Apresenta-se, de seguida, a importante mensagem do Papa Francisco para esta celebração do dia 1 de Janeiro.
MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XLIX DIA MUNDIAL DA PAZ
1º DE JANEIRO DE 2016
VENCE A INDIFERENÇA E CONQUISTA A PAZ
- Deus não é indiferente; importa-Lhe a humanidade! Deus não a abandona! Com esta minha profunda convicção, quero, no início do novo ano, formular votos de paz e bênçãos abundantes, sob o signo da esperança, para o futuro de cada homem e mulher, de cada família, povo e nação do mundo, e também dos chefes de Estado e de governo e dos responsáveis das religiões. Com efeito, não perdemos a esperança de que o ano de 2016 nos veja a todos firme e confiadamente empenhados, nos diferentes níveis, a realizar a justiça e a trabalhar pela paz. Na verdade, esta é dom de Deus e trabalho dos homens; a paz é dom de Deus, mas confiado a todos os homens e a todas as mulheres, que são chamados a realizá-lo.
Conservar as razões da esperança
- Embora o ano passado tenha sido caracterizado, do princípio ao fim, por guerras e actos terroristas, com as suas trágicas consequências de sequestros de pessoas, perseguições por motivos étnicos ou religiosos, prevaricações, multiplicando-se cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma «terceira guerra mundial por pedaços», todavia alguns acontecimentos dos últimos anos e também do ano passado incitam-me, com o novo ano em vista, a renovar a exortação a não perder a esperança na capacidade que o homem tem, com a graça de Deus, de superar o mal, não se rendendo à resignação nem à indiferença. Tais acontecimentos representam a capacidade de a humanidade agir solidariamente, perante as situações críticas, superando os interesses individualistas, a apatia e a indiferença.
Dentre tais acontecimentos, quero recordar o esforço feito para favorecer o encontro dos líderes mundiais, no âmbito da Cop21, a fim de se procurar novos caminhos para enfrentar as alterações climáticas e salvaguardar o bem-estar da terra, a nossa casa comum. E isto remete para mais dois acontecimentos anteriores de nível mundial: a Cimeira de Adis-Abeba para arrecadação de fundos destinados ao desenvolvimento sustentável do mundo; e a adopção, por parte das Nações Unidas, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que visa assegurar, até ao referido ano, uma existência mais digna para todos, sobretudo para as populações pobres da terra.
O ano de 2015 foi um ano especial para a Igreja, nomeadamente porque registou o cinquentenário da publicação de dois documentos do Concílio Vaticano II que exprimem, de forma muito eloquente, o sentido de solidariedade da Igreja com o mundo. O Papa João XXIII, no início do Concílio, quis escancarar as janelas da Igreja, para que houvesse, entre ela e o mundo, uma comunicação mais aberta. Os dois documentos – Nostra aetate e Gaudium et spes – são expressões emblemáticas da nova relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia introduzir no interior da humanidade. Na Declaração Nostra aetate, a Igreja foi chamada a abrir-se ao diálogo com as expressões religiosas não-cristãs. Na Constituição pastoral Gaudium et spes – dado que «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo» –, a Igreja desejava estabelecer um diálogo com a família humana sobre os problemas do mundo, como sinal de solidariedade, respeito e amor.
Nesta mesma perspectiva, com o Jubileu da Misericórdia, quero convidar a Igreja a rezar e trabalhar para que cada cristão possa maturar um coração humilde e compassivo, capaz de anunciar e testemunhar a misericórdia, de «perdoar e dar», de abrir-se «àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática», sem cair «na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói».
Variadas são as razões para crer na capacidade que a humanidade tem de agir, conjunta e solidariamente, reconhecendo a própria interligação e interdependência e tendo a peito os membros mais frágeis e a salvaguarda do bem comum. Esta atitude de solidária corresponsabilidade está na raiz da vocação fundamental à fraternidade e à vida comum. A dignidade e as relações interpessoais constituem-nos como seres humanos, queridos por Deus à sua imagem e semelhança. Como criaturas dotadas de inalienável dignidade, existimos relacionando-nos com os nossos irmãos e irmãs, pelos quais somos responsáveis e com os quais agimos solidariamente. Fora desta relação, passaríamos a ser menos humanos. É por isso mesmo que a indiferença constitui uma ameaça para a família humana. No limiar dum novo ano, quero convidar a todos para que reconheçam este facto a fim de se vencer a indiferença e conquistar a paz.
Algumas formas de indiferença
- Não há dúvida de que o comportamento do indivíduo indiferente, de quem fecha o coração desinteressando-se dos outros, de quem fecha os olhos para não ver o que sucede ao seu redor ou se esquiva para não ser abalroado pelos problemas alheios, caracteriza uma tipologia humana bastante difundida e presente em cada época da história; mas, hoje em dia, superou decididamente o âmbito individual para assumir uma dimensão global, gerando o fenómeno da «globalização da indiferença».
A primeira forma de indiferença na sociedade humana é a indiferença para com Deus, da qual deriva também a indiferença para com o próximo e a criação. Trata-se de um dos graves efeitos dum falso humanismo e do materialismo prático, combinados com um pensamento relativista e niilista. O homem pensa que é o autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade; sente-se auto-suficiente e visa não só ocupar o lugar de Deus, mas prescindir completamente d’Ele; consequentemente, pensa que não deve nada a ninguém, excepto a si mesmo, e pretende ter apenas direitos. Contra esta errónea compreensão que a pessoa tem de si mesma, Bento XVI recordava que nem o homem nem o seu desenvolvimento são capazes, por si mesmos, de se atribuir o próprio significado último; e, antes dele, Paulo VI afirmara que «não há verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana».
A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem esteja bem informado, ouça o rádio, leia os jornais ou veja programas de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade, mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão. Este é o comportamento de quem sabe, mas mantém o olhar, o pensamento e a acção voltados para si mesmo. Infelizmente, temos de constatar que o aumento das informações, próprio do nosso tempo, não significa, de por si, aumento de atenção aos problemas, se não for acompanhado por uma abertura das consciências em sentido solidário. Antes, pode gerar uma certa saturação que anestesia e, em certa medida, relativiza a gravidade dos problemas. «Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes».
Noutros casos, a indiferença manifesta-se como falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante. Algumas pessoas preferem não indagar, não se informar e vivem o seu bem-estar e o seu conforto, surdas ao grito de angústia da humanidade sofredora. Quase sem nos dar conta, tornámo-nos incapazes de sentir compaixão pelos outros, pelos seus dramas; não nos interessa ocupar-nos deles, como se aquilo que lhes sucede fosse responsabilidade alheia, que não nos compete. «Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (isto, Deus Pai nunca o faz!), não nos interessam os seus problemas, nem as tribulações e injustiças que sofrem; e, assim, o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem».
Vivendo nós numa casa comum, não podemos deixar de nos interrogar sobre o seu estado de saúde, como procurei fazer na Carta encíclica Laudato si’. A poluição das águas e do ar, a exploração indiscriminada das florestas, a destruição do meio ambiente são, muitas vezes, resultado da indiferença do homem pelos outros, porque tudo está relacionado. E de igual modo o comportamento do homem com os animais influi sobre as suas relações com os outros, para não falar de quem se permite fazer noutros lugares aquilo que não ousa fazer em sua casa.
Nestes e noutros casos, a indiferença provoca sobretudo fechamento e desinteresse, acabando assim por contribuir para a falta de paz com Deus, com o próximo e com a criação.
A paz ameaçada pela indiferença globalizada
- A indiferença para com Deus supera a esfera íntima e espiritual da pessoa individual e investe a esfera pública e social. Como afirmava Bento XVI, «há uma ligação íntima entre a glorificação de Deus e a paz dos homens na terra».Com efeito, «sem uma abertura ao transcendente, o homem cai como presa fácil do relativismo e, consequentemente, torna-se-lhe difícil agir de acordo com a justiça e comprometer-se pela paz». O esquecimento e a negação de Deus, que induzem o homem a não reconhecer qualquer norma acima de si próprio e a tomar como norma apenas a si mesmo, produziram crueldade e violência sem medida.
A nível individual e comunitário, a indiferença para com o próximo – filha da indiferença para com Deus – assume as feições da inércia e da apatia, que alimentam a persistência de situações de injustiça e grave desequilíbrio social, as quais podem, por sua vez, levar a conflitos ou de qualquer modo gerar um clima de descontentamento que ameaça desembocar, mais cedo ou mais tarde, em violências e insegurança.
Neste sentido, a indiferença e consequente desinteresse constituem uma grave falta ao dever que cada pessoa tem de contribuir – na medida das suas capacidades e da função que desempenha na sociedade – para o bem comum, especialmente para a paz, que é um dos bens mais preciosos da humanidade.
