Caras irmãs, Caros irmãos

Toda a Palavra de Deus deste Domingo da Misericórdia se situa em contextos e ambientes hoje muito atuais e familiares. Por isso, estamos a viver um verdadeiro dia de graça porque, para além da divina misericórdia que incessantemente recebemos do Alto, ainda somos agraciados com a luz da Palavra, que nos ilumina, e o conforto da presença do Senhor nas nossas vidas.

1.Diz o evangelho que «Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, (…) veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco”» (Jo 20,19). O isolamento em casa, de portas fechadas, é-nos agora tão familiar! Tal como os discípulos, também o mundo se encontra encerrado nas suas habitações, tolhido pelo medo. Mas o receio que nos mantém afastados dos outros é hoje provocado pela ameaça de um vírus cuja propagação é demasiado fácil e a sua ação sobre o ser humano, profundamente adversa. O medo passa, portanto, a condicionar as relações sociais. Todos precisam de se resguardar.

Atendendo ao texto bíblico, é dentro de casa, de portas fechadas, que paradoxalmente se dão experiências verdadeiramente fascinantes, de grande valor salvífico. Foi no interior da habitação onde os discípulos se refugiavam, tolhidos pelo receio, que o Senhor Ressuscitado se fez presente e se reencontrou com eles, concedendo-lhes os dons da Paz e do Espírito Santo.

A paz não traz apenas a serenidade para a vida, mas é o sustentáculo da sua realização e do seu desenrolar. É assim que descobrimos como a vocação do Militar e do Elemento de Segurança — chamados a defender e promover a paz — tem as suas raízes mais profundas no próprio Mistério Pascal. Ou seja, o ímpeto transbordante de vida é o habitat do chamamento a servir a paz, porque a paz é, de facto, o alicerce fundamental do florescimento e crescimento da vida.

2.Mais, atrás daquelas portas fechadas, o Ressuscitado infunde o Seu Espírito sobre os Apóstolos, concedendo-lhes o poder de perdoarem ou reterem os pecados em nome de Deus. Este momento remete-nos para um episódio da vida histórica de Jesus narrado nos evangelhos sinóticos quando lhe trouxeram um paralítico para ser curado e Jesus, antes de lhe conceder a capacidade de andar, disse-lhe: «os teus pecados estão perdoados» (Mt 9, 2) e, perante a estupefação e o escândalo dos fariseus, acrescentou: «para que saibais que o Filho do Homem tem o poder de perdoar os pecados, digo-te “levanta-te, toma a tua enxerga e caminha”» (Mt 9, 6).

A misericórdia, como perdão dos nossos pecados, é o caminho para a cura das enfermidades que atormentam e atrofiam o ser humano. Não há salvação integral que não compreenda a cura da alma e do corpo. Por isso, em tempo de pandemia, em que todos procuram proteger-se do vírus que provoca a COVID 19 e os cientistas se dedicam a encontrar o remédio para o mesmo, somos alertados para o facto de, a par desse vírus fustigador do corpo, o ser humano também dever combater o vírus da maldade e do pecado que entorpece a alma, danifica o coração e bloqueia a comunhão com o próximo. Tal combate realiza-se sempre que o ser humano cultivar o sentido de Deus na sua vida. Por isso é tão significativo que o relato do evangelho insista no facto de, em ambas as ocasiões nas quais o Senhor se fez presente naquele local, as portas estarem fechadas. A Sua vinda abre as portas do medo que nos entorpece e inflama em nós o desejo de sair ao encontro das necessidades do outro. A presença de Jesus na vida de cada um de nós cultiva o sentido profundo de Deus tanto na vida pessoal como no mundo e na história da humanidade. Jesus oferece-nos a salvação integral. No relato já evocado do encontro de Jesus com o paralítico, o Senhor começou por lhe arrumar a casa interior da alma e do coração e só depois é que o libertou da condição de paralítico. Assim, para além de todos os cuidados relacionados com a saúde do corpo, também somos chamados a dedicar atenção à nossa interioridade. Ao mesmo tempo que a comunidade cientifica internacional se aplica na procura de uma vacina que vença o vírus, o mundo deve também despertar para a necessidade de arrepiar caminho, abandonar a via do lucro, da exploração do homem pelo homem, da vingança, de modo a empreender o caminho da solidariedade, da misericórdia e do perdão. Cabe aqui, pois, reforçar o propósito, tão querido do Papa Francisco, de solicitar aos países credores o perdão da dívida ou de parte da dívida dos países mais pobres… Mas que este perdão seja um movimento que resulte em benefícios concretos para o cidadão comum, sobretudo os menos bafejados pela sorte.

3.O evangelho ainda nos oferece um dos momentos mais marcantes e curiosos da vida do apóstolo Tomé. O seu lema parecia ser «ver para crer», enquanto Jesus proclama a bem-aventurança «felizes os que acreditam sem terem visto». É costume atribuir a Tomé o estatuto de referência para o comportamento do homem moderno que, ao que parece, também só acreditaria no que visse. No entanto, os nossos contemporâneos nem sequer no que veem parecem acreditar! Esta desconfiança fundamental no sentido da vida e na capacidade de contruir um mundo mais humano tornou a situação do ser humano muito precária. Pô-lo à mercê de todo o tipo de preconceitos e crenças infundadas, mas não empenhado na busca da verdade, nem tão-pouco nas evidências que a própria natureza lhe servia todos os dias. Em vez disso, a fé e a confiança autênticas remetem-nos para a verdade. Acreditar é o ato de adesão à própria verdade, revelando-se nas atitudes e comportamentos que decorrem da sua aceitação. Por isso, Cristo, neste diálogo com Tomé, consagra a relação entre fé e verdade que, no cristianismo, é indissolúvel.

4.Também a primeira leitura (Act 2, 42-47) nos oferece uma luz e uma consolação para este tempo. Além de nos oferecer um retrato maravilhoso da vida na comunidade cristã primitiva, insiste na relação entre a união de cada um com o Senhor e a comunhão que daí advém com os irmãos. É a aliança de amor de cada um de nós com Cristo que fomenta e gera a aliança solidária entre os irmãos. E é maravilhoso constatar que a experiência pessoal de relação com Cristo ressuscitado, torna-se caminho para construir a Igreja e reforçar a comunidade cristã. Portanto, quando o encontro com o Senhor é autêntico e verdadeiro, conduz-nos a sair de nós mesmos para viver em união com as irmãs e irmãos da comunidade a que pertencemos.

5.Que o Senhor nos ajude a não cair no perigo do gnosticismo que, por estes dias, o Papa Francisco tanto tem referido, que se traduz no subjetivismo de uma fé desligada da vida comunitária.

 

D. Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança