Caros irmãos

1. Quando, no ano dois mil, fui às Jornadas Mundiais da Juventude a Roma, acompanhando, numa viagem de autocarro, um grupo de 50 jovens, apercebi-me de que, no início do percurso, quando os jovens estavam frescos e entusiasmados, também havia alegria, boa disposição e tudo suscitava riso.

Mas, à medida que o tempo transcorria e o cansaço se ia apoderando do grupo, começavam a surgir irritações, intolerâncias e momentos de tristeza. Nos dias seguintes, pude confirmar isso mesmo: que existe uma relação entre frescura, entusiasmo e alegria, assim como há uma ligação entre cansaço, saturação e irritação, intolerância e tristeza.

A primeira leitura de hoje (Actos 8, 5-8.14-17) dá conta de uma cidade da Samaria “onde houve muita alegria” (Act 8, 8) e, portanto, havia frescura e entusiasmo. E, de facto, assim sucedeu por mérito da pregação do apóstolo Filipe e dos milagres que este ali realizou. O que nos remete para uma verdade fundamental da vida: a alegria verdadeira, a alegria do coração, só nos pode ser dada pela graça que o anuncio da Palavra de Deus transmite. «Vinde a mim, vós que andais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei»( Mt 11, 28): foi este alívio que Filipe ofereceu aos samaritanos através da proclamação do Evangelho. Em consequência, o Espírito suscitou neles entusiasmo e força, de forma a recuperarem o sentido e o gosto da alegria.

Esta mensagem é particularmente atual para nós hoje, porque, depois de dois meses de confinamento e restrições, reconhecemos que, inegavelmente, um certo cansaço já se apoderou de nós, o que explica alguma tristeza vincada no rosto da humanidade e algum desalento a contaminar a alma de muitos dos nossos irmãos e, quiçá, de nós próprios. Todos nós temos necessidade de nos abeiremo-nos dessas águas refrescantes que brotam do encontro com a Palavra viva que é Jesus Cristo, a fonte maravilhosa da alegria. Bebamos e alimentemo-nos dessa Palavra a qual, como dizia Tertuliano, está ensopada do Espírito Santo. Por isso só ela suscita o entusiasmo da alegria e nos a garantia de que também hoje o Senhor opera milagres como em Samaria.

Como há dois mil anos Jesus Cristo operou maravilhas, libertou o ser humano da nefasta presença de espíritos impuros e curou muitos portadores de deficiência física, também hoje o Senhor nos liberta da tenebrosa presença do vírus no seio da humanidade. Só Ele resgata a dignidade do ser humano aos confinamentos do medo, do pânico e da angústia.

Convido-vos, pois, colocarem-se à escuta da Palavra e a recomeçar a prática dos chamados «sacramentos da cura». São bálsamos que nos restituem frescura e entusiasmo.

2. A segunda pérola oferecida pela Palavra de Deus remete-nos para o que de mais maravilhoso existe na vida humano: o amor. No evangelho que escutámos (Jo 14, 15-21), o amor é apresentado como capacidade, como dom e como recíproca presença no coração do outro.

a) O amor é a capacidade de guardar os mandamentos de Jesus: Se me amardes, guardareis os meus mandamentos” (cf Jo 15,15). Os mandamentos de Jesus são os seus critérios de vida, a sabedoria espiritual com a qual somos chamados a orientar a nossa ação no mundo. Não se trata de mera imitação exterior do que Ele fez, mas da assunção da sua visão do mundo e dos valores que lhe dão forma através dos quais somos chamados a escolher, na complexidade da vida, o que é bem e a rejeitar o que é mal, orientando, assim, as nossas decisões para a construção da vida plena, tanto para nós como para os outros.

b) O amor é também um dom: “e eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Paráclito (Jo 15, 16). É são Paulo que contempla a maravilhosa aliança que existe entre o Espírito Santo e o dom do amor quando escreve que o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” (Rm 5, 5). Este Espírito que derrama o amor de Deus em nossos corações habilita-nos a amar com amor de Deus, que foi a razão de ser e de agir do próprio Jesus. Esse amor torna-se doação e entrega: doação de vida em prol dos outros e em benefício do bem comum e entrega de todo o nosso ser ao Senhor e aos irmãos, sobretudo aos mais frágeis, com os quais Jesus se identifica (cf. Mt 25, 35ss). Este é o estilo próprio do amor. Tudo o que não se revelar como disponibilidade para a doação da vida e para a entrega do próprio ser na ação concreta em prol dos outros não é, decerto, amor. Por isso, nesta hora, aqui queremos deixar um sincero e sentido agradecimento a quem, nestas vicissitudes da pandemia, não hesitou em assumir os critérios do amor no serviço ao bem dos portugueses, à sua saúde, à defesa e segurança das suas vidas. Por isso, aqui exprimo a mais profunda gratidão às nossas Forças Armadas e Forças de Segurança.

c) O amor é a recíproca presença no coração do outro. Amar não é apenas um estar com o outro,ao lado dele, nem tãosó ser um para o outro.Jesus levou mais longe o sentido do Amor vivendo-o como recíproca presença no coração do outro: «Eu no Pai, e o Pai em Mim. Eu em vós, vós em mim. Nós no Pai e o Pai em nós.» Ou seja,somos constituídos moradas onde os outros podem habitar, na qual descansam, podem ser felizes e desenvolver a sua personalidade até ao limite das próprias capacidades. Emmanuel Levinas dizia que “o amor é um êxodo sem regresso do eu para o tu. E quando o eu se quiser encontrar, terá de se procurar no tu da pessoa amada.” A forma sublime de viver em comunidade e num espírito de solidariedade com os demais é senti-los em nós. Sentir como nossos os seus dramas e sofrimentos, as suas esperanças e alegrias. Significativamente, um dos principais documentos do Concílio Vaticano II, a Gaudiumet Spes, inicia precisamente com as proféticas e atuais palavras: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.» (GS 1)

O que hoje é vivido por todos e cada um dos nossos irmãos terá de ser participado e sentido como vivência nossa, como se a nós dissesse respeito. E di-lo realmente, porque, enquanto discípulos de Cristo, nada do que habita o coração dos outros nos pode ser alheio. Por isso, nesta hora em que tantos já perderam o emprego, os rendimentos necessários para responder às obrigações da vida, o sustento e até a serenidade e a confiança; nesta hora em que muitos vivem dolorosas privações, como o impedimento do contacto com familiares ou a dificuldade em obter os bens alimentar mais básicos, quero dizer-vos, em nome de Cristo e da Igreja, que não estais sós,nós partilhamos o sofrimento e sentimos como nossa a dor das vossas perdas. E essa partilha há de transformar-se em socorro e resposta concreta às vossas necessidades materiais e espirituais.

3. Estamos a viver a Semana do Laudato si, um tempo que nos deve ocupar tanto na reflexão, como na ação orientada para a salvaguarda e proteção do mundo criado. Na segunda leitura (1Pedro 3, 15-18), São Pedro interpelava-nos a estarmos “sempre prontos a responder a quem quer que seja sobre as razões da nossa esperança.” (1Pd 3,15) Proteger e salvaguardar a natureza insere-se indubitavelmente no maravilhoso caminho da esperança. Na verdade, só onde existe esperança há também determinação para agir. E nós, com o Papa Francisco, estamos empenhados na defesa do mundo criado, uma vez que a esperança habita em nós. É ela que nos permite sonhar com um mundo onde as crianças possam correr despreocupadamente ao ar livre,sem medo de contágio ou dos efeitos nefastos da poluição; onde possamos mergulhar novamente nos ribeiros e rios que atravessam as nossas terras sem termos de nos preocupar com o lixo que os contamina.

Algumas vozes de cientistas vieram estabelecer uma relação estreita entre degradação do meio ambiente e crise sanitária provocada pela covid-19. Prognosticam também, caso nada façamos para inverter a situação calamitosa do planeta, uma maior frequência de surtos epidémicos que poderão custar muitas vidas e não poucos recursos materiais. Afinal, ao contrário do que julga quem se projeta apenas no imediato, parece ser bem mais barato investir no ambiente do que explorá-lo até à exaustão, dadas as consequências a médio e longo prazo que daí advirão. Como escrevia um jornal diário esta semana «Proteger e investir na natureza é a “melhor e mais barata vacina” que poderemos ter contra futuras pandemias.» Público 15/05.

Que o Senhor nos acompanhe. Ámen!

+Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança