“Acumulai tesouros no Céu”

Caros peregrinos,

na vida, todos colocamos metas: o curso, a profissão, a compra do carro ou da casa. Mas há metas ainda mais nobres e elevadas: a constituição de uma sólida família, a educação integral dos filhos, a sua inserção na vida do mundo e da Igreja, etc. Também assim deve acontecer na vida da fé. Não chega uma prática religiosa mais ou menos rotineira, mas há que ter bem presente o horizonte para onde nos dirigimos. É o que fazemos com esta peregrinação: o facto de nos deslocarmos até este espaço sagrado de Fátima lembra-nos que a grande meta da nossa fé é Deus: d’Ele vimos, para Ele vamos.

E não vamos sós. Isoladamente, correríamos sério risco de desistir da caminhada. Connosco vão muitos irmãos crentes. E vão Nossa Senhora e os Pastorinhos. Também para estes, Deus constituiu a meta. Por isso, vamos com eles, como faziam as multidões, em 1917, aqui na Cova da Iria, procurando aproximar-se da Lúcia, do Francisco e da Jacinta para, com eles, chegar ao sobrenatural. E porque vamos com eles e eles connosco, colhemos deles a maneira de proceder e de caminhar na vida: tomamos consciência de que somos tanto mais pessoas quanto mais soubermos caminhar lado a lado com a santidade. E aprendemos com eles a amar: a amar a Deus e a amar os irmãos.

É este o sentido profundo da peregrinação. Por isso, ela torna-se metáfora da nossa vida: uma caminhada de irmãos que, em Igreja, em grupo, se dirigem ao encontro do Pai, sob a protecção e com a companhia de Nossa Senhora e dos santos, tentando ser como eles. E eles são os tais que acumularam “tesouros no Céu”, para usar a expressão do Evangelho de hoje, ou, como nos relatava São Paulo no trecho da primeira leitura, os que se tornaram «andarilhos de Deus» apenas para que muitos homens e mulheres se dessem conta de que a nossa meta não pode residir na satisfação que as coisas desta vida nos proporcionam, por mais tecnológicas e atrativas que sejam: usamo-las sabiamente, mas não lhes entregamos o sentido e o destino da nossa vida.

Por isso, a peregrinação é um meio para afinar o azimute da orientação: uma clara tomada de consciência da grande meta ou «grande seio», que é Deus. E uma disposição de caminhar na vida com os irmãos e como irmão. Não como Caim, que matou Abel. Mas na certeza de que Deus, também hoje, nos dirige a pergunta bíblica dos primórdios da humanidade e que o Papa Francisco nos tem colocado repetidas vezes: “Que fizeste ao teu irmão?”. Oxalá pudéssemos responder: “amei-o como a mim mesmo”. E não como o mundo respondeu há cem anos, com a I Grande Guerra: “matei-o”!

Porque os militares e agentes de segurança são quem mais detesta a guerra e quem mais ama a paz, permitam-me que concretize estas ideias em dois pontos.

No nosso meio castrense, valoriza-se muito –e bem!- o «espírito de corpo». Fique muito claro que não pretendo insinuar que quem pertencer a outra fé ou não possuir nenhuma não possa ser um exemplaríssimo profissional destes sectores. Mas afirmo convictamente que uma assumida espiritualidade e um comum ideal religioso potenciam esse mesmo espírito de corpo, favorecem a prossecução dos objectivos e concedem justificação ética ao uso das armas, porque faz dele acção em favor da vida, do direito, da liberdade e da paz, particularmente dos mais débeis. Não obstante alguns aspectos lamentáveis que não vêm agora para aqui, os historiadores chamam a atenção para a mística que deu forma aos Cruzados e às Ordens Religiosas de Cavalaria: porventura, não seríamos hoje um povo livre e independente sem o ideal religioso desses militares que, em nome da Cruz de Cristo, enfrentaram exércitos bem mais números e bem mais apetrechados. Pense-se nos intervenientes da fundação de Portugal, no Mestre de Avis, em São Nun’Álvarez Pereira e no Prior do Crato, por exemplo. E note-se a ironia da história: acabadas aquelas, praticamente também acabou o Exército português, a ponto de ser necessário recorrer a um estrangeiro, o Conde de Lippe, para recomeçar quase do zero. E, mesmo assim, sabemos bem das suas debilidades, como o demonstrou, mais tarde, o heroico e sacrificado Corpo Expedicionário Português. Tudo isto para dizer que uma fé comummente partilhada e assumida -neste caso, a fé católica- concede resiliência espiritual, a ponto de tal já ter dado entrada na formação militar de vários países.

O segundo aspecto tem a ver com o tal saber caminhar lado-a-lado, típico da peregrinação.Constitui uma necessidade por demais pressentida nos tempos que correm. Sabemos bem como o nosso mundo está fracturado. Mas eu creio que os maiores e mais perigosos choques de civilização não são tanto entre o leste e o oeste, entre o norte e o sul, entre uma certa facção islâmica e o cristianismo, embora, neste particular, o mundo assista –sem se ralar muito…- a uma barbárie que até fere aquele nível mais básico que separa a pura animalidade da simples hominização: o grande choque civilizacional é entre o individualismo e o personalismo. O primeiro concebe o homem como simples célula isolada, ser autárquico, incapaz de entrar em relação com alguém, com excepção da relação de domínio e de exploração. É uma falsidade, assumida por muitos. O personalismo, pelo contrário, concebe o homem como ser de relação, de dádiva e de recepção. E gera a família, a sociedade e a Igreja. E até as Forças Armadas e as Forças de Segurança, pois estas não se podem conceber sem a livre colaboração de todos, não obstante a cadeia hierárquica. É a verdade das coisas. Pertencer e viver em Igreja, enquanto assembleia de crentes, é este ser pessoa e jamais ser indivíduo.

Por tudo isto, seja-me permitido formular um desejo e uma interrogação. O desejo passa pela valorização desta peregrinação: no futuro, pelo número e pela intensidade da participação, que ela constitua um dos pontos cimeiros da vivência do «espírito de corpo», cimentado na fé, dos militares e polícias de Portugal. E a interrogação é esta: a exemplo da Peregrinação Militar Internacional a Lourdes, que surgiu para reconciliar povos desavindos pelas duas grandes guerras, não poderia esta nossa Peregrinação a Fátima vir a constituir um potenciador da amizade de todos os Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP’s), nós que assentamos numa história comum de muitos séculos? Não duvido que as distâncias tornam este desejo quase irrealizável. Não obstante…

Que Nossa Senhora de Fátima, os Beatos Francisco e Jacinta Marto e a serva de Deus Irmã Lúcia nos ajudem a viver e a con-viver com Jesus como eles viveram e con-viveram. E nos obtenham de Deus as graças que, com fé, Lhe pedimos para nós mesmos, para as nossas famílias, para as Forças Armadas e para as Forças de Segurança, para Portugal e para a paz e o desenvolvimento do mundo.

 

Manuel Linda