1. ”Disse-lhes Jesus: « Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo; tocai-Me e vede». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.” (Lc 24, 38-40)
São as palavras de Cristo Ressuscitado que incita os seus discípulos a verem os sinais da sua vitória sobre a morte, mas sobretudo a tocarem as marcas chagadas da sua entrega de serviço e de total dedicação para a salvação do mundo.
Mas este é também o conteúdo do júbilo hoje vivido pelos Fuzileiros, na celebração do seu quadringentésimo aniversário. Tal como Cristo glorioso conserva nas mãos e pés as marcas do seu cruento sacrifício, também os Fuzileiros se apresentam hoje a Portugal e ao mundo na heroica condição de vencedores de muitas batalhas travadas, de incontáveis desafios superados e de inumeráveis metas conquistadas, conservando, contudo, como preciosa condecoração, as marcas desses notáveis feitos. E esses sinais não são só as cicatrizes que os Fuzileiros transportam no corpo e na alma, como apanágio de quem viveu e vive, agiu e atua nas mais adversas situações e árduas condições, cruzando mares, lutando em terras sem fim, entre rios de lodo e capim. Também não é apenas a sabedoria adquirida pela experiência, que os torna aptos a realizar impossíveis e a transformar dificuldades em oportunidades e ocasiões favoráveis. Mas são também as marcas da honra, da entrega, do serviço e da camaradagem. Nas gloriosas peugadas do caminho percorrido pelos Fuzileiros, com a proverbial disponibilidade a servir Portugal e os portugueses, nós verificamos que o principal fruto é a edificação de uma Nação livre que deu novos mundos ao mundo. Nação construída pela valentia destemida e pela coragem confiante dos que fizeram das “frentes”, dos lugares onde é preciso quem sirva, dos cenários onde ninguém quer ou sequer ousa ir, a sua praia, o seu posto de trabalho. E, ao longo dos quatrocentos anos de história, essas frentes e esses espaços têm sido múltiplos e têm assumido facetas diversas. Desde Bolama, ao Zaire, passando por Moçambique, ou Zambeze, já estiveram na Lituânia. Nos últimos anos, vamos encontrá-los a combater os temidos inimigos de Portugal, do seu território e da vida dos cidadãos: os incêndios e a pandemia.
Reconheçamos, com gratidão, os sinais de dedicação e sacrifício a Portugal que os Fuzileiros nos mostram.
2. Nesta precisa ocasião, somos convocados por uma voz que nos chama a revisitar o glorioso Hino Nacional. E descobrimos, maravilhados, que a expressão com que inicia, ou seja, aquela que o inaugura e, ao mesmo tempo, sustenta, como se fosse um alicerce, é o reconhecimento do povo português como «Heróis do Mar, Nação Valente, nobre povo».
Se estivéssemos na presença de uma construção, deveríamos olhar para essa expressão de abertura como sendo a sua base, ou seja, o fundamento sobre o qual tudo assenta. Contemplando Portugal que é, ao mesmo tempo, um dom de Deus — cujas chagas do divino Filho estão evocadas nas cinco quinas — e uma dedicada Obra dos portugueses, encontramos, nos seus alicerces, esses «Heróis do Mar». E quem são esses heróis, sustentáculo da Nação Valente e do nobre povo, que aceitam fazer parte do seu esteio? São aqueles a quem não falta — na pena de Camões e na senda de Vasco da Gama —, conforme diz o Canto X, estância 154 e 155, «na vida honesto estudo, com longa experiência misturado, nem engenho que aqui vereis presente… Para servir-vos, braço às armas feito». Este é o retrato acabado do Fuzileiro, conforme reza o seu lema.
Assim, ao longo da sua história, os Fuzileiros têm realizado a profecia expressa na epopeia dos Lusíadas, em perfeita consonância com a revelação cristã, segundo a qual é o amor que conduz os portugueses à imortalidade. Não o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo: o amor desinteressado, o amor da pátria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefas coletivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse amor que, já manifestado por Vasco da Gama e pelos seus homens, foi herdado pelos gloriosos Fuzileiros de todos os tempos, pelos marinheiros e soldados; é ele que permite a tantos libertar-se da “lei da morte”. É também esse amor que conduziu Camões a “espalhar” os feitos dos seus compatriotas por toda a parte e hoje nos interpela a mostrá-los novamente ao mundo, mas sobretudo a Portugal.
Sim, caros compatriotas, ainda há quem viva para servir, “marchando em par”, ou seja, ao ritmo dos outros, sem a ânsia de ultrapassar tudo e todos, acreditando e gritando com o dom da própria vida e pronto a derramar o seu sangue “que só tem pátria quem sabe morrer, só tem pátria quem sabe lutar.”
3. De facto, a designação “Fuzileiro” é, em si mesma, um programa de vida. Uma prospetiva etimológica fá-la derivar do verbo fundo, -is, -ere, fusi, fusum (cujo particípio passado é fusus, -a, -um), indicando algo a expandir-se, pois o significado é derramar (se aplicado a líquidos), fundir (se a metais), espalhar (se referido a objetos), produzir em abundância (se relativo à terra, ao solo), dispersar…
A nível lexical, está inerente à designação de Fuzileiros um dinamismo expansivo, em que a partir de um centro pujante, vivo, ativo e eficaz, se enceta uma dilatação, uma ação de ampliação, de alastramento. Daí o nome dado ao fuzil.
Este movimento expansivo é, por um lado, profundamente pascal, uma vez que, como ouvíamos na liturgia de hoje, os discípulos, entre os quais São Pedro, levam a boa nova da ressurreição de Cristo ao povo, espalham essa mensagem de esperança e vida: «Deus — testemunha o apóstolo — ressuscitou Jesus dos mortos e nós somos testemunhas disso» (Act 3, 15). Mais, constatamos o prodígio de a mesma força de vida que ressuscitou e glorificou Cristo, estar-se agora a espalhar pelo mundo, criando uma nova sociedade onde, como se lê nos Atos dos Apóstolos, «A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma; ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles qualquer necessitado» (Act 4, 32-35).
Essa mesma vida vencedora da morte expande-se pela humanidade, e quando é acolhida por alguém, leva-o a uma profunda transformação da sua própria vida, condu-lo à renovação existencial, reorienta o seu caminho, e empreende uma mudança de procedimentos e de padrões, como diz o Apóstolo Pedro: «arrependei-vos e convertei-vos, para que os vossos pecados sejam perdoados» (Act 3, 19).
Mas esse movimento, de expansão e abertura, constitutivo da essência dos Fuzileiros, também nos identifica, de certo modo, como Povo e como Nação. Portugal é sempre grande, mas foi superiormente grande quando ousou sair e se expandiu, dilatando os seus valores e até a sua cultura.
Neste momento da nossa história, Portugal precisa muito do valor, da mais-valia que os Fuzileiros têm para dar e oferecer. O vosso hino é um roteiro que nos conduz a terras longínquas, muitas delas hoje a necessitar de paz, de humanidade, de quem sirva o povo pobre e humilde.
Caros Fuzileiros, mantenham acesa a chama da prontidão e da disponibilidade para ir onde é preciso e onde homens como vós são tão necessários quanto o pão. Preservai no espírito de bem servir e conservai-o intacto para que, em momentos de crise, como o que atravessamos atualmente, quando às crises pandémica, social e económica se veio juntar também uma dramática crise cultural e civilizacional, nos voltemos para vós, Fuzileiros, e encontremos quem defenda e promova a paz, a verdade, a justiça e o bem de Portugal e dos portugueses com a dádiva da própria vida.
4. Por fim, um último contributo da Palavra escutada em vista de uma mais cabal compreensão de ser Fuzileiro. Tanto a primeira leitura como o evangelho insistem no realismo da verdade. São Pedro coloca o povo que o escuta perante a grave responsabilidade que tiveram na condenação de um inocente (cf 3, 13-15); e Jesus, no evangelho, insiste em revelar e vincar bem que é real, que não é um fantasma (cf 24, 39), ou seja, não é uma invenção, nem um mito, mas é real, é verdadeiro. São recursos para suscitar em nós o sentido da verdade e a coragem da realidade. Para sentir e para olhar de frente e respeitar a verdadeira realidade requerem-se força e lucidez de discernimento. Os Fuzileiros têm na alma tanto a sabedoria da perspicácia, como a robustez da invencibilidade. Focile, uma outra pista lexical para a raiz de Fuzileiro, remete para o aço que percutido pela pederneira, faz lume e produz a explosão do cartucho.
Hoje, uma das debilidades mais marcantes da nossa sociedade, tanto culturais como éticas, reside na falta de fortaleza para encarar o realismo da verdade. Porque a verdade e a realidade são, por vezes, demasiado fortes, pesadas mesmo que nos questionam e, não raro, surgem dolorosas. Perante elas, age-se com o recurso à pós verdade, à ficção, à cultura do escamoteamento…
Caros Fuzileiros, jamais haveis temido o que quer que fosse e nada temeis! Essa vossa fortaleza e solidez interior que vos carateriza, feita de bravura, de coragem, de competência e de confiança em Deus e na humanidade, seja apresentada ao mundo de hoje, sobretudo aos jovens, para nunca temerem a verdade. Para que, em circunstância alguma, se volte a cara à realidade, porque no mundo real estão pessoas concretas e bem reais que precisam de ser auxiliadas, defendidas e protegidas. Por elas e pela Pátria, em todos os tempos, os Fuzileiros deram, a sua vida.
Aos gloriosos Fuzileiros que tombaram no campo da honra, prestamos hoje a nossa sentida homenagem e expressamos a nossa inolvidável admiração, crentes que nos iremos reencontrar na pátria eterna celeste. Amen!
Nossa Senhora do Mar, rogai por nós. Amen!
+Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança