Caros Irmãos em Cristo

1. Portugal vive tempos decisivos. E tal como noutros momentos históricos de idêntico cariz e alcance, as Forças Armadas estão sempre presentes e assumem-se como parte integrante e fundamental na formação de horizontes de esperança e de vida, mesmo lá onde por vezes as circunstâncias favorecem o desânimo e aresignação.

Em pleno contexto de pandemia, são chamadas a assumir um papel incontornável, verdadeiramente determinante. Uma das marcas desta trágica etapa da vida nacional e internacional tem sido o contraste entre a incerteza que deriva do desconhecimento da natureza e comportamento do vírus e a certeza da prontidão e competência das Forças Armadas. No meio de tantas dúvidas, as Forças Armadas têm sido um verdadeiro oásis de confiança. Agradecemos essa dádiva. Os portugueses redescobrir a verdadeira bênção que são as suas Forças Armadas. Reencontrar nelas uma presença fiel para todas as horas, sobretudo para as horas mais amargas, como têm sido as da tragédia pandémica, as da prevenção e combate aos incêndios, as da implementação da paz em cenários internacionais de conflito, etc. Sim, hoje,por ocasião da celebração do dia do Estado Maior General das Forças Armadas, evocando o seu septuagésimo aniversário, reconhecemos que a sua ação tem sido determinante na promoção da proximidade das Forças Armadas. Obrigado ao seu excelentíssimo Chefe. Pessoalmente, posso aqui testemunhar como os militares hoje representam proteção, garantia de segurança e competência na execução. Os portugueses estão em harmonia com as suas Forças Armadas, sentem que os militares são verdadeiros servidores na defesa das suas vidas e dos seus desígnios mais profundos.

 

2. Um dos traços típicos do tempo atual tem sido o surgimento de uma dialética histórica e temporal. Muito daquilo que constituía a vida alterou-se. Muitos projetos se dissiparam. Do passado, tanta coisa se esboroou. Alguns dos seus padrões estão a ficar desatualizados. O mundo, tal como era, incluindo algumas das suas estruturas, parece-nos inadaptado. Mas, por outro lado, sente-se que o futuro se antecipa já no presente. Com a sua quota-parte de incerteza, o futuro adianta-se nas consciências dos homens sob a forma de preocupação e dúvida. Ora esta dialética entre passado que se esfarela e futuro incerto que recua para o presente tem-se revelado, do ponto de vista histórico, a fonte de uma energia e vitalidade social que tanto pode ser destrutiva, como construtiva. Destrutiva, se não for orientada. Se ficar sem rumo, tornar-se-á arbitrária e caótica no sentido apenas de se empenhar em desfazer o que está feito, derrubar o que anos de esforço e dedicação ergueram. Que sucede quando uma força está ativa, mas carece de uma adequada programação? Abate-se sobre a sua própria fonte, podendo destruí-la. Pelo contrário, se for positivamente orientada, será o motor para a renovação, um passo em frente no caminho do progresso. E verificamos que, em Portugal, sempre que se viveram tempos assim decisivos, as Forças Armadas foram um dos protagonistas que souberam orientar as energias emergentes.

 

Que sucedeu com Afonso Henriques? Ele e os seus combatentes não deram orientação àquelas energias sociais que emergiam tanto do clero como do povo, orientadas para a firme vontade de autodeterminação? E em 1383-1385, não foi Nun´Álvares Pereira com as suas Forças que canalizou e orientou a determinação “da gente ilustre Portuguesa”, como escreve Camões, no sentido de se emancipar face às forças hostis que pretendiam apoderar-se do território nacional? E em 1640, as nossas tropas não realizaram, no fundo, o sonho de restauração da independência de uma inteira nação? E em 1820, não foi o movimento protagonizado pelos Militares a orientar o clamor liberal do povo face a poderes sufocantes? E que fizeram os militares na manhã do 25 de abril de 1974 e no dia 25 de novembro de 1975? Não foi orientar a força da Nação rumo à liberdade? Neste ano de 2020, todos somos testemunhas de como as Forças Armadas responderam com centros hospitalares de acolhimento, com o transporte de utentes de risco, com a desinfeção de espaços públicos, com a sua ação no sentido de garantir proteção às povoações ameaçadas pelos incêndios, etc.

