“Quem te sagrou, criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal. “
1. Uma das explicações etimológicas para o nome Portucale/Portugal remete para a expressão “além do porto”. Esta aceção, aplicada ao território designado, identificaria a sua situação geográfica concreta, um território para “lá de um porto”, fosse ele de mar ou de rio.
Embora exprima um particular contexto geográfico, no nosso caso, o nome Portugal extravasou amplamente a sua natureza geográfica, para passar a designar uma entidade muito mais complexa, dinâmica e, num certo sentido, intangível, que é uma Nação e um Povo.
Ao escolhermos e ao assumirmos que somos Portucale/Portugal, ao reconhecermo-nos coletivamente como tal, nós afirmámo-nos e definimo-nos historicamente como uma identidade cuja matriz radica num significado mais profundo — quase diria conotativo: a vocação de ir mais além, cujo meio de realização é configurado pelo mar. Assim se consubstancia o nosso desígnio eminentemente náutico e marítimo.
Como escreveu F. Pessoa:
“Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além de terra.”
2. A História tem confirmado este desígnio e dado razão à força de projeto que encerra em si, quando, em momentos de crucial gravidade, tem sido o mar a oferecer a porta e o caminho para se ir além da dificuldade e da contingência, além do momento difícil do presente.
E hoje, em que Portugal está novamente a braços com uma situação assaz complexa provocada pela pandemia, e se sente a necessidade de a ultrapassar, de ir além dela, é novamente o Mar que se apresenta como caminho. Já outrora nos havia levado até à Índia. Agora conduzirá Portugal para a vida retomada e recomeçada.
É neste contexto que a Marinha revela a sua perene atualidade e se afigura verdadeiramente imprescindível e necessária. Perita na arte da navegação, com o seu “talent de savoir faire”, não só dominou os mares, como foi a Marinha Portuguesa que transformou o Mar em caminho. Esta é a sua verdadeira especialidade: construir e indicar caminhos que conduzem à conquista de novos conhecimentos e de novas possibilidades de vida.
Fomos e somos peregrinos do Mar. Vivemo-lo enquanto interpelação e apelo. Desvendando-o, descobrimo-nos. A nós mesmos e ao Outro.
“Cumpriu-se o Mar”, escreveu ainda Pessoa. Cumpriu-se e continuará a cumprir-se. Porque é a nossa vocação. Porque é o nosso desígnio.
3. Hoje a Marinha, na senda da sua história e na fidelidade à sua vocação, é chamada a ser a porta do caminho que há de ajudar Portugal a ir mais além. A Palavra de Deus escutada na primeira leitura vem em nosso auxílio. Primeiro: «o tribuno (um militar romano com responsabilidades administrativas) mandou que retirassem a Paulo as algemas». É um ato libertador que restitui a Paulo a dignidade de homem livre, mas também lhe restitui a possibilidade de operar, de fazer uso das mãos, um instrumento tão importante e significativo para o ser humano.
A Marinha Portuguesa, na ação civilizacional que empreendeu no mundo, deixava, por onde passava, o último grito das descobertas científicas e as mais recentes invenções tecnológicas. Mas a bordo das suas embarcações, levava, sobretudo, os meios e instrumentos de libertação, transportava a consciência da dignidade da pessoa humana. Aqui fica a nossa homenagem à Marinha, àqueles e àquelas que já partiram para o porto eterno da eternidade e a quem se deve o facto de o mar se constituir como espaço aberto. É esta liberdade marítima que hoje elogiamos e agradecemos.
Mas a leitura refere-nos uma outra libertação: Paulo teve de ser levado para não ser despedaçado, teve que ser salvo. A Marinha, com os seus meios e usando a sua linguagem, não cessa de salvar incansavelmente tantas pessoas ou povoações no caos da guerra ou do caos geológico, pois a sua vocação também é libertar de todas as formas de escravidão, de pobreza e de ignorância. E na força da libertação surge a esperança, essa energia que ninguém nos pode tirar, como diz Luiz de Camões (V, 84):
«Assi que deste porto nos partimos
Com maior esperança e mor tristeza,
E pela costa abaixo o mar abrimos,
Buscando algum sinal de mais firmeza.»
A qual também irrompe na serena manhã depois da tempestade (IV, 1):
«DESPOIS de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento»
4. A celebração do Dia da Marinha assinala não só um extraordinário feito histórico de elevado valor científico e civilizacional, mas consagra, de forma indissolúvel, a aliança entre Portugal e o Mar. Desde que os nossos navegadores fizeram do Mar um timoneiro de novos tempos e de novas eras, tal atribuição ficou presente e ativa na consciência nacional. A epopeia de que hoje fazemos memória inaugurou a nova época da modernidade, a qual ficará para sempre ligada ao mar, como estão todas as outras. Recordemos que, segundo os evangelhos, foi junto ao Mar da Galileia que Jesus inaugurou os novos tempos da salvação quando iniciou a sua pregação e chamou os primeiros discípulos, homens do mar; assim como foi com o mar que se afirmou a era áurea de Portugal, quando deixou de ser um quinhão de terra num ponto remoto do Ocidente e se transformou numa potência mundial.
