Caros irmãos, em Cristo

1. A celebração litúrgica do centésimo décimo aniversário da Guarda Nacional Republicana, que ocorre este ano, tem a companhia de uma ilustre personalidade que foi determinante no tempo em que viveu, sobretudo por ter impresso valores e atitudes que são perenes e, por isso, não definham com o decorrer do tempo: a missão de servir o bem comum. Falamos de Santa Catarina de Sena, que hoje a liturgia celebra como uma das Padroeiras da Europa. A sua evocação neste dia, por nós consagrado à memória e ao reconhecimento da história recente da GNR, com a sua dedicação e o seu elevado desempenho, não é uma mera casualidade. É, antes, uma luz projetada sobre esta nobre instituição, fulcral para o país, que não cessa de nos propor elevados padrões de civilização e valores essenciais à construção de uma sociedade mais segura e, por isso, mais justa e solidária.

2. Santa Catarina de Sena ficou conhecida pela excecional capacidade de discernir o fundamento de cada realidade. Assim, fez da caridade ardente o alicerce da vida cristã e da fé firme o sustentáculo da santidade.

As circunstâncias da pandemia, em Portugal, puseram à vista os alicerces da própria nação. E foi com um misto de naturalidade e, ao mesmo tempo, de encanto que descobrimos e testemunhámos ser a Guarda Nacional Republicana um dos pilares de sustentação da vida do país. Com uma atuação verdadeiramente transversal e inclusiva, tem desenvolvido uma inquestionável salvaguarda da segurança dos cidadãos e das muitas instituições que compõem o tecido da vida coletiva. Assim como tem sido o garante de algumas das condições indispensáveis para que atividades económicas, empresariais, comerciais e turísticas mantenham padrões de sustentabilidade. Também encontramos a Guarda a assumir a segurança tanto local, como rodoviária e ainda a zelar pelo bom êxito do transporte das vacinas. E, nestes tempos de confinamento, que não cessam de fazer crescer a solidão e intensificar a cultura do descarte humano, como diz o Papa Francisco, a GNR tem materializado em gestos concretos de solidariedade e promoção da qualidade de vida os valores que a regem: a Guarda tornou-se a companhia de tanta gente isolada, sobretudo idosa, vítima da aventura do estar sozinho na vida, sobretudo em lugares ermos e distantes, onde a solidão é modo de existir.

3. Nos últimos meses, a GNR, com a sua capacidade para enfrentar e vencer adversidades, também se constituiu como força de resiliência para toda a sociedade, mas sobretudo para aqueles cuja vida está repleta de obstáculos, barreiras e agruras. Trouxe para a ordem do dia a certeza de que nenhuma dificuldade, por mais aguda, tem obrigatoriamente de ser impedimento à realização de projetos e sonhos, mas ensinou que, com confiança, dedicação e coesão, tudo se transforma em oportunidades para a construção da história. Isso mesmo demonstram os seus 110 anos de vida. Sobressai a força de que a união é superior à fragmentação das divisões. E por isso, nesta hora elevamos a nossa memória e saudade para os que nos precederam no serviço à Pátria, aos portugueses e que honraram a nossa identidade, os quais já entraram no gozo da eternidade da Pátria Celeste. A eles a nossa homenagem.

4. Santa Catarina de Sena foi protagonista de uma intensa atividade de conselheira espiritual em relação a muitas categorias de pessoas, inclusive do Papa Gregório XI que, nesse período, residia em Avinhão e que Catarina exortou enérgica e eficazmente que regressasse a Roma.

Esta faceta, embora seja das mais conhecidas, hoje só a recordamos pela sua pertinência com a atualidade. Um Papa em Avinhão era um Papa fora de Roma, que era e é, o seu lugar natural. Graças à voz enérgica e à vontade firme de Catarina ele regressou para a sua sede.

As oscilações da história e particularmente a pandemia têm tirado muitas pessoas dos seus locais naturais de residência e de trabalho, tendo sido necessário socorrê-las ou reconduzi-las aos lugares a que pertencem. Agradecemos à GNR a sua determinação em socorrer, no Mediterrâneo, os migrantes, homens que procuram um lugar de realização e felicidade, longe das suas pátrias e em demanda de um novo lar de dignidade e respeito pela vida e grandeza do ser humano. Mas também em solo pátrio, os sucessivos estados de emergência e os necessários confinamentos criaram novos habitats naturais para os cidadãos, como medida de proteção, a fim de salvaguardar o bem público da saúde e evitar os contágios. Com indelével sentido de gratidão, hoje reconhecemos que a observância dessas determinações, fulcrais para o êxito do combate à pandemia, em grande parte se deveu à capacidade executiva da GNR. A excelência da sua execução foi e é determinante para o sucesso dos combates travados contra a pandemia. Emociona-nos particularmente que todos vós, em medidas e graus diferentes, é certo, mas todos vós fazeis parte da gloriosa página da GNR dos anos 2020-2021, quando travou um árduo combate contra um vírus que ameaçou paralisar o mundo. Os vossos nomes já estão impressos a letra de ouro nessa honrosa página da Instituição.

