1. Deus procura sempre aqueles que ama. «Onde estás?», pergunta Ele. E, muitas vezes, a resposta que recebe é a de (um) Adão amedrontado e confinado ao seu esconderijo de medo e de vergonha.

Esse retrato do Senhor que vai em busca de cada um é a mais bela expressão que a Revelação nos dá do amor misericordioso do Pai.

Em Jesus Cristo, Deus não só falou à humanidade, mas veio à sua procura como o pastor que não descansa enquanto não recupera a ovelha tresmalhada (cf. Lc 15, 1-7). É uma busca que nasce no íntimo do coração de Deus e tem como ponto culminante a sua vinda ao mundo na nossa mesma carne. Ele procura o homem, porque o ama eternamente. E é esse o motivo por que o eleva à dignidade de filho adotivo. Fiel à sua intenção primordial de nos criar à sua imagem e semelhança, Ele jamais desiste de nós.

Esta certeza deve transformar-se em missão, e todos nós somos chamados a assumir a nossa condição de missionários, sentindo-a como própria, através de uma existência animada pela fé, marcada pela caridade, pelo serviço a Deus e aos outros e capaz de irradiar esperança. Esta missão resplandece sobretudo na santidade para a qual todos somos chamados.

2. Também em Nossa Senhora reencontramos esta atitude. Ela foi à procura de Jesus quando Ele, aos doze anos, ficou no templo, fê-lo de novo quando disseram que estava fora de si, como ouvíamos no evangelho de hoje, e foi ainda à procura de Jesus nas horas amargas da sua paixão, em Jerusalém. E também na sua aparição aos pastorinhos, aqui na Cova da Iria, veio à procura da humanidade dilacerada pelo medo da guerra e pelo temor do pecado, para encontrar quem estivesse disponível para se deixar incendiar pela luz do Amor de modo a renovar o mundo com o ardor da fé, com a força da conversão e com a esperança da santidade. Por issoFátima é o lugar onde cada um pode viver e realizar a experiência espiritual de ser procurado pelo Senhor, de o sentir chegar até mesmo aos esconderijos mais inacessíveis dos seus medos e das suas desilusões.
3. De facto, Deus não quer que ninguém fique prisioneiro de nenhuma fatalidade, nem de nenhuma insuperável inevitabilidade. A cada um é concedido a graça de ser projeto e abertura”, como maravilhosamente o declarou Jesus na Sinagoga de Nazaré ao proclamar que foi enviado para levar a libertação aos cativos. E a génese dessa fascinante identidade está na misericórdia do Pai. É quanto nos diz a primeira leitura que escutámos: situando-se no contexto da queda original, quando Adão e Eva, por desobediência, transgrediram as expressas ordens do Criador e desencadearam, por isso, uma série de consequências negativas. Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, com o primeiro pecado o homem «optou por si próprio contra Deus, contra as exigências da sua condição de criatura e, daí, contra o seu próprio bem» (n. 398). Alterada a relação fundamental, comprometem-se ou destroem-se também os outros polos da relação. pecado arruína, portanto, a nossa identidade de seres relacionais. Ora, tendo sido, desde o início, perturbada a estrutura relacional da humanidade, cada ser humano ingressa num mundo assinalado por este caos relacional, num mundo contrafeito pelo pecado, o qual passa a constituir uma marca inscrita na própria existência pessoal. E, contudo, a conclusão não foi a morte, nem a destruição do ser humano, mas a promessa de salvação e vida: “Estabelecerei – disse o Senhor à serpente inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta há de atingir-te na cabeça e tu a atingirás no calcanhar.” Aqui materializa-se a possibilidade de o ser humano ser redimido da tragédia que ele próprio tecera. A Redenção significa esta nova possibilidade de vida e de comunhão que lhe vem oferecida. Nenhum de nós está eternamente destinado a ser vítima dos atos que praticou, das ões que realizou ou das decisões que negligentemente tomou. O Deus de Jesus Cristo, no seu amor eterno, na sua misericórdia absoluta, não fixa o seu olhar na penúria espiritual que somos, mas naquilo que somos chamados a ser por vontade d’Ele mesmo. Na morte de Cristo revelou-se este Deus que desce até à maior precariedade humana, que se solidariza connosco, para nos erguer da morte realizando a nossa vocação fundamental para a vida e a liberdade. “Por isso não desanimamos – exclama S. Paulo. Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia.” Nenhuma pessoa pode ser concebida como alguém que vive perpetuamente encarcerado numa fatalidade sem remédio.

