A mim, que me importa?

 

Há cerca de dois meses, o Papa Francisco convidou os Bispos das Forças Armadas e das Forças de Segurança, que pudessem a ir com ele a Redipuglia, cemitério italiano onde se encontram sepultados muitos milhares de soldados caídos na I Grande Guerra, para com ele rezarem pelo eterno descanso de todas as vitimas da ferocidade humana e nos dispormos à conversão à paz, ânsia profunda do nosso coração e desejo expresso do nosso Deus. Na homilia da Missa que lá celebrou, o Papa repetiu várias vezes o que viu escrito sobre o portão principal do cemitério e que muito o impressionou: “A mim, que me importa?”. Curiosamente, dentro, num enorme muro e com letras esculpidas em pedra, repete-se, centenas de vezes, até à exaustão, a palavra “Presente”. «Presente» é a forma de expressão da certeza de que os caídos permanecem na memória e na saudade dos seus familiares e amigos. Mas é também a profissão de fé de que vivem em Deus e no Seu amor misericordioso. Por seu lado, a frase «A mim que me importa?», é a manifestação da perda de sentimentos, da pura animalidade em que todo podemos cair se desprezarmos a dignidade humana e se ignorarmos Deus e o Seu projecto para o mundo. E o Papa terminava assim a sua homilia: “Com coração de filho, de irmão, de pai, peço a vós todos e para todos nós a conversão do coração: passar do «a mim, que me importa?» para o pranto. O pranto! Irmãos, a humanidade precisa de chorar; e esta é a hora de chorar”.

Sim, mesmo que as lágrimas não aflorem aos olhos, precisamos de deplorar a baixeza em que caímos. Mas precisamos também de criar uma cultura de paz e de fazer com que a barbárie nunca mais regresse. Precisamos de construir a paz como quem efectivamente a quer para os filhos ou para a esposa/marido, para os familiares e para os vizinhos. Para todos. Fundamentalmente, precisamos de criar uma nova cultura da paz, não como a «tranquilidade da ordem» dos cemitérios, quando já não há qualquer sopro de vida e, portanto, qualquer reacção, mas o dinamismo ou a tarefa árdua e difícil de uma sadia convivência a partir dos valores básicos da liberdade social e da justiça sócio-económica. Precisamos de a caldear em amor/solidariedade, pois, em termos cristãos, a paz é o rosto social da caridade, a expressão concreta de dois vectores estruturantes: a humanidade como fraternidade de irmãos sob a comum paternidade de Deus.

Mas é aqui que o Ocidente falhou e falha. Por isso, tornou-se belicoso e arrastou o mundo para duas grandes guerras mundiais. A nossa cultura deixou-se impregnar pela suspeita em relação às grandes verdades historicamente comprovadas: Deus como Pai e os homens como irmãos. Preferiu dar ouvidos a Nietzsche, o tal que proclamou a “morte de Deus”. Mas que, curiosamente, acabou por matar o homem, já não de forma metafórica, mas bem mais real. Em 1895, no conhecido “Anticristo”, proclamava: “Eu rebaixo o homem a mero animal. […] Pode ser qualquer coisa, menos a coroa da criação: ao lado dele, com igual valor, estão muitos outros animais, todos em similares estádios de desenvolvimento. […] O homem é o mais corrompido e enfezado de todos os animais, o mais perigosamente desviado dos seus instintos…”. E esta ladainha de louvores ao rebaixamento da pessoa humana não se fica por aqui. Ora, se é este o valor da pessoa, compreendo porque é que nos campos de concentração nazis só aproveitavam os cabelos humanos para a fabricação de tapetes. E creio que, nos da União Soviética, nem isso valorizavam. Quando o preço da vida humana é tão baixo, tornam-se indiferentes as hecatombe e os morticínio em série.

O dramático é que continuamos a seguir esta via. Negamos a Deus o direito de cidadania. Deus tornou-Se um ausente das nossas organizações e da nossa cultura. Melhor, um expulso, um exilado, um afugentado. Confirma-o a fúria laicista do afastamento dos crucifixos, a tentativa de declarar ilegais a participação de instituições públicas em tradicionais manifestações culturais religiosas, ainda que o façam em absoluta liberdade, a subtileza corrosiva de se organizarem as legislações de tal forma que, em nome de uma «liberdade religiosa» mal entendida, se meta tudo no mesmo saco, não como promoção das mais sérias e frágeis, mas para demover e apear as representativas, etc.

Graças a Deus, a instituição militar e as de segurança interna não seguem por esta via. Tenho encontrado, de facto, uma assinalável abertura religiosa. Tenho encontrado muita fé, muita vontade de formação religiosa, adesão aos sacramentos, até frequentes conversões do indiferentismo à vida eclesial. Espero que, no futuro, continuemos a dispor de condições para esta boa relação entre as Forças Armadas e de Segurança e a Igreja. Até porque ela é de sempre, como se exprimia D. José do Patrocínio Dias naquele pequeno texto que reproduzimos em forma de marcador.

Falei na Cultura da paz e na necessidade de o Ocidente arrepiar caminho. Paradoxalmente, a cultura da paz pode supor a necessidade de assumir o imperativo ético da legítima defesa. Quando, como é o caso da actualidade, a balança do bom senso e do humanismo se encontra profundamente desequilibrada, o que nos resta é a obrigação ética da defesa da vida humana e suas instituições e dos valores inegociáveis da liberdade e da justiça social. Ora, se é verdade que nós nos esforçamos por promover essa cultura da paz e dos direitos humanos, outros há que maltratam, dizimam, martirizam, numa fúria selvagem e sectária, típica dos maiores malfazejos da humanidade. Para mais, essa baixeza é embrulhada na capa da religião e no nome de Deus. O que a torna ainda mais animalesca e blasfema. Refiro isto não só como exemplificação da necessidade de conceder lugar a Deus na nossa cultura, para que a pessoa seja salvaguardada, mas ainda para fazer compreender a justificação ética da profissão e da missão daqueles e daquelas que usam armas para, em nome do Estado de direito, defenderem a inteira comunidade nacional e, mediante os pactos estabelecidos, participarem na salvaguarda de outras populações em perigo.

Ainda nos lembramos da primeira leitura? Usava uma linguagem militar para falar da condição crente, o que, aliás, é frequente na Bíblia: o verdadeiro cristão é o que vive em Jesus Cristo e produz obras de santidade. Mas isso não é nada fácil. Precisa –dizia a leitura- de força, poder, armaduras, luta, couraça, espada, etc., para lutar contra os seus instintos meramente naturais e até mesmo contra os contra-valores da cultura dominante. Não esqueçais, caros militares e agentes de segurança: o esforço que impondes ao corpo seja continuado por igual dedicação às coisas da fé e do espírito. Deus vos ajude.

 

Manuel Linda