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Integrada nas celebrações do Dia do Exército, o Bispo das Forças Armadas e das Forças de segurança celebrou Missa na igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Elvas. Eis a homilia.

Dia do Exército – 2016 (Elvas)

Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé

A Sagrada Escritura contém inúmeras referências a pessoas que se alistaram no exército e está cheia de comparações e metáforas que se referem à vida militar. Nestas leituras que escutamos, o próprio Apóstolo S. Paulo, já quase no final da sua vida, para sintetizar o que tinha sido a linha orientadora da sua existência, recorre a conceitos eminentemente militares: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé”. Claro que se referia à sua actividade missionária de pregador incansável da fé em Jesus Cristo. E, curiosamente, hoje é o Dia Mundial das Missões. É o dia em que a Igreja nos recorda a necessidade de partir por esse mundo fora para a todos anunciar que Deus tem um projecto para a humanidade: alcançarmos o máximo possível de um desenvolvimento integral e vivermos como irmãos sob a comum paternidade de Deus que nos ama e nos acolhe nesta vida e na eternidade. Porém, atendendo ao cunho específico desta celebração, o relevo concedido pela Bíblia à condição militar dá-me pretexto para uma reflexão com dois objectivos específicos: que a nossa sociedade se dê conta do valor da defesa, no aqui e agora do momento histórico que nos é dado viver, e que os militares, por sua vez, assumam esta missão com redobrado espírito de serviço, modelado por uma ética inegociável.

Esta simpática cidade de Elvas é exemplo privilegiado da história das relações entre povos e das suas consequências práticas. Houve um tempo em que a mente política, a sensibilidade do povo e a inexistência de um direito internacional respeitado conduziam facilmente ao conflito e à agressão. E, neste caso concreto, nós tínhamos medo da Espanha e a Espanha tinha medo de Portugal. Nós construímos fortes, formamos exércitos, erguemos postos de observação. Eles fizeram exactamente o mesmo. E perderam-se riquezas e, fundamentalmente, muitas vidas.

Entretanto, não paramos a história. Gradualmente, pouco a pouco, a sensibilidade mudou, os conflitos abrandaram, surgiu alguma confiança mútua, nasceu uma certa amizade cívica e, ultimamente, ousamos a abertura das fronteiras e a plena colaboração. De tal forma que, hoje, a segurança da Espanha é a nossa segurança e vice-versa. Repare-se: fomos capazes de, dando tempo ao tempo, percorrer etapas, intentar ideais, formular utopias, até chegarmos a esta fase que -creio bem- já não terá retorno para o tempo do conflito e da guerra aberta. E se observarmos à nossa volta, vemos que algo de semelhante acontece nos países ocidentais, de cultura cristã, mesmo que alguns rejeitem este dado. E isto é belo! Isto é humano!

Porém, ainda não atingimos a plenitude do Reino de Deus, onde tudo será harmonia, existência fraterna, paz sem fim. Neste tempo de globalização, vemos que se exporta o terrorismo com o simples gesto de carregar nas teclas de um computador, pois se podem dar ordens para a realização de atentados a fanáticos que se encontram a milhares e milhares de quilómetros e é possível disparar ogivas nucleares que sobrevoam continentes. Nunca como hoje, ditadores sem escrúpulos, que não temem a Deus nem respeitam a humanidade, tiveram as possibilidades de fazer e exportar a guerra mais hedionda, com a consequente violação atroz dos mais frágeis e indefesos.

Perante isto, que fazer? Cruzar os braços e permanecer na mera retórica da «paz e amor», típica das conçonetas? Eu também já tive 18 anos e pensei que essa seria a via. Hoje, porém, o princípio da realidade ensina-me que as coisas são mais complicadas. Embora rejeitando liminarmente a guerra, todas as guerras, no pleno acordo com a doutrina da minha Igreja Católica, neste momento histórico que nos é dado viver, não vejo outra possibilidade que não seja a criação das condições da legítima defesa. Haveremos de chegar a um tempo no qual as Forças Armadas serão dispensáveis. Havemos de lá chegar, um dia, quando a humanidade, toda a humanidade, se humanizar. Mas, infelizmente, esse tempo ainda não chegou. Se, pois, os nossos decisores políticos confundirem o real com o ideal e o hoje com o tempo que há-de vir, tornam-se eles mesmos réus dos sofrimentos escusados da humanidade.

A outra palavra, mais sintética, é uma interpelação que vos faço, caros militares. A sociedade organizada em Estado confiou-vos a tarefa da defesa. É, sem dúvida, uma tarefa que custa dinheiro e tem de surgir dos bolsos dos contribuintes. Dinheiro que faz falta a outros sectores, embora não tanto como o comum das pessoas julga, pois se situa apenas à volta de 1% do Orçamento Geral do Estado. Mas, precisamente pela confiança em vós depositada e pelo investimento, correspondei com uma ética de generosidade e de plena entrega a esta tarefa. Vede que assim fizeram muitos santos militares: S. Sebastião, São Luís, Rei de França, Santa Joana d’Arc, São Nuno Alvarez Pereira, etc. Em concreto, sede portadores de uma ética que jamais troque os elevados valores da vossa deontologia por qualquer outra coisa que fira a vossa consciência. E, na cadeia hierárquica, tratai os vossos subordinados com toda a amabilidade e respeito, na certeza de que todos somos portadores da mesma condição humana e todos pertencemos à mesma sociedade que defende e é defendida.

Para a plenitude deste estilo de vida, rezai. Rezar não fica nada mal a um militar. Mas rezai como dizia o Evangelho de hoje: como o publicano humilde, que reconhecia a sua condição de pobreza moral e, por isso, ousava pedir: “Meu Deus, tende compaixão de mim que sou pecador”. É que a oração exprime o nosso ser. E, evidentemente, a nossa personalidade moral só pode ser à maneira de Deus: misericordiosa, amorosa, simples, afectiva, plenamente dedicada ao serviço do outro.

Por intermédio de Nossa Senhora da Assunção, Padroeira desta igreja/catedral, peço a Deus que a todos nos ajude para que, no fim da vida, possamos dizer como S. Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé”.

Manuel Linda

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