Somos feitos para a liberdade porque somos obra criada e redimida de Deus. Nunca cessamos de ser projetos de santidade e de vida.

Isso mesmo encontramos também na segunda leitura: tal como o pecado, também a morte condiciona o horizonte da vida humana, bloqueia-o e fecha-o. Mas, mesmo essa foi vencida, Cristo destronou-a do seu poder arrebatador, pela vitória da Cruz e Ressurreição.

E, finalmente, o evangelho vem juntar ao pecado e à morte um terceiro elementoBelzebu, a personificação do mal, pode apoderar-se do ser humano para o controlardominar e até subjugar. Mas, também esse foi vencido por Jesus que o expulsa das pessoas, restituindo-as à vida e à esperança.

4. A palavra de Deus, portanto, de forma pedagógica e apropriada, coloca-nos perante a urgência da conversão, essa abertura à graça de Deus e à sua ação em nós.

Em Cristo, o pecado e a sua lógica destrutiva foram esmagados. Na Cruz e Ressurreição, Ele aniquilou o poder da morte. Na Sua ação libertadora, expulsou o Maligno e destronou-o do poder de devastar a vida e manietar o ser humano. Mas reparamos também que existe algo no ser humano que o Senhor não ousa tocar ou alterar: sua aptidão e capacidade de tomar decisões livres e agir em conformidade. Deus não nos coage, nem obriga. Respeita a nossa liberdade, ainda que a usemos para a nossa própria ruína. Ele interpela-nos, mas não nos derruba; propõe, mas nunca impõe. Por isso, quando Jesus refere que “tudo será perdoado aos filhos dos homens, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão» está a referir-se à possibilidade de se diabolizar as obras e ações de Deus e de santificar as ações e obras do mal. Ou seja, alude à perniciosa e trágica inversão de valores e à adulteração da realidade. Foi o que fez a serpente quando, junto de Adão e Eva, diabolizou o preceito divino de não comer daquela árvoreapresentando-o como mau, como se tal preceito ferisse o direito à felicidade do ser humano. E foi o que fizeram também os saduceus ao diabolizar a ação de Jesus quando diziam «É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios.» A possibilidade da adulteração da obra de Deusrevela-se quando definimos as realidades santas e que promovem a dignidade das pessoas, como sendo más e, por isso, deixamos de as praticar; ou elogiamos as más e nocivas, considerando-as como boas e necessárias, e são estas que promovemos e executamos. Esta inversão não é mais do que uma das manifestações da crise de fé, mas também da crise de valores.

Por isso, com Maria, Senhora de Fátima, confiemo-nos ao Sagrado Coração de Jesus para nos manter sempre no caminho da verdade e do verdadeiro bem, porque só a verdade nos torna efetivamente livres, e é onde encontramos a eterna novidade da vida em Deus.

Novidade que norteia a nossa existência redimidae para a qual estamos abertos, e que vem retratada nos modos e jeitos de Jesus conduzir a sua vida pública. Ele, porque não fazia como todos os outros e se aproximava dos leprosos e lhes tocava; porque, em dias de sábado, fazia curas; porque não jejuava; porque contactava e falava com estrangeiros, porque se declarava pelos pobres e desfavorecidos… veio a ser declarado como «estando fora de si».

Nesse ser diferente de Jesus, Ele quer-nos introduzir, também a nós, numa forma diferente de viver que não assenta nos preceitos do mundo, nem em forças da natureza, mas nos enxerta na força da graça e nos critérios do evangelho. E por isso, quando vivemos segundo a vontade de Deus tornamo-nos família de Jesus, a Ele conformes, e aptos a plasmar o mundo segundo o plano da salvação e os desígnios do amor. Ámen!

+Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança