Caros irmãos, em Cristo

1. Na sua obra A República, Platão, famoso filósofo grego, ao estabelecer os requisitos orgânicos da sociedade ideal, coloca aí uma figura omnipresente: a dos guardiões, sempre em estreita relação com as mais elevadas virtudes inspiradoras da vida e organização dessa mesma sociedade. Assim, os guardiões, tão presentes e ativos na afirmação da justiça, entendida como o ato de “dar a cada um o que lhe é devido” (República 331e), vêm apelidados de “artífices da liberdade” e ainda recai sobre eles a árdua tarefa de assegurar a guarda da comunidade, tanto de inimigos externos, como dos inimigos morais, sendo estes tudo o que corrompe o caráter e a moral. Cito “Os nossos guardiões, libertos de todos os outros ofícios, devem ser os perfeitos artífices da liberdade cívica, devotando-se-lhe e, com nada mais se ocupando que não diga respeito a isso, é preciso que não façam nem imitem qualquer outra coisa. Mas, se imitarem, que imitem as qualidades que lhes convém adquirir desde a infância – a coragem, a temperança, a pureza, a liberdade e todas as virtudes dessa espécie. Mas não devem praticar, nem serem capazes de imitar, a baixeza, nem nenhum dos outros vícios, para que da imitação não impregnem a realidade.”(República 395 c).

Estamos perante uma entidade que foi consagrada em todas as sociedades ocidentais e que, ainda hoje, é uma fonte de inspiração para a organização da vida comum. Por isso, além de manter uma evidente atualidade, também nos oferece a possibilidade de melhor compreender o múnus da Guarda Nacional Republicana, de certo modo herdeira da mística desses guardiões de outrora. E confirmamos que, no labor de zelar pela lei e pela grei, a GNR é a força que garante a integridade da vida dos cidadãos, ao mesmo tempo que, quer seja enquanto Corpo, quer seja individualmente, também zela pela salvaguarda dos valores que favorecem a vida e promovem a dignidade do ser humano enquanto pessoas.

2. Ao longo da sua história, a GNR presente e operante em Coimbra, bem como nos doze anos de Comando Territorial, tem sido incansável em encarnar esse espírito, aliando à dedicação pela segurança dos cidadãos um verdadeiro empenho pela afirmação das referências que tornam a vida em sociedade mais justa, mais livre, mais tranquila, enfim, numa palavra: mais apetecível.

Como todos nós sabemos, Coimbra, do ponto de vista cultural, tem uma estreita relação com a Atenas de Platão, de Aristóteles, de Epicuro, de Sócrates… enquanto templo do saber, do conhecimento e da inovação. Ora, a Universidade quando foi criada, nos séculos XI-XII, não pretendia somente ser uma recuperação do espírito ateniense, de pensamento e liberdade, mas também um motor de humanismo e de universalidade, por isso se chama universidade.

Mas estes requisitos só serão preservados se houver quem os garanta. E, por isso, a GNR, na sua missão, encarna precisamente essa incumbente necessidade de assegurar a possibilidade efetiva daqueles predicados e valores que permitem o desenvolvimento do espírito de inteligência e de pensamento. Deste modo, neste território tão iluminado pela Universidade, a presença da GNR, através do seu Comando Territorial, enquadra-se perfeitamente no contexto da vocação que a mesma determina. Evocando Platão, atribuímos àquelas e àqueles que compõem este Comando Territorial esse qualificativo tão apropriado de artífices da liberdade. De facto, a liberdade é a condição não só para se progredir no caminho da verdade e da pesquisa, mas também é a defesa da liberdade que salva o ser humano de cair nas armadilhas de tantas prisões, como o são os vícios, as múltiplas formas de adições, a violência arbitrária, o perjúrio… É ainda o zelo pela liberdade que nos redime da servidão do mau caráter. Tendes, portanto, enquanto elementos do Comando Territorial de Coimbra, um perfil muito específico através do qual sois herdeiros de uma ação que afunda as suas raízes no mais profundo húmus da cultura ocidental.

3. Mas tendes ainda outra característica que deve ser salientada. O vosso Comando Territorial engloba, obviamente, uma extensa dimensão rural e interior, com as suas tradições específicas, as quais urge salvaguardar. No entanto, o mesmo espaço territorial também se enquadra numa dimensão cosmopolita e urbana, que é ponto de passagem e de chegada obrigatória das últimas tendências culturais mundiais. Uma das primeiras instâncias sobre as quais recai a responsabilidade da interação entre cidade e ruralidade, para além da Igreja, é precisamente à GNR. Por três razões: primeiro, porque tem uma presença efetiva em todo este imenso território, o que lhe confere estatuto de proximidade e interação com todos os cidadãos; segundo, a GNR tem bem assimilada a diferença entre conteúdo e forma, por isso, independentemente de agir na cidade ou na província, no litoral ou no interior, vive consciente daquilo que é essencial e que é preciso salvaguardar: falamos, naturalmente, da matriz civilizacional humanista que tanto inspira o espaço urbano como ilumina o espaço rural, ainda que, por vezes, se tenha de usar linguagens e formas de expressão e atuação bem diferentes. Mas só uma instituição como a GNR (e também a Igreja) está capacitada para decifrar essa unidade essencial nas diferenças conjunturais.

