importa chegar às causas. Porque é que, lá fora, tantos nos querem mal e outros nos dificultam a vida? Porque é que, quando se fala de religião muitos torcem o nariz e alguns até se sentem ofendidos? Porventura porque temos anteposto um vesgo funcionalismo eclesiástico à simplicidade da misericórdia, para a qual o Papa Francisco insistentemente nos tenta reorientar. Talvez porque era a pensar em modos de vida como o nosso que o Apóstolo Tiago garantia: “Quem não pratica a misericórdia será julgado sem misericórdia” (Tg 2, 13). Ou provavelmente ainda porque nos esquecemos de “levar a boa-nova aos que sofrem, curar os desesperados, anunciar a liberdade aos prisioneiros”, etc., como, há pouco, ouvíamos.
Se é verdade –insisto- que esse anticlericalismo está presente na sociedade civil e é praticamente inexistente no âmbito das Forças Armadas e das Forças de Segurança, mesmo assim devemos colocar-nos em atitude de perene questionamento: que razões justificam a minha presença neste meio castrense? O meu trabalho e preocupação pelos outros tornam-me verdadeiramente imprescindível? As minhas atitudes mostram o «suplemento de alma» de que o sacerdote deve ser portador? Sou «padre» ou oficial?
Na linha dos «conselhos», típicos de todo o pai que se preza, ou da «educação preventiva», característica da actuação dos grandes santos educadores, tal como São João Bosco, permiti que medite convosco em apenas três aspectos. Não é que constituam problemáticas graves entre nós. Muito menos que atinjam um número significativo de padres do Ordinariato. Não! Apenas para que a distracção não constitua engodo que nos leve a resvalar sem nos darmos conta. Chamar-lhe-ia as três «ladeiras escorregadias».
A primeira é a «ausência de identidade». É o perigo de marcarmos o ponto, cumprirmos um horário, arrastarmo-nos entre o gabinete da capelania e o bar à espera do toque de ordem e… nada mais. É o vazio da acção. Ou a ausência dela. Se é para isso, para que um capelão num Serviço ou Unidade? Apenas para celebrar a Missa no Natal e na Páscoa ou rezar uma oração de dois minutos pelos mortos no Dia da Unidade? Não será antes para a presença humana e inventariação das problemáticas e para a todos convocar para a formação religiosa, para a oração e para a caridade, mesmo que não seja seguido? Mutatis mutandis, é o que se passa com os adolescentes. Que esperam dos pais? Que sejam «amiguinhos»? Não. Amigos, iguais entre iguais, têm eles muitos nas escolas. O que exigem é que sejam plenamente «pais», mesmo que a instabilidade etária faça parecer que estão sempre contra o que o pai diz. Caros padres, sejam isso mesmo: padres!
A segunda ladeira são os galões. Alerto, desde já, que eu não sou contra o facto de o padre vestir uma farda e usar galões. Pelo contrário! Mas seria absolutamente ridículo ou grotesco que algum padre imaginasse que a sua autoridade lhe advinha dos traços mais largos os mais estreitos que ostenta sobre os ombros. Sim, seria caricato, pois o padre, ao contrário dos outros militares, não frequentou cursos (quer os iniciais, quer a formação contínua) para isso, não sofre com a instrução rigorosa, não vive sob o stress da possível necessidade de actuação bélica, não tem de assumir a justificação das ordens de comando e suas consequências nem de se responsabilizar perante os seus imediatos superiores. O padre recebe galões não por si, mas porque a Igreja o colocou no meio castrense. É oficial no meio dos oficiais, mas é simples soldado no meio dos soldados. E não mais nem menos! Se o padre se valesse dos galões para mostrar superioridade em relação a alguém, era sinal de que desconhecia de que antes da ordenação dos Apóstolos deu-se o lava-pés.
Finalmente, chamo a atenção para a ladeira escorregadia das «compensações». A nossa vida é «estranha», sem dúvida e falta-nos o calor humano de uma esposa e dos filhos. Por causa disto, corremos o risco de tentar suprir este «vazio» com determinados preenchimentos, nem sempre recomendáveis. O mais tentador é o dinheiro. E pode tornar-se a grelha mediante a qual vemos o mundo e, inclusive, o sacerdócio. Quando assim acontece, tudo são dificuldades: não se pode ir aqui e ali porque se gasta um quartilho de gasolina; não se permanece no meio castrense porque lá fora ganha-se mais; não se participa na formação contínua porque não se passa guia de marcha… Senhores padres, não demos pretexto para que se riam de nós.
Ainda nos lembramos da primeira leitura? O profeta garantia: “A vossa linhagem será célebre entre os povos […]. Quantos vos virem terão de vos reconhecer como estirpe que o Senhor abençoou”. Não ponhamos resistência à graça que a tanto nos eleva.
+ Manuel Linda