Depois, quando investe o nível institucional, a indiferença pelo outro, pela sua dignidade, pelos seus direitos fundamentais e pela sua liberdade, de braço dado com uma cultura orientada para o lucro e o hedonismo, favorece e às vezes justifica acções e políticas que acabam por constituir ameaças à paz. Este comportamento de indiferença pode chegar inclusivamente a justificar algumas políticas económicas deploráveis, precursoras de injustiças, divisões e violências, que visam a consecução do bem-estar próprio ou o da nação. Com efeito, não é raro que os projectos económicos e políticos dos homens tenham por finalidade a conquista ou a manutenção do poder e das riquezas, mesmo à custa de espezinhar os direitos e as exigências fundamentais dos outros. Quando as populações vêem negados os seus direitos elementares, como o alimento, a água, os cuidados de saúde ou o trabalho, sentem-se tentadas a obtê-los pela força.
Por fim, a indiferença pelo ambiente natural, favorecendo o desflorestamento, a poluição e as catástrofes naturais que desenraízam comunidades inteiras do seu ambiente de vida, constrangendo-as à precariedade e à insegurança, cria novas pobrezas, novas situações de injustiça com consequências muitas vezes desastrosas em termos de segurança e paz social. Quantas guerras foram movidas e quantas ainda serão travadas por causa da falta de recursos ou para responder à demanda insaciável de recursos naturais?
Da indiferença à misericórdia: a conversão do coração
- Quando, há um ano – naMensagem para o Dia Mundial da Pazintitulada «já não escravos, mas irmãos» –, evoquei o primeiro ícone bíblico da fraternidade humana, o ícone de Caim e Abel (cf. Gn 4, 1-16), fi-lo para evidenciar o modo como foi traída esta primeira fraternidade. Caim e Abel são irmãos. Provêm ambos do mesmo ventre, são iguais em dignidade e criados à imagem e semelhança de Deus; mas a sua fraternidade de criaturas quebra-se. «Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja». E assim o fratricídio torna-se a forma de traição, sendo a rejeição, por parte de Caim, da fraternidade de Abel a primeira ruptura nas relações familiares de fraternidade, solidariedade e respeito mútuo.
Então Deus intervém para chamar o homem à responsabilidade para com o seu semelhante, precisamente como fizera quando Adão e Eva, os primeiros pais, quebraram a comunhão com o Criador. «O Senhor disse a Caim: “Onde está o teu irmão Abel?” Caim respondeu: “Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?” O Senhor replicou: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim”» (Gn 4, 9-10).
Caim diz que não sabe o que aconteceu ao seu irmão, diz que não é o seu guardião. Não se sente responsável pela sua vida, pelo seu destino. Não se sente envolvido. É-lhe indiferente o seu irmão, apesar de ambos estarem ligados pela origem comum. Que tristeza! Que drama fraterno, familiar, humano! Esta é a primeira manifestação da indiferença entre irmãos. Deus, ao contrário, não é indiferente: o sangue de Abel tem grande valor aos seus olhos e pede contas dele a Caim. Assim, Deus revela-Se, desde o início da humanidade, como Aquele que se interessa pelo destino do homem. Quando, mais tarde, os filhos de Israel se encontram na escravidão do Egipto, Deus intervém de novo. Diz a Moisés: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3, 7-8). É importante notar os verbos que descrevem a intervenção de Deus: Ele observa, ouve, conhece, desce, liberta. Deus não é indiferente. Está atento e age.
De igual modo, no seu Filho Jesus, Deus desceu ao meio dos homens, encarnou e mostrou-Se solidário com a humanidade em tudo, excepto no pecado. Jesus identificava-Se com a humanidade: «o primogénito de muitos irmãos» (Rm 8, 29). Não se contentava em ensinar às multidões, mas preocupava-Se com elas, especialmente quando as via famintas (cf. Mc 6, 34-44) ou sem trabalho (cf. Mt 20, 3). O seu olhar não Se fixava apenas nos seres humanos, mas também nos peixes do mar, nas aves do céu, na erva e nas árvores, pequenas e grandes; abraçava a criação inteira. Ele vê sem dúvida, mas não Se limita a isso, pois toca as pessoas, fala com elas, age em seu favor e faz bem a quem precisa. Mais ainda, deixa-Se comover e chora (cf. Jo 11, 33-44). E age para acabar com o sofrimento, a tristeza, a miséria e a morte.
