1. Segundo o escritor Miguel Torga, que dedicou muito da sua vasta obra literária a dialogar com as mais diversas espécies do mundo natural, a natureza faz-nos voltar às nossas origens. Nela se situam as nossas raízes e esse regresso realiza-se por meio do contacto com os seres vivos que habitam o mundo da criação, o qual desperta em nós a sensibilidade para reaprendermos a conviver com todos os seus elementos em harmonia com a razão. Então, o ser humano é chamado a viver de modo fraterno, harmonioso e equilibrado com todos os seres da natureza, que lhe recordarão a origem do seu próprio ser. De facto, mulheres e homens, são chamados a viver em plena fraternidade com o mundo criado porque eles mesmos são constituídos por substâncias da natureza. A este propósito, a narração da criação é maravilhosamente pertinente quando afirma, como escutávamos na primeira leitura (Gn 1), que, durante os primeiros cinco dias, Deus criou o mundo, as árvores, os metais, a água, as plantas, o hidrogénio… e ao sexto dia Deus usou essa matéria criada para plasmar o homem, insuflando-lhe, depois, o seu Espírito, tornando-o um ser diferente e especial, vocacionado à transcendência (Gn 2, 7). Mas a condição original do ser humano é participar da natureza.
2. Esta situação abre-nos à sabedoria da ecologia integral. O cuidado dedicado à defesa da natureza resulta efetivamente na salvaguarda e promoção da vida e da dignidade de cada pessoa. Inclusivamente o futuro da humanidade e do mundo depende do grau de compromisso que, no presente, se coloca para proteger o ambiente e a natureza. Quanto mais dedicados formos à proteção da natureza e do mundo ambiental, tanto mais haveremos de garantir um futuro de qualidade em termos ecológicos, ambientais e humanos.
3. Por isso, a missão do Guarda Florestal adquire, neste contexto, uma importância excecional. A sua ação é das mais nobres, necessárias e urgentes a serem incrementadas em benefício do ser humano e da sociedade. Quando o Guarda Florestal assume a responsabilidade de zelar pela defesa e proteção da floresta e do património cinegético e piscícola, de manter a lei e o controle, de fiscalizar o cumprimento da legislação florestal, da caça e da pesca, de investigar os ilícitos nesse âmbito e de tomar parte na defesa da floresta contra incêndios, incluindo a investigação das suas causas, está a ser fator decisivo na missão de salvaguardar a casa comum, assegurando, ao mesmo tempo, a sobrevivência da vida no planeta Terra, incluindo a vida humana. Por isso, a missão que, segundo o relato da criação, Deus conferiu ao homem e à mulher de cuidarem da criação está a ser desempenhada, antes de mais, pelo Guarda Florestal que age em função da mais estrita preocupação com um presente saudável e seguro, do ponto de vista climático e biológico, mas também em nome de um futuro habitável e benigno.
4. O evangelho estabelece uma ligação entre a confiança e a preservação da natureza. De facto, a primeira expressão de quem acredita é a contemplação: “olhai as aves do céu, olhai os lírios do campo”. Esta atitude não manipula o horizonte observado, não o invade nem o desvirtua, antes o respeita. Olhai as aves do céu e os lírios do campo! Porém, quando a confiança falta e o homem se convence de que está apenas nas suas mãos garantir o futuro, tende a manipular a natureza a ponto de a destruir, porque nessa vertigem de querer fazer deixa-se vencer por interesses nem sempre éticos, nem sempre legítimos, nem sempre santos. Confesso aqui o quanto me impressionou a obra do filósofo inglês Keith Ward. Advoga ele taxativamente que, entre todas as espécies à face da Terra, o ser humano é a única que empenhadamente destrói o próprio habitat, entenda-se a casa comum que partilha com os demais elementos da natureza, por ganância ou sede de domínio. Falta à sociedade de hoje a referida confiança, tanto elogiada no evangelho. A sua inexistência move o ser humano a lutar para saciar a fome que sente não só no presente, mas também a que supostamente poderá sentir no futuro. Tal obriga-o a uma atitude exploradora, dominadora da Terra, não contemplativa, nem respeitadora. Ora, é contra esta atitude prepotente e abusadora da natureza que é preciso precaver-se e defender-se, para conservar íntegros todos os ecossistemas. A missão do Guarda Florestal situa-se precisamente na linha desta consciência ecológica, como profeticamente lhe chama o Papa Francisco na encíclica Laudato Sí.
5. A Sagrada Escritura ensina-nos que o mundo nasceu de uma decisão de Deus que o chamou e o chama sempre à existência, por amor. O universo é belo e bom e contemplá-lo permite-nos vislumbrar a infinita beleza e bondade do seu Autor. Cada criatura, até a mais efémera, é objeto da ternura do Pai, que lhe concede um lugar no mundo. O cristão, bem como todos os homens de boa vontade, não podem deixar de respeitar a obra que o Pai lhes confiou, como um jardim a cultivar, proteger e fazer crescer segundo as suas potencialidades. O Guarda Florestal encarna esta responsabilidade e missão. O homem, a quem assiste o direito de recorrer à natureza para realizar alguns dos fins mais nobres e necessários para a vida, não deve, de modo algum, considerar-se seu proprietário nem déspota, mas apenas o administrador, que terá de prestar contas da sua gestão. Neste jardim que Deus nos oferece, os seres humanos são chamados a viver em harmonia na justiça, na paz e na fraternidade, ideal evangélico proposto por Jesus (cf. LS, 82). E quando se considera a natureza unicamente como objeto de lucro e de interesses — uma visão que consolida o arbítrio do mais forte —, rompe-se a harmonia e verificam-se graves desigualdades, injustiças e sofrimentos. São João Paulo II afirmou: «Não só a Terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado» (Centesimus annus, 38). Portanto, tudo está interligado. A indiferença, o egoísmo, a ganância, o orgulho e a pretensão de ser o dono e o déspota do mundo levam o ser humano, por um lado, a destruir as espécies e a saquear os recursos naturais e, por outro, a explorar a miséria, a abusar do trabalho das mulheres e das crianças, a deturpar as leis da célula familiar, a deixar de respeitar o direito à vida humana desde a conceção até ao fim natural.
Portanto, com o Papa Francisco, podemos falar de uma crise ecológica que é «uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade» e, por isso, acrescenta o Papa Francisco na Laudato Sí “não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais» (LS, 119).
Por conseguinte, não haverá uma nova relação com a natureza sem uma nova consciência no ser humano. Só curando o coração humano se pode esperar sarar o mundo das suas desordens sociais e ambientais. Esta é também uma incumbência pertencente à missão do Guarda Florestal: cuidar da casa comum, cultivando a harmonia social.
6. É certo que a pandemia, com a sua intensidade e longo período de permanência entre nós, veio colocar novamente no centro da reflexão a relação entre homem e natureza. A crise pandémica se, por um lado, trouxe para a luz do dia a crise profunda da relação ser humano-ambiente, por outro lado, está a mostrar como a natureza, não obstante os significativos e importantes avanços científicos e tecnológicos que se deram, continua a ser um enigma e, de certo modo, está fora do controle do ser humano. Afinal, não são só as trovoadas, os tremores de terra, os terramotos ou a sucessão das estações do ano e o ciclo natural que escapam ao controle do homem, também a possibilidade de transmissões de vírus ao homem, por parte de animais ou de outros elementos naturais, está sempre em aberto. Este facto leva-nos a suspeitar de que a força de uma ética meramente natural já não é suficiente para sanar tal relação. Hoje sentimos que a humanidade deve escutar de novo as palavras proferidas pelo Senhor Deus quando nos concedia a responsabilidade de cuidar da casa comum. Esse cuidado deve situar-se na senda da ternura de Deus para com a sua criação.
Os incêndios têm sido, tal como a covid o está a ser, a grande ameaça não só à saúde pública, mas também à própria soberania nacional. O nosso país viu-se reiteradamente confrontado com um inimigo tão difícil de combater, que impõe as suas regras e inclusivamente faz vítimas. Tal inimigo faz estremecer a consciência coletiva do país porque se apresenta indomável na sua ferocidade e nos torna mais pobres e vulneráveis, transformando Portugal num país de muita terra queimada. Por isso, hoje, a proteção contra a ameaça dos incêndios é um ato patriótico. E, pela minha parte, com a mesma facilidade com que aceito que se diga que a pandemia é um inimigo letal que é preciso combater, também atribuo aos incêndios idênticos qualificativos bélicos. É preciso considerar que destruir a floresta e as paisagens portuguesas é destruir Portugal. Como tal, o Guarda Florestal constitui, em território pátrio, uma autêntica Força Nacional Destacada, cuja força de combate visa defender diretamente o território nacional. Assim, aceitai esta sincera homenagem ao vosso esforço e à vossa dedicação, bem como homenageamos os que já partiram para a pátria eterna. Amen!
+ Rui Valério