Maria e a condição cristã

A fé e a nossa cultura religiosa dizem-nos a razão pela qual nos reunimos neste largo do Santuário de Nossa Senhora do Bom Despacho: para celebrar o Domingo, a Páscoa semanal. De facto, este mistério central da nossa salvação é tão grande que não cabe num dia único anual, naquele que nós designamos por Dia de Páscoa. Por isso, dedicamos sempre «o primeiro dia da semana» ao nosso Deus e à salvação operada na ressurreição de Jesus.

Porém, isso não exclui que pensemos naqueles que, em Igreja, souberam viver a sua existência inseridos neste mistério de salvação. É o caso dos santos. Mas, muito mais, o caso de Nossa Senhora, a Mãe do Ressuscitado e, como tal, de algum modo a «portadora da Salvação» ou «Corredentora» e Medianeira. Gostava de meditar nela à base precisamente de duas ideias: como ícone ou paradigma da salvação e imagem da Igreja.

Sabemos bem que as várias designações que atribuímos a Nossa Senhora se referem sempre e só à Mãe de Jesus. Umas vezes, gostamos de a identificar com o nome de uma localidade especialmente com ela relacionada. É o caso de Fátima: Nossa Senhora de Fátima. Outras vezes, designámo-la com títulos que se referem à forma como ela intervém na vida do Povo de Deus. É o caso deste de Nossa Senhora do Bom Despacho.

Qual despacho? Em concreto, a que nos referimos? Vocês, maiatos, sabem-no bem: embora o título, porventura, já venha de trás, liga-se directamente a uma graça obtida pelo juiz Domingos Barreiros Tomé, aí por volta de 1730, que recorre a Nossa Senhora para lhe pedir a luz dos olhos. Vale a pena recordar parte das palavras que, mais tarde, o que viria a ser miraculosamente curado, manda gravar junto da imagem de Nossa Senhora: “Juiz eu sou./Porém o despacho não posso dar [a meu favor]/[Mas podeis vós]/Pois tendes, Mãe singular/Tinta para deferir/Caneta para despachar”. Tinteiro e caneta são dois símbolos que entram nesta imagem da Senhora do Bom Despacho. Claro que o despacho de que aqui se fala é o acto positivo da cura do devoto juiz: para ele, a ansiada «salvação» chegou por meio de Nossa Senhora.

Não admira: a «salvação», a intervenção de Nossa Senhora em nosso favor não é de hoje. Aliás, esta mediação que a Mãe de Jesus faz entre Deus e os homens é mesmo um dos aspectos mais referidos na Sagrada Escritura. Tal como mostram as leituras de hoje. A primeira refere-nos o caso de uma rainha judia, de nome Ester, que, numa das frequentes deportações do Povo de Israel, também é retirada à sua terra. Só que, enquanto o povo foi reduzido à escravidão, ela caiu nas boas graças do rei e pôde viver no seu palácio. Ao dar-se conta de uma conjura palaciana contra o seu povo, com uma habilidade tipicamente feminina, consegue que os judeus sejam salvos e as suas vidas poupadas. A Igreja sempre viu nesta figura de Ester uma prefiguração de Maria de Nazaré, Aquela que continuamente intercede pelo seu povo. O Evangelho narra-nos a sua intervenção, já que, na sua solicitude feminina e maternal, se dá conta de uma necessidade momentânea, suficiente para estragar a festa de um casamento: a falta de vinho. Discretamente, empenha-se na intervenção de Jesus. Sabemos do resultado: por esta mediação de Nossa Senhora, salva-se a alegria, a boa acção do sobrenatural invade o nosso mundo e Jesus começa a revelar-Se como Aquele que é portador desta salvação integral. Mais tarde, ao contemplar tudo isto, S. Paulo como que se sente impelido a louvar a Deus que, assim, nos envolve na Sua salvação, como dizia a segunda leitura: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do Céu nos abençoou com todas as bênçãos!”. Sim, a Senhora é a grande bênção de Deus, a prova de que a salvação que Jesus operou em nosso favor não se refere somente à vida eterna, mas diz respeito a tantas coisas boas com as quais somos cumulados já neste mundo.