Em terceiro lugar, embora discretamente, a GNR está na grata posição de poder pôr a render os benefícios da ruralidade no espaço urbano e de levar à província as mais valias da cidade. Concretizando, a cultura ambiental e ecológica dos campos, serras e vales é introduzida na cidade e o valor do pensamento, do esclarecimento, bem como a abertura ao universal, tão típicos da cidade, são partilhados com a província. Aliás, Miguel Torga considerava Coimbra como a janela aberta sobre o Portugal das montanhas e sobre as aldeias das tradições, ao mesmo tempo que era uma porta escancarada ao mundo. Este caráter pendular tem sido desenvolvido de forma cabal por este Comando Territorial.

4. A Palavra de Deus que escutámos e a cultura do cristianismo oferecem preciosa ajuda à compreensão do desenvolvimento dessa inter-relação. De facto, na base desta abertura relacional, está uma mais fundamental e absoluta que move todas as outras ligações: a relação com Deus. Sobre a comunhão da pessoa com Deus estabelecem-se e abrem-se todas as outras relações.

Como dizia a primeira leitura (cf Tob 3, 1-17), Tobit e Sara tinham como estrutura fundante das suas existências a abertura e a relação para e com o Senhor. Pois bem, isso permitia-lhes que nenhuma situação, mesmo a mais dramática, os encarcerasse nos meandros das suas teias, tornando-os prisioneiros. Qualquer desaire era entendido como uma nova oportunidade para se conectarem com Deus.

Quão importante é a vida de comunhão com Deus, tanto para a vida pessoal do membro da GNR, como para a sua vida profissional, na medida em que as circunstâncias vividas no decurso da sua missão, por mais extremas que sejam, ou possam ser, nunca serão sufocantes, nunca terão a última palavra.

5. A pandemia foi, como enfaticamente diz o Papa Francisco, uma tempestade que abalou a barca do mundo. E reconhecemos que, na verdade, tem revelado imensas vulnerabilidades, mas também mostrou quem são os autênticos sustentáculos da vida da nação. E a Guarda Nacional Republicana surge como um dos principais pilares do país.

Com alegria e gratidão constatamos que, ao longo deste doloroso período de pandemia, a ação e a postura do Comando Territorial de Coimbra tem-se pautado pelo mais rigoroso cumprimento do dever, honrando a sua sagrada vocação de ser “pela lei e pela grei”, pela Criatividade, pela solidariedade e pela responsabilidade.

Pela Criatividade. A nova situação veio exigir que os valores de sempre fossem ativados num contexto inesperado e desconhecido. Foi o que a GNR do CT Coimbra fez, ao pôr em prática na sua postura os princípios inspiradores do serviço, da entrega e da competência, encontrando quotidianamente modos e formas de os realizar. E o que é maravilhoso é que a grei protegida foi capaz de reconhecer o quão enorme foi o esforço da Guarda para garantir a manutenção e prossecução dos horizontes humanizadores da sociedade, das povoações e dos lares.

Pela Solidariedade. Dou voz às boas novas que o senhor Capelão me transmitia e fazia chegar. Ao sentido do dever, conjugou-se um indefetível espírito de solidariedade. Já responsável pela segurança de todos os cidadãos, a Guarda ainda foi o bom samaritano que se pôs ao encontro de quem estava só e isolado em aldeias e montes distantes. Levou conforto a quem viveu a dramática experiência de ver partir um ente querido para a eternidade. Promoveu ações de entreajuda para os mais carenciados e usou de pedagogia para dar alguma familiaridade a cidadãos perdidos no tempo e na vida.

Enfim, pela responsabilidade. A responsabilidade é a arte de responder prontamente aos apelos e às solicitações da grei e das circunstâncias, e de responder também, dentro dos parâmetros da lei, às consequências das ações praticadas. Quando assistimos, como sucede nos dias de hoje, ao deflagrar de uma evidente crise ética, cuja marca mais saliente é a dificuldade das pessoas, tanto coletivas, como individuais, assumirem a responsabilidade, seja das suas decisões, como dos seus atos, constatamos que uma das prerrogativas da GNR, e concretamente do Comando Territorial de Coimbra, é um acurado sentido de responsabilidade. Iluminados pelas palavras do evangelho escutado (cf Mc 12, 18-27), deparamo-nos com um novo rosto do sentido de responsabilidade, enquanto resposta guiada pela coerência. Jesus, confrontado pelos saduceus acerca de uma questão casuística sobre a aplicação de um artigo da lei mosaica, salienta, de facto, a força da coerência. Assim, a aplicabilidade da legislação só tinha cabimento dentro dos parâmetros do tempo e da história, onde a organização da sociedade contempla a constituição de famílias pelos vínculos do matrimónio. Mas este procedimento, válido para a temporalidade, já não se verifica para além da dimensão espácio-temporal, ou seja, na eternidade porque nela é a ressurreição que recria uma nova corporalidade, uma nova vida. Jesus revela-nos que a responsabilidade consiste em responder e agir de forma coerente.

O caráter de quem serve no Comando Territorial de Coimbra é feito de coerência com a letra e o espírito da lei, de fidelidade ao juramento Militar, de conformidade com a missão recebida. Hoje recordamos e homenageamos, agradecidos e saudosos, todas e todos os que serviram Portugal e os portugueses na GNR, ao longo dos 106 anos de presença no distrito e nos 12 anos do Comando Territorial de Coimbra e já partiram para a Pátria eterna, tendo-nos deixado tão edificantes exemplos.

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós. Ámen!

+ Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança