Batalha, 9 de abril de 2021
1.Para quem chega ao Anneau de la Mémoire no Mémorial International de Notre–Dame-de-Lorette, em Ablain-Saint-Nazaire, em França,
erguido como memória e homenagem a todos os que deram a vida e derramaram o próprio sangue durante a Primeira Guerra Mundial, certamente que ficará profundamente tocado por, no coração do Memorial onde está inscrito o nome de mais de 580 000 combatentes, se erguer um farol. Exatamente a muitos quilómetros do mar, eis que naquelas planícies se ergue ao alto um farol, fonte de luz e auxílio à navegação. O significado de tão inspirado símbolo é tocante: como o farol guia e orienta os navegantes, assim os combatentes auxiliam os cidadãos, mulheres e homens de todos os tempos, a caminharem pelas vias da liberdade, da justiça e da solidariedade; eles são faróis de referência ética, moral e de resiliência para a sociedade.
2. Hoje, dia da comemoração da Batalha de La Lys, o nosso olhar volta-se, uma vez mais, para esse lugar que também de Portugal foi terreno pátrio porque sobre ele sangue português foi derramado. Queremos revisitar esses instantes porquanto, no seu dramático desenlace, continuam a ser para nós não motivo de embaraço, mas uma fonte de inspiração fundada na glória de sermos Nação livre e povo construtor de história, criador de pontes e estradas na promoção da universalidade e do encontro entre culturas e nações.
Iluminados pela Palavra que escutámos, aproximemo-nos desse evento:
«Com que poder ou em nome de quem fizestes semelhante coisa?» (Act 4, 7) Era a pergunta que se fazia aos Apóstolos depois de, por meio deles, o impossível ter acontecido: um coxo de nascença fora curado e começara a andar. Em nome de quem, partiram de Portugal e rumaram à Flandres os jovens de Portugal e em nome de quem lá continuaram em condições adversas a baterem-se,suportando todas as dificuldades e enfrentado todos os sacrifícios? Reencontramos gente de alma pura, profundamente animada pela força das convicções, sendo a principal a de que é possível vencer todas as adversidade e todo o tipo de adversário. Sejam os exteriores, como os inimigosque se combatia na frente da linha, sejam os interiores, como o medo, o mais perigoso de todos, e o desespero. Pela grandeza que habitava as suas almas de combatentes superaramdeficiências, físicas ou logísticas, e entronizaram o amor à Pátria e a coragem como soberanos da sua dedicação.
“A pedra desprezada pelos construtores tornou-se pedra angular.” (Act 4, 11) Ouvíamos São Pedro proclamar em jeito de condensação do mistério salvífico de Cristo que rejeitado e crucificado, ressuscitou, e tornou-se a «pedra angular» sobre a qual se podem apoiar com segurança absoluta as bases de qualquer existência humana e do mundo inteiro.
E podemos aplicar essa declaração lapidar aos Combatentes que hoje recordamos e homenageamos, a qual se, por um lado, sintetiza a sua dramática parábola, ao mesmo tempo os revela como pedras constitutivas do alicerce da Nação. A exemplo de Cristo, que foi desprezado, também os nossos gloriosos combatentessaborearam o cálice amargo do abandono, do ser deixado entregue a si mesmo, mas também eles ascenderam à honra de serem o sustentáculo da afirmação e da coesão da Nação. E porquê? Porque enquanto na mente de uma certa elite intelectual e política de Lisboa, imersa namentalidade afrancesada, à época dominante, se desvalorizava a portugalidade, muito tida porprovinciana em relação aos grandes centros europeus, para os que tombavam no campo da honra Portugal é a Pátria e a Pátria eterna na qual acreditam e servem. E nunca desistiram dePortugal e por ele davam a vida. Embora abandonados, tornaram-se, com a sua bravura e coragem, pedras do alicerce da Nação.
3. Mas La Lys é bem mais do que um campo de corpos dilacerados, é um lugar que expõe a alma desnuda dos combatentes. Como revela magistralmente esse monumento cinematográfico aos combatentes da Primeira Grande Guerra e que é o filme “1917”, produzido em 2019, cujo realizador, Samuel Alexander Mendes, é descendente de bisavô português: naquele contexto de guerra e devastação, onde tudo parece ter sucumbido, desde cidades, povoações inteiras, até fábricas e campos, eis que emerge algo que permanece intacto: são os alicerces interiores daqueles Combatentes que nem a guerra, nem as dificuldades conseguiram ou conseguem destruir. São os valores que estão intocáveis na alma daqueles homens.
O primeiro, entre todos, a família. Sim, neste dia de evocação, memória e homenagem aos nossos heroicos combatentes de La Lys, os que caíram no Ultramar e nas operações de paz, ampliemos o horizonte do nosso olhar e abracemos também as suas famílias que, aqui na Pátria amada, lidavam com um inimigo que se não mostrava mais dócil do que aquele que os seus valorosos entes queridos enfrentavam, lá longe, na frente. Lá tinha um rosto e um nome; por aqui, chamava-se saudade, era o vazio da ausência de notícias, era a preocupação de eles lá passarem fome, frio e não terem os devidos cuidados médicos.