5. A Santa de Sena convidava sempre os ministros sagrados, até o Papa, a serem fiéis às suas responsabilidades. Para a GNR, a fidelidade não é apenas a afirmação de uma face da sua plurifacetada realidade, mas nela reside a própria força desta instituição porque é em torno dela que se tem construído a sua identidade: fiéis à pátria, fiéis às legítimas instituições do Estado, fiéis à Grei e à lei. Mas, sobretudo, fiéis aos homens e às mulheres deste país, fiéis aos supremos valores da grei que vós servis.

6. Afirmamos hoje também a inexorável atualidade da GNR, da sua mística, do seu projeto, da sua missão: «Pela Lei e pela Grei».

A relação entre a grei e o a lei nunca foi posto tão em evidência como nestes últimos meses. De facto, a sociedade de hoje já tem interiorizado que o bem da grei, a sua segurança, o seu bem-estar só se conseguem mediante o cumprimento e a observância da lei. Neste sentido, adquire toda a pertinência a analogia que um antigo professor de Ética fazia entre os candeeiros dispostos ao longo da estrada e os artigos da lei. Dizia ele que servem sempre para demarcar os limites da via, mas são particularmente importantes e necessários quando a noite é escura e não se enxerga o caminho. Também a lei nos indica a justa direção a percorrer e serve para salvaguardar a vida, sobretudo quando se percorrem trilhos na mais densa escuridão. O Lema da GNR surge esplendorosamente atual, pertinente e, como nunca antes visto, de extrema necessidade.

O Evangelho estabelece uma maravilhosa ligação entre o serviço aos outros e a felicidade. Diz Jesus, no contexto da última Ceia, após ter realizado o profético e provocador gesto, carregado de significado, de lavar os pés aos próprios discípulos indicando, ao mesmo tempo, serviço e humildade: “O servo não é maior do que o seu senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Sabendo isto, sereis felizes se o puserdes em prática.” (Jo 13, 16-17) Aqui vem consagrado o serviço como caminho para a felicidade. Como têm testemunhado com o seu próprio exemplo, ao longo destes cento e dez anos, aquelas e aqueles que serviram e servem a Pátria e os portugueses na GNR, nada restitui à pessoa a plenitude de vida e de realização como estar ao serviço da Grei e de causas superiores, como a amada pátria. Nenhum esforço é impossível, ou sequer demasiado.

O caminho de entrega da própria vida, de oferta de Si mesmo, vai muito para além de qualquer outra obrigação.

7. Também a primeira leitura (cf Jo 1, 5-2, 2) nos remete para uma maravilhosa realidade existente na GNR, a da unidade, que se traduz em solidariedade e espírito de corpo. Embora o corpo possua muitos membros, é um só. Assim também a GNR, embora formada por muitos e diferentes homens e mulheres e diversas especialidades, continua coesa e unida, sedimentada pela vocação comum de servir a Pátria e os portugueses. A pluralidade, na GNR, é fator de coesão e de incremento da excelência porque maximiza as aptidões específicas de cada um dos que nela servem.

8. Por último, as circunstâncias culturais e civilizacionais, em tempos recentes, vieram trazer atualidade às questões da Justiça, já reportadas por Platão. Tal como hoje se pressente, também o filósofo ateniense refletia sobre a impossibilidade de existir uma justiça humana absoluta, válida para todos, visto que a sua elaboração está sempre condicionada pela vontade do mais forte. Sendo assim, nota o autor antigo, se a justiça não for ditada por uma visão moral superior, poderá não passar de uma dissimulação do poder.

E o desafio que tem atravessado o evoluir da civilização tem sido precisamente o de conduzir a justiça ao campo da ética e de um autêntico sentido moral. A sua afirmação e a sua consecução prática não podem assentar no mero poder de uma elite, mas na universalidade da ética e da moralidade. Este repto, naturalmente, não passa ao lado da própria natureza da Guarda Nacional República. Na sua função de guardiã da Lei, assiste-a a vocação de afirmar, junto da sociedade, a incontornável relação que deverá sempre existir entre Justiça e Ética e até mesmo Moral. Não pode haver uma justiça feita à medida das modas do tempo, nem da espuma dos dias, nem da vontade e dos interesses de um grupo determinado. A força civilizacional de uma sociedade reside precisamente na afirmação da moralidade da justiça. Este é um caminho que, por um lado, manterá a sociedade no caminho da vida, da paz e da felicidade, mas este é também o caminho que conduzirá ao Fundamento último da existência e da Vida, que é Deus. Como dizia Dostoievski “Sem Deus não há moralidade, porque, se Deus não existir então tudo é permitido”. Por isso, renunciar a Deus é renunciar a um sentido ético da vida e renunciar à ética é renunciar a um conceito universal de justiça. Por outro lado, fazer de Deus o centro da própria existência implica colocar no centro das suas preocupações o valor ético da condução da vida. Ninguém se dirige para Deus senão no difícil e espinhoso caminho quotidiano da vida, balizado pelos valores universais da ética.

Cara GNR, a assunção plena da vossa digna e nobre missão coloca-vos no caminho da Grei, para a servir de forma abnegada, mas também vos conduz e vos favorece numa caminhada rumo ao Alicerce último da vida, que é Deus, revelado em Cristo. Ámen!

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós e protegei a GNR.

+ Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

29 de abril de 2021