Ora, está a surgir um novo tempo, como incansavelmente refere o Papa Francisco quando diz que não estamos só numa época de mudanças, mas numa mudança de época, configurada pelo Mar. E deste novo tempo emergente, a Marinha Portuguesa está a ser ativa protagonista e pioneira benemérita. Por isso, ao mesmo tempo que constatamos que a Marinha sempre cultivou a capacidade única de levar a portugalidade através do mar, também tem demonstrado inata aptidão para trazer os tesouros do Mar para Portugal e de os oferecer aos portugueses. Tesouros que, hoje, como ontem, se fizeram padrões de identidade e critérios de ação.
Entre todos destaca-se a universalidade, o sentido de que, em todas as circunstâncias da vida, a humanidade é uma família única que navega no mesmo barco. A conferir unidade entre povos e continentes é o Mar. Como escreve Fernando Pessoa:
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
Esta unidade universal concedida pelo Mar vem oferecida pela Marinha ao mundo, que a concretiza em facto cultural e histórico e atitude ética. Por isso, já pioneira na criação da moderna globalização, a Marinha continua a oferecer à sociedade o precioso tesouro de uma união universal e ao indivíduo a consciência de pertencer a uma família humana única que habita uma casa comum. A Marinha vive e fortalece uma verdadeira cultura do encontro, tão essencial para o progresso de qualquer época e tempo, único caminho para a paz e entendimento entre as nações.
5. Este espírito, vem exaltado no Evangelho que escutámos. É uma verdadeira gramática que conduz à unidade de todos os povos e nações. Jesus aclama o valor da unidade (“para que sejam um, como Nós somos um: Eu neles e Tu em Mim, para que sejam consumados na unidade”). Na comunhão com o Pai reside o alicerce sobre o qual se ergue a possibilidade da comunhão entre todos os povos e nações. Nada serve mais a causa da harmonia e da concórdia entre as pessoas do que a relação com Deus.
Vislumbramos, então, que a grandeza das relações que os marinheiros portugueses estabeleceram e estabelecem com outros povos e culturas foi e é proporcional à dimensão da sua relação com Deus. Na sua ação, testemunham o encontro como transcendente, servem a Pátria e protegem e defendem o povo português. Destas raízes profundas e sólidas da sua fé, do seu espírito de serviço, da sua competência, brota, hoje como ontem e sempre, a força e a capacidade de chegar longe e arribar largo. Isso mesmo temos testemunhado nos últimos anos onde a capacidade criativa da Marinha para servir Portugal e os portugueses nos redutos mais diversos é manifesto.
6. Envolvida na Defesa da Nação, do seu espaço marítimo e na afirmação indelével da sua soberania, a Marinha tem assumido uma dimensão global também no apoio aos refugiados ou no combate aos incêndios florestais. Num autêntico espírito de unidade que a todos abrange, a Marinha sabe construir caminhos e fecundar novas vias, que se tornaram bem visíveis no combate à pandemia. Ao mesmo tempo que promove um transversal espírito de unidade, contribuindo decisivamente para o surgimento, na sociedade, da capacidade de enfrentar a pandemia, também tem demonstrado, através dos seus membros, rigor, equilíbrio, resiliência, capacidade de programação e avaliação da situação. Estas têm sido qualidades necessárias à boa prossecução das ações no Mar, transferidas, com sucesso, para o contexto do combate à pandemia. Estamos gratos por tão excelentes contributos.
7. Por fim, este dramático tempo de pandemia obriga os homens do mar a pôr uma questão: que contributo pode oferecer o Mar a este tempo? Quais as propostas e inspirações que dele podem advir para a sociedade? Na épica obra de Camões, Os Lusíadas, os grandes heróis aí apresentados têm todos eles uma familiaridade, direta ou indireta, com o Mar, o que, de per si, já é elucidativo na medida em que sublinha que uma das principais obras feitas pelo Mar é a formação de heróis. E é de heróis que a sociedade portuguesa necessita, mulheres e homens que construam história, recriem o mundo e, à maneira de Abraão que «com uma esperança, para além do que se podia esperar, acreditou» Rm 4, 18 cultivem e irradiem esperança. Afinal, o heroísmo dos nossos navegadores não residiu na sua ousadia de ir para além, para além do mundo conhecido de então, do mundo há muito cristalizado, para além de qualquer certeza, alimentados, porém, de muita esperança?
Para existir esta capacidade de nostranscendermos é necessária a capacidade e abertura para o Transcendente, a Deus Senhor Nosso. Ámen!
São Jorge e Nossa Senhora do Mar, protejam e guiem a Marinha.
+Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de segurança