O segundo alicerce que regia toda a estrutura pessoal do combatente era a camaradagem. Independentemente da proveniência e do regimento, ou ramo de pertença, viviam um verdadeiro espírito de camaradagem, partilha da mesma condição e situação.
Mas entre todos os valores, o que se afirmou e que hoje mais nos impressiona e interpela é o da fé e da confiança. E aqui apanhamos a marca distintiva dos combatentes portugueses. Oriundos de todos os pontos de Portugal, muitos do mundo rural, levavam na alma essa fé inquebrantável em Deus. E quando viram que muitos padres se voluntariavam e ofereciam como capelães para os acompanhar, entenderam ser o próprio Deus queos não abandonava, mas estava sempre com eles. E foi esta fé que forjou a confiança. A confiança no ser humano. Só mesmo de alguém que confia no Transcendente é possível esperar uma confiança absoluta nas mulheres e nos homens. Foi o caso dos nossos soldados. A confiança no ser humano, na sua palavra, nos seus princípios, é o que explica a decisão de em La Lys terem permanecido nas trincheiras, em plena frente da guerra, apesar de terem todo o armamento já encaixotado. Sinal de confiança na racionalidade humana, expressão de quem acredita na honra dos homens, sobretudo quando conacionais de um Kant, paladino da máxima «O homem é sempre um fim, nunca um meio», de um Nietzsche,homem revoltado pela sucessiva perda de referências sólidas, de um Beethoven ou JohannSebastian Bach compositores das mais belas melodias a celebrar a paz e a harmonia…Naquelas trincheiras e naqueles campos ensanguentados e lamacentos, repletos de destruição, havia, portanto, a nobreza de soldados confiarem em soldados, ainda que inimigos. Mas… pura ilusão! E é aqui que reside a vitória dos combatentes portugueses: apesar de todas as desilusões, nunca deixaram de afirmar os supremos valores humanos. E preservaram-nos, permaneceram-lhes fiéis até ao fim.
Foi nesse contexto que se deu a derrota dos adversários, de todos eles, exteriores e interiores.Por isso, não apenas a derrota militar, mas também a derrota humana, pois a violência bélicaprovocou a destruição da paisagem, o desmembramento dos corpos e, sobretudo, a tentativa de mutilação do universo da alma humana. E quando se ataca e agride o que pertence à alma já se é perdedor porque isso já não é obra de verdadeiro combatente, mas de delinquente, de mercenário. Como tal, desse conflito armado desumanizado saiu um ser fragilizado, sem fé, vazio, presa do niilismo, dadescrença na força da ciência e no poder do saber, mas sobretudo inauguraram-se novos tempos nosquais reinou a desconfiança recíproca. Só o soldado português permaneceu sóbrio, com a sua alma intocável, por essa razão não sentiu necessidade de regressar aos campos de batalha, vinte anos depois, como sucedeu com todos os outros.
4. No Evangelho, Jesus pergunta: «Rapazes, tendes alguma coisa para comer?» Os discípulosreponderam: «Não!» (Jo 21, 5) Esta interrogaçãosurge no contexto da narração da ressurreição e, por isso, despida daquela carga dramática que representa a falta de comida em contextos como, por exemplo, uma frente de batalha, mas, mesmo assim, é ali mesmo no ato de lançarem as redes que vão realizar a grande e milagrosa pesca. Osegredo do êxito foi seguirem e praticarem o que lhes dizia o Mestre.
Luís de Camões, no Canto V, estância 72 de Os Lusíadas apresenta Vasco da Gama que narra ao Rei de Melinde quem são os heróis lusos. Diz o comandante:
Grandemente, por certo, estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquela Portuguesa alta excelência
De lealdade firme, e obediência.
Nestes quatro versos revela-se um assertivo retrato do povo luso que, sendo grandemente provado pelas contrariedades da história, pelasmais contrastantes dificuldades e por crises de vária ordem, conservou constantemente os valores predominantes e fundamentais. Entre esses, a lealdade e a obediência.
Os que combateram e combatem nas várias frentes de batalhas são animados por um espírito de lealdade e obediência que, em circunstância alguma, nem por nenhum motivo, esmorece ou se transforma em insubordinação. Tal como os discípulos regressaram pela obediência aos barcose retomaram a faina do mar, recolhendoabundante pesca, também os heroicoscombatentes de todos os tempos resistem e permanecem firmes nas frentes de batalha pelo intrínseco espírito de bravura e de obediência. Até que haja obediência há firmeza, coragem, bravura porque através dessa há um horizonte superior transcende que é referência. Obedecem, antes de mais, à voz de Deus, a ressoar no apelo da Pátria. Obedecem à voz interior que apela ao sentido do dever e ouvem, para segui-lo, o chamamento à construção de um mundo novo.
A obediência fecunda a palavra, tanto a que se recebe, como a que se profere. E assim, foi pelo espírito de lealdade e de obediência que os combatentes, hoje evocados e homenageados, setornaram criadores de história, fazedores de novos mundos, materializando-se na realidade de um povo e de uma Nação que é Portugal.
Nossa Senhora da Vitória, rogai por nós.
+ Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança