IGREJA DA MEMÓRIA, 03 SETEMBRO 2019

1. Numa famosa conferência proferida no longínquo ano de 1936, em Friburgo, sobre a «Origem da Obra de Arte», o filósofo Martin Heidegger dizia: «é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro.» A novidade da afirmação reside no facto de não corroborar o lugar-comum segundo o qual, uma vez lançada no espaço da história, a obra passa a ter vida própria e transcende o próprio artista. Heidegger sela a indissolubilidade entre obra e artista.

Ao celebrar hoje o dia do Estado Maior General das Forças Armadas, todos nos sentimos particularmente lisonjeados, pois encontramos uma magnífica Obra de Arte que é Portugal, descobrindo aquelas e aqueles que, ao longo dos séculos, a têm construído e plasmado com a dádiva das suas vidas. Desse glorioso elenco destaca-se o Santo Condestável Nun’ Álvares Pereira de Santa Maria. Nele encontramos muito mais do que o simples herói da nossa história ou sequer um grandioso arauto do Portugal atual. No Condestável, temos a essência da própria portugalidade que, na sua tessitura, contempla o Militar e o Religioso. E são esses padrões, Militar e Religioso, que têm sustentado, desde o início, quer a autodeterminação da Nação, quer a nossa identidade pátria.

2. Ao identificarmos Portugal a uma maravilhosa Obra de Arte que foi e tem sido construída ao longo dos séculos por grandes e ilustres artistas — e concedamos hoje particular relevância a São Nuno de Santa Maria — tomamos consciência de que, se a obra só vive pela união com o seu artista, São Nuno, embora já não esteja fisicamente connosco, nem comungue do nosso convívio, continua presente aqui e agora. Vive naquelas e naqueles que lhe sucederam e que hoje são seus herdeiros. Nos atos, nas ações e na vida quer dos Militares quer dos que procuram viver fiéis a Jesus Cristo.

De facto, “D. Nuno Álvares Pereira — além de herói nacional, de homem corajoso, austero, coerente, amigo da Pátria e dos pobres, tal como os cronistas e historiadores no-lo apresentam — é também um homem santo. A sua coragem heroica em defender a identidade nacional, o seu desprendimento dos bens e o seu amor aos mais necessitados brotavam, como água da fonte, do amor a Cristo e à Igreja.

São de relevar alguns valores que pautaram a sua vida e que continuam atuais, tanto naqueles que assumem a verdade autêntica da condição militar, como nos santos de hoje. No plano militar, sobressaem a coragem, a lealdade e a generosidade; no campo religioso, evidenciam-se a fidelidade à Igreja, a obediência e a castidade; a nível social, destacam-se a cortesia, a humildade e a beneficência. Foram estes valores que impregnaram a personalidade de Nuno Álvares Pereira, em todas as vicissitudes da sua vida, como documentam os seus feitos militares, familiares, sociais e conventuais.

Dedicou-se ainda à proteção das viúvas e dos órfãos, assim como ao auxílio aos pobres. Em D. Nuno, estes ideais tornaram-se virtudes intensamente vividas, tanto no tempo das lides guerreiras, como principalmente quando se desprendeu de tudo e professou na Ordem do Carmo.” (CEP, S. Nuno Ávares Pereira. Exemplo heróico em tempo de crise, 7-8).

3. Desta apresentação, depreendemos que São Nuno acreditava na possibilidade de um mundo perfeito. A sua ação não visava apenas remediar o mal existente, ou atenuar a incomensurável imperfeição reinante. Ele queria esse mundo novo, verdadeira pátria dos heróis, onde não houvesse desigualdade, onde não existissem pobres, nem explorados, nem excluídos, nem miseráveis. As batalhas que travou enquanto militar nos campos da honra não terminaram quando se tornou monge e se retirou num convento. Ele continuou a ser um combatente até ao último suspiro, apenas divergindo no modo e nos meios de as travar. Mas quer umas quer outras visam os mesmos objetivos: a defesa e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, a afirmação incontornável da liberdade de cada um e a profunda convicção de que, em última instância, Deus é o único e derradeiro Senhor. Assim, quer como militar, quer como monge, Nun´ Álvares Pereira desenvolve a missão de a todos proporcionar a paz, o pão, a justiça e o bem-estar… numa visão integradora.

Neste aspeto, S. Nuno faz seu o estilo peculiar de Jesus Cristo, reagindo e intervindo sempre que a integridade da pessoa humana estava em causa. Perante um estropiado, Jesus intervém para curar; ao desanimado, oferece razões para reacender a chama da esperança e a força da confiança na bondade fundamental da vida. Também Nun´Álvares Pereira se definia por esta imediata reação interventiva quando em causa estava o ser humano. Não pactuava nem com atropelos, nem com injustiças… e nisso nos deixou em herança um precioso tesouro: a estruturação de umas Forças Armadas cujo principal inimigo é tudo aquilo que diminui a dignidade e integridade da pessoa, dos cidadãos portugueses.

A exemplo de São Nuno, também hoje queremos e, de facto, temos umas Forças Armadas que com a mesma mestria com que manuseiam as Armas de Defesa, também manejam as armas da solidariedade, da partilha, da honra, da caridade, da fé e da piedade. E o inimigo que, como Militares, temos de enfrentar e combater revela-se, no fundo, na pobreza, na fome, na injustiça, no desalento.

Neste sentido, podemos dizer que as Forças Armadas de Portugal herdaram do seu Condestável uma inegável conceção da paz que as coloca na senda da conceção bíblica, judaico-cristã.

De facto, a primeira leitura (1Ts 5,1-6.9-11) apresenta-nos a «paz e a segurança» como os bens messiânicos por excelência. E são-no realmente, porque o mundo, para ser e funcionar, necessita de paz. Biblicamente, a paz não é um conceito abstrato, nem um mero slogan, mas remete-nos para as noções de “bem-estar” e de “salvação”, evocando a ideia de totalidade, inteireza e plenitude. Só quando existe a paz, é possível existirem todos os outros bens, como a vida, a saúde, a escola, o cultivo dos campos, a vida social.

Por isso, sempre que há um atropelo à integridade da pessoa, uma carência, Jesus intervém para restaurar e repor a integridade, como escutávamos no episódio do evangelho de hoje (Lc 4, 31-37), no qual Jesus se encontra com um homem completamente dominado por uma força exterior a si, que o subjuga e impede de ser homem livre e responsável. Não era senhor nem da sua vida nem das suas ações. Que faz Jesus? Faz aquilo que é comum na sua ação quando está em causa a dignidade da pessoa, a sua vida e integridade: intervém e age, toma posição, envolve-se e combate esse mal. Seja o inimigo um espírito impuro, uma doença, uma injustiça… Combater o que atropela e diminui o ser humano, esse é o desígnio de Jesus, como depois foi também a missão, a “guerra” de São Nuno e deve ser a marca das Forças Armadas. A Paz e a Segurança são, de facto, conceitos muito abrangentes e nós somos herdeiros dessa grandeza e abrangência.

A missão que as fontes da civilização ocidental atribuem aos Militares e às Forças de Segurança obriga a nunca perder de vista este caráter universalista e integral, contido na manutenção e incremento da paz. Salvaguardar esse bem fundamental é indispensável para a vida e para o desenvolvimento do todo da Nação. Estar ao serviço dos cidadãos é, neste contexto, permitir o pleno desenvolvimento de todos os âmbitos que constituem a identidade ativa do país.

4. A Palavra de Deus fala-nos da imprevisibilidade do «dia do Senhor» (cf 1Ts 5,2). Dia que reúne e encerra os valores positivos da vida; dia do fim de todos os tormentos, de todas as injustiças, de todo o mal e, ao mesmo tempo, dia da irrupção definitiva da salvação. Da sua imprevisibilidade decorre a exortação a não nos deixarmos surpreender: «não durmamos, mas permaneçamos vigilantes e sóbrios.»

5. Nuno concretizou esta vigilância e esta atenção com obras e ações. Tanto no papel de Condestável do Reino, como do ponto de vista de homem de fé nutrido no húmus do evangelho, vigiou para que as fonteiras da pátria e da dignidade-integridade humanas nunca fossem ultrapassadas. Proporcionou às Forças Armadas um horizonte vasto, amplo, grandioso.

As Forças Armadas não vivem nem agem com vista a remediar uma situação. Tal como Nun’ Álvares era um homem do Absoluto e não do relativo e efémero, também as Forças Armadas portuguesas estão impregnadas desse espírito. Em cada missão, por mais simples que seja, os Militares têm sempre em vista algo de definitivo, não apenas a circunstância dada pelo momento, o caso singular…

Reside aqui, estamos em crer, a união plurissecular dos valores da Defesa com os valores da fé; a aliança entre dimensão militar e dimensão religiosa. Sim, uma das principais propriedades da dimensão religiosa é precisamente lidar com o transcendente, com o Absoluto, e as Forças Armadas também agem sempre em vista de algo que está acima do particular, do individual, algo que é decisivo, ou seja, a sobrevivência da Pátria, a sua autodeterminação e a sua soberania. Mesmo quando foram e são chamados a responder a situações pontuais, jamais perdem de vista que o seu carisma e razão de ser é de cariz transcendente. Por isso, nesta hora, ouso evocar as palavras de um génio descendente de portugueses, o filósofo Bento de Espinosa: «Toda a nossa felicidade e toda a nossa miséria dependem apenas da qualidade do objeto ao qual estamos ligados por amor.»

Ora quando tal destinatário do nosso amor é a Pátria e é Deus, como S. Nuno assumiu e propôs, está garantida a felicidade plena.

Termino com palavras do Papa Bento XVI, por ocasião da sua canonização do agora Patrono do EMGFA: «Embora fosse um ótimo militar e um grande chefe, nunca deixou os dotes pessoais sobreporem-se à ação suprema que vem de Deus. São Nuno esforçava-se por não pôr obstáculos à ação de Deus na sua vida, imitando Nossa Senhora, de Quem era devotíssimo e a Quem atribuía publicamente as suas vitórias… Sinto-me feliz por apontar à Igreja inteira esta figura exemplar nomeadamente pela presença duma vida de fé e oração em contextos aparentemente pouco favoráveis à mesma, sendo a prova de que em qualquer situação, mesmo de carácter militar e bélico, é possível atuar e realizar os valores e princípios da vida cristã, sobretudo se esta é colocada ao serviço do bem comum e da glória de Deus.» Amen.