Transcreve-se, na íntegra, a homilia de D. Manuel Linda na Missa de encerramento da Peregrinação Militar a Fátima, a 2 de Junho.
Homilia
“Sentinelas da madrugada, convoco-vos para o amor de Deus”
É estranho este texto evangélico agora proclamado. Jesus submete Pedro a um apertado exame. Só que a matéria em questão não é o conhecimento das técnicas pastorais para dar início à Igreja, mas um assunto que parece infantil ou até ridículo: uma simples promessa de amizade. De resto, este episódio aparece no final do Evangelho de S. João, quase como cena que nem sequer lembrou no devido tempo. Mas não: nem esta passagem é de segunda importância nem foi sem intenção que o evangelista a colocou ao final de tudo, como «assinatura» definitiva do ser cristão e membro da Igreja. É que esta não é uma qualquer sociedade produtora de bens ou serviços: é simplesmente o «lugar» da confiança e da entrega total e a «pátria» onde o amor declarado e vivido se torna única Constituição e única lei.
A mensagem de Fátima, cujo centenário celebramos, passa por aqui. Na pedagogia da linguagem que os pequenos pastores eram capazes de entender, começa-se logo, na primeira aparição, por perguntar se estão dispostos a oferecer-se a Deus como acto de reparação pelos pecados da humanidade, atraindo, assim, a paz para o mundo. Como que a dizer que é no mistério de Deus e do seu amor que se sela uma nova época na história humana: só o amor constrói sociedade, só ele gera fraternidade, só ele garante o bem comum, expressão da alegria e do contentamento a que a humanidade aspira. Isto era bem visível em 1917. O terrível século XIX negou a Deus lugar de cidadania. Curiosamente, a pretensa “morte de Deus” acabou por constituir a efectiva “morte do homem”. Sim, a primeira grande guerra é, apenas, um ponto de chegada no ódio, na ferocidade, nas trevas proclamadas no século anterior. E sabemos bem até onde levou: à «carnificina inútil» de uma sociedade que se aniquila e autodestrói.
Importa que todos considerem este dado. Mas convém ainda mais que os militares e agentes de segurança, os verdadeiros «servidores da paz», o tenham sempre presente. Tal como se esperava no interrogatório de Jesus a Pedro, certamente, hoje, o Senhor não pergunta aos militares e polícias: estás bem treinado? Conheces as estratégias e as tácticas da guerra? Que materiais empregas para imobilizar o inimigo? Mas certamente pergunta antes: é por amor ao teu próximo que lhe asseguras a sua legítima defesa? Exerces a tua nobre missão apenas motivado pela preocupação do bem comum? Dedicas-te aos teus irmãos com a generosidade das mães e a grandeza dos mártires?
Ora, tenho para mim que não será fácil responder a estas perguntas fora da envolvência de um amor de Deus livremente aceite e intensamente vivido. E isto por várias razões. Em primeiro lugar porque, no dizer da Bíblia, só Jesus “é a nossa paz” e, como tal, só Ele pode dizer as palavras que se escutam em todas as Missas: “Deixo-vos a paz. Dou-vos a minha paz”. Assim sendo, a paz tem mais de dádiva divina do que de conquista humana: é participação no ser de Deus.
Depois, e até como consequência do anterior, a paz possui um cunho fortemente messiânico: onde estiver Cristo está a paz; onde Ele for rejeitado, rejeita-se a paz. Cada vez mais historiadores apontam a grande guerra como ponto de chegada do positivismo, do naturalismo, do ateísmo e do agnosticismo largamente difundidos e «impostos» na Europa do século XIX. Caros militares e polícias, “sentinelas da madrugada”, então, não rejeiteis Cristo para não rejeitardes a paz.
Em terceiro lugar, a paz possui uma configuração ético-social: ele é fundamentalmente projecto, sã utopia, empenho que deve dizer respeito a todos os homens e ao longo de toda a existência. Ora, se esta tarefa, sempre em aberto, é de todos, muito mais dos militares e polícias, os quais, parafraseando as aparições do anjo, aqui em Fátima, se poderiam definir como os verdadeiros «anjos da paz», os «anjos custódios de Portugal».
Finalmente, a paz não é um produto de supermercado que possamos retirar da prateleira e meter no nosso carrinho, mas a tarefa árdua de a instaurar estabelecendo a justiça social, o desenvolvimento integral, os direitos humanos religiosamente respeitados, a solidariedade como normativa social, o respeito do meio ambiente como responsabilização pela nossa casa comum, a veracidade da informação como garantia de uma sociedade adulta e responsável. Ora, para usar as conhecidas expressões do Papa Francisco, quando nós vemos o predomínio da cultura da indiferença e do descartável em detrimento das preocupações pelos que a sociedade colocou nas periferias, isso augura algo de bom? Teremos garantida definitivamente a paz quando as estatísticas nos dizem que, no nosso mundo rico –e mesmo entre nós-, há milhões na pobreza ou à beira dela e que o fosso entre ricos e pobres está a aumentar assustadoramente?
Há cerca de três semanas, o Papa Francisco, que aqui veio rezar connosco, entre as muitas ideias belíssimas, deixou-nos uma frase que resumia tudo isto: “O que mais nos impressiona em Fátima é esta luz que nos envolve”. Que luz? A do sol? Em Roma, onde ele habita, a luminosidade não é menos do que aqui. Evidentemente, ele referia-se a um outro dado: à luz da verdade, quase sempre seguida pelos «pequeninos», como os Santos Francisco e Jacinta Marto, em contraposição com as trevas e a negrura da noite dos que apostam mais no ódio do que no amor. Aludia, pois, ao mistério do amor de Deus que gera uma nova história quando as vidas se deixam envolver por ele.
Caros peregrinos, convoco-vos para o amor de Deus. Se a paz é a essência da mensagem evangélica, vós, «construtores da paz» edificá-la-eis tanto mais quanto vos deixardes envolver pelo amor de Deus. Se acreditais na paz, fazei-a estrutura ordinária da vossa existência. Isto é, passai-a do credo à vida. E tende a certeza de que, nesta tarefa árdua de edificar a paz, tendes uma mão amiga que vos sustem e anima: a de Nossa Senhora. Sim, com o Papa Francisco, também eu proclamo: “Nós temos uma Mãe”. É precisamente esta que só quer o bem dos seus filhos, nos ensina a saber viver harmoniosamente com todos e de cujas mãos nos virá a paz que ansiamos.
Ela nos abençoe e nos constitua “sentinelas da madrugada” que recebe e exulta com a luz que do Alto nos chega.
Manuel Linda