 

A história demonstra que nunca houve nas Forças Armadas sede de poder, mas sempre disponibilidade para servir. Nunca será demais sublinhar que tem sido o Estado Maior General das Forças Armadas o principal garante da preservação desta maravilhosa vocação. Encontramos nas Forças Armadas a sabedoria de canalizar, de dar forma, de direcionar as energias emergentes na sociedade em momentos decisivos. Por isso, este é uma vez mais, um tempo de apelo à responsabilidade dos militares com vista a imprimir uma orientação positiva à força que fermenta na sociedade.

 

O filósofo romano Séneca afirmou que «Não há ventos favoráveis para quem não sabe aonde vai».Apraz-me reconhecer que nas Forças Armadas nunca faltou a nítida clarividência do rumo certo a trilhar. Como farol a brilhar no horizonte que orienta o navegante, as Forças Armadas têm nos valores fundacionais da civilização — encarnados na defesa e promoção da dignidade de cada cidadão, no sentido da liberdade, na força transformadora da esperança e no vigor humanista do serviço — a referência do seu rumo.

 

3. Tanto a palavra de Deus escutada como a figura de são Nuno Álvares Pereira apresentam-se hoje como verdadeiros mapas que nos mostram os passos a dar no caminho desses valores.

 

3. 1. A primeira leitura (1Cor 3, 18-23) apresenta um elogio à verdadeira sabedoria que, para são Paulo, provém de Deus. Essa sabedoria tem o eterno propósito de iluminar a humanidade e construir o mundo sobre os alicerces da verdade, como se revelou na cruz. Trata-se pois da sabedoria do amor que, iluminando o coração do ser humano, o transforma em pro–existência, ou seja, numa existência para os outros. Faz da vida um caminho rumo aos outros; ou seja, no seu horizonte está sempre alguém.

 

Na sociedade de hoje está a emergir com renovado vigor a exigência de menos individualismo e autorreferencialidade, para falar com o Papa Francisco, para se construir maior comunhão, consubstanciada numa crescente solidariedade como a arte de sair de si para ir ao encontro das pessoas. Esta sabedoria tem iluminado as Forças Armadas de Portugal, sempre sob a coordenação do seu Estado Maior. Em estreita aliança com o sentido do dever, da prontidão na resposta e da disciplina, cresce na alma dos nossos militares uma capacidade de solidariedade que os move em direção a metas sempre mais ambiciosas. Assim se compreende a sua presença e ação não só nos tradicionais teatros de operações, unidades militares, frentes de batalha, campos de treino, mas também nas ruas onde pernoitam os sem-abrigo, em instituições de pessoas fragilizadas ou em centros de caráter social.

 

3. 2. O evangelho (Lc 5, 1-11) refere que os pescadores, depois de uma noite de trabalho em vão, sem nada terem pescado, recolheram a terra, em busca do merecido descanso e, com o sentido de dever cumprido, arrumavam as redes. Tudo estava aparentemente concluído. Mas, de repente, eis que ouvem a interpelação «Faz-te ao largo; e vós, lançai as redes para a pesca.» (Lc 5, 4).

 

É a ordem que vem perturbar a quietude, um imperativo que tira os pescadores da sua zona de conforto. Nenhum descanso é tranquilo, nenhum repouso é pacífico se as redes ainda estiverem vazias. Porque a falta de peixe significa fome, privação, pobreza e por isso Jesus chama a fazer-se ao largo, onde o mar pode estar agitado e a vida pode ser posta em risco. E os pescadores aceitam correr esse risco. Inclusive, o risco de perder a própria vida. Esse é o preço a pagar para haver alimento, é o salário para não haver fome e não se cair na pobreza!

 

A pandemia do corona vírus colocou muitos setores da sociedade à beira da inoperância. A nossa está a ser uma época interrompida. Como os pescadores do lago da Galileia arrumavam as suas redes, mergulhados num sentimento de inutilidade, também hoje, em muitos nossos conterrâneos se instalou a sensação da derrota, do medo e do desânimo. A pandemia parece ter suspendido a própria vida.

 

Caros militares, ouso lançar-vos um convite: como peritos que sois em correr riscos, em vos fazerdes ao largo na defesa da pátria, continuai a mostrar com a vossa atitude, a vossa dedicação e o vosso savoir faire os passos para que Portugal se faça ao largo. Todos temos de sair da posição confortável de ficar à espera, ou de ficar a lamentar o sucedido… Todos somos chamados a fazer-nos ao largo, a lançar as redes para pescar o nosso próprio desenvolvimento, a justiça que tanto desejamos e a liberdade sem a qual não nos sentimos humanos. Continuai a ser hoje a voz de Jesus que diz: «Não tenhais medo».

 

3.3. São Nuno de Santa Maria, padroeiro e figura inspiradora do Estado Maior–General das Forças Armadas, além de nos permitir vislumbrar na sua grandeza de caráter a firmeza dos valores, no seu amor a Portugal a força para lutar pela Pátria e na solidez da fé a raiz do serviço ao próximo e da esperança na salvação, ainda nos apontou rumos de grande atualidade. Do muito e extraordinário espólio que a sua biografia recolhe, hoje desejo focar-me numa prática que lhe era comum e habitual nas vésperas de travar uma batalha: procurava sempre saber se os soldados inimigos dispunham de comida bastante para se alimentarem. E quando lhe constava que esses homens não tinham o suficiente, mandava-lhes pão e algum conduto. Este facto revela-nos o padrão ético pelo qual se regia Nun’Álvares Pereira: nunca abdicava de ver, em cada ser humano, uma pessoa. Até mesmo os inimigos ele tratava sempre como pessoas, como gente… Tanto para ontem como para hoje, plasma-se aqui um gesto não só de forte cariz humanista, mas sobretudo profético, porque só a partir desse reconhecimento é que surgirá o sentido da dignidade do ser humano. Esse foi sempre o paradigma de tudo quanto fazia. Dignidade significa reconhecimento do valor, do peso intrínseco da pessoa pelo facto de ser pessoa. O valor do ser humano tem as suas raízes no próprio facto de pertencer ao género humano.

 

Hoje, porém, a noite parece ter invadido a consciência da sociedade ocidental. A pandemia não só revelou essa zona de escuridão como também a veio agravar. Estranhamente, chega-se a fazer depender o valor, a dignidade e a relevância de alguém daquilo que produz,consome ou possui, bem como dos conhecimentos e relacionamentos que mobiliza. As virtudes de Nun’Álvares, precisamente por serem o que eram,transcendiam e ultrapassavam o estrito âmbito pessoal para se tornarem coletivas e, como tal,serem promotoras de um mundo de rosto realmente humano. Por isso, na sua qualidade de Condestável, sempre foi e sempre será uma referência para as Forças Armadas em todos os tempos. Também para nós hoje ele representa uma desarmante atualidade. Restitui-nos a necessidade de abraçarmos a grande missão de salvaguardar o ser humano e promover a sua dignidade. Na senda do seu padroeiro, o Estado-Maior General das Forças Armadas tem consagrado no seu carisma, de uma forma verdadeiramente inequívoca, como o demonstram setenta anos de história, que o ser humano tem sempre o primado.

 

São Nuno, aliás, tinha um outro costume que evidenciava essa atenção à humanidade das pessoas. Referimo-nos à importância vital que ele concedia à dimensão espiritual e à fé. Tanto assim que, mesmo durante o decorrer das batalhas, não era raro ele organizar procissões com o Santíssimo Sacramento. Certamente esse facto resultava da procura de proteção divina para os seus homens, mas era ao mesmo tempo a afirmação de que aqueles soldados eram pessoas pois somente o ser humano pressente o Transcendente na intimidade da sua consciência. Por isso, quero terminar dizendo que, na abertura à Transcendência que a dimensão religiosa fomenta se manifesta, de uma maneira privilegiada, a natureza do que é o ser humano. O testemunho da história revela que as Forças Armadas, precisamente na salvaguarda do valor indiscutível do ser humano, são garante, no passado e no presente, da possibilidade desse mesmo ser humano se expandir por meio da relação com Deus.

 

Camões, o grande épico português, confere ao comandante qualidades humanas de liderança que o elevam bem acima do líder banal: “Nuno, que, como sábio capitão, / Tudo corria e via e a todos dava, / Com presença e palavras, coração” (IV, 36). E o Estado Maior tem-se mostrado, neste como em outros aspetos, ao nível do seu patrono.

 

São Nuno de Santa Maria, Rogai por nós e protegei as Forças Armadas de Portugal. Amen!

 

+ Rui Manuel Sousa Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de segurança