A outra ideia a que gostava de acenar brevemente é a de Nossa Senhora como crente ou imagem da Igreja. Sabemos bem como ela se dedicou a Jesus, como fez também a experiência de uma fé que se purifica e como amparou aquele momento determinante que foi o início da Igreja nascente, quando os Apóstolos e a pequena comunidade crente tiveram de assumir nas suas mãos a continuação da acção salvadora de Cristo. Ao olhar para a sua vida e exemplo, descobrimos:

– a condição cristã é estar do lado de Deus. Sim, há muitas preocupações na vida e, porventura, todas legítimas: o trabalho, a família, a educação dos filhos, etc. Nossa Senhora, mãe e «esposa», também as teve. Mas não deixou que qualquer uma delas a afastasse do fundamental: estar com Deus e caminhar com Ele na vida. Ora, se darmo-nos conta disto foi muito importante em todo o tempo, é-o determinante neste nosso em que as muitas solicitações e possibilidades, caldeadas com um certo materialismo reinante, teimam em afastar-nos do «grande horizonte» que é Deus. Para não trocarmos a «Grande Meta» por falsas metas, necessitamos do esforço da vontade e até de uma sã teimosia que nos agarre bem solidamente à fé.

– depois, Nossa Senhora lembra-nos o desígnio de Deus: reunir todos os homens numa só família de irmãos. No Calvário, o Jesus crucificado, deu-nos a Sua como nossa Mãe: deu-a aos bons e aos menos bons, aos santos e aos pecadores. Como que para nos indicar que a maternidade eclesial de Maria é uma imagem e exemplificação da grande paternidade de Deus que nos criou para sermos efectivamente irmãos e não lobos uns dos outros. Este nosso mundo dividido e fracturado precisa, de facto, de conhecer o Pai comum para que se sinta mais fraterno e se cumpra o terceiro grande ideal da Modernidade: a fraternidade, para além da liberdade e da igualdade.

– em terceiro lugar, a figura de Maria de Nazaré, que passa da «velha» fé judaica à nova visão operada por Jesus, lembra-nos que o cristão é chamado a introduzir uma nova mentalidade: ajudar os nossos contemporâneos a dar a primazia a Deus e a respeitar a sua obra e o seu plano criador. Em sintonia com o tão simpático Papa Francisco, no fundo, em sintonia com o Evangelho do qual ele é um servidor qualificado, chamaria a atenção apenas a dois âmbitos. Um deles é a responsabilidade pelos irmãos, particularmente pelos mais «pequeninos», os que menos contam na sociedade, os idosos, os doentes e os portadores de tantos outros sofrimentos. Sei bem que estas «Terras da Maia» possuem inúmeros e excelentes equipamentos sociais. Porém, não podemos confiar a eles a superação de todas as carências, até porque algumas são mais da ordem do afectivo, daquilo que a Igreja designa por «caridade tu-a-tu». Nesta boa relação com os outros, particularmente com quem mais precisa, ninguém se pode dar ao luxo de se demitir da sua obrigação de exercício efectivo do amor cristão. O outro âmbito, muito caro ao Papa, e que ele nos recomendou recentemente com um solene documento chamado “Laudato Si”, é o da salvaguarda da natureza, criação boa e bela de um Deus Bom e Belo. Os nossos parques e jardins, em pé de igualdade com os férteis campos de cultivo, lembram-nos a nossa responsabilidade pelo grande dom que é a natureza e, para uma mente crente, arrancam-nos o grande hino de louvor, aliás já entoado por São Francisco de Assis: “Louvado seja Deus, Criador da natureza, que dos deu este mundo grande e belo”. Que jamais a nossa acção contradiga a acção de Deus: se Ele é o Criador, não sejamos nós os destruidores.

Caros cristãos, Maia é a terra do Lidador, do afamado Gonçalo Mendes. Esta «Terra da Maia», no coração da «Terra de Santa Maria», tem hoje, também, uma responsabilidade determinante: «liderar» a tomada de consciência de uma solidariedade de proximidade que exprima e gere a fraternidade universal e continuar a destacar-se no enorme contributo que dá para conciliar indústria com respeito pela natureza, valorizando, assim, a obra da Criação.

Com a ajuda de Nossa Senhora do Bom Despacho, não neguemos este nosso contributo.

 

Manuel Linda