Jesus ensina-nos a ser misericordiosos como o Pai (cf. Lc 6, 36). Na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 29-37), denuncia a omissão de ajuda numa necessidade urgente dos seus semelhantes: «ao vê-lo, passou adiante» (Lc 10, 32). Ao mesmo tempo, com este exemplo, convida os seus ouvintes, e particularmente os seus discípulos, a aprenderem a parar junto dos sofrimentos deste mundo para os aliviar, junto das feridas dos outros para as tratar com os recursos de que disponham, a começar pelo próprio tempo apesar das muitas ocupações. Na realidade, muitas vezes a indiferença procura pretextos: na observância dos preceitos rituais, na quantidade de coisas que é preciso fazer, nos antagonismos que nos mantêm longe uns dos outros, nos preconceitos de todo o género que impedem de nos fazermos próximo.
A misericórdia é o coração de Deus. Por isso deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos; um coração que bate forte onde quer que esteja em jogo a dignidade humana, reflexo do rosto de Deus nas suas criaturas. Jesus adverte-nos: o amor aos outros – estrangeiros, doentes, encarcerados, pessoas sem-abrigo, até inimigos – é a unidade de medida de Deus para julgar as nossas acções. Disso depende o nosso destino eterno. Não é de admirar que o apóstolo Paulo convide os cristãos de Roma a alegrar-se com os que se alegram e a chorar com os que choram (cf. Rm 12, 15), ou recomende aos de Corinto que organizem colectas em sinal de solidariedade com os membros sofredores da Igreja (cf. 1 Cor 16, 2-3). E São João escreve: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17; cf. Tg 2, 15-16).
É por isso que «é determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia. A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia».
Deste modo, também nós somos chamados a fazer do amor, da compaixão, da misericórdia e da solidariedade um verdadeiro programa de vida, um estilo de comportamento nas relações de uns com os outros. Isto requer a conversão do coração, isto é, que a graça de Deus transforme o nosso coração de pedra num coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de se abrir aos outros com autêntica solidariedade. Com efeito, esta é muito mais do que um «sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes». A solidariedade «é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos», porque a compaixão brota da fraternidade.
Assim entendida, a solidariedade constitui a atitude moral e social que melhor dá resposta à tomada de consciência das chagas do nosso tempo e da inegável interdependência que se verifica cada vez mais, especialmente num mundo globalizado, entre a vida do indivíduo e da sua comunidade num determinado lugar e a de outros homens e mulheres no resto do mundo.
Fomentar uma cultura de solidariedade e misericórdia para se vencer a indiferença
- A solidariedade como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, requer empenho por parte duma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de carácter educativo e formativo.
Penso em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos.
Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. Dirigindo-se aos responsáveis das instituições que têm funções educativas, Bento XVI afirmava: «Possa cada ambiente educativo ser lugar de abertura ao transcendente e aos outros; lugar de diálogo, coesão e escuta, onde o jovem se sinta valorizado nas suas capacidades e riquezas interiores e aprenda a apreciar os irmãos. Possa ensinar a saborear a alegria que deriva de viver dia após dia a caridade e a compaixão para com o próximo e de participar activamente na construção duma sociedade mais humana e fraterna».
Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade actual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação. Antes de mais nada, é dever deles colocar-se ao serviço da verdade e não de interesses particulares. Com efeito, os meios de comunicação «não só informam, mas também formam o espírito dos seus destinatários e, consequentemente, podem concorrer notavelmente para a educação dos jovens. É importante ter presente a ligação estreitíssima que existe entre educação e comunicação: de facto, a educação realiza-se por meio da comunicação, que influi positiva ou negativamente na formação da pessoa». Os agentes culturais e dos meios de comunicação social deveriam também vigiar por que seja sempre lícito, jurídica e moralmente, o modo como se obtêm e divulgam as informações.
A paz, fruto duma cultura de solidariedade, misericórdia e compaixão
- Conscientes da ameaça duma globalização da indiferença, não podemos deixar de reconhecer que, no cenário acima descrito, inserem-se também numerosas iniciativas e acções positivas que testemunham a compaixão, a misericórdia e a solidariedade de que o homem é capaz.
Quero recordar alguns exemplos de louvável empenho, que demonstram como cada um pode vencer a indiferença, quando opta por não afastar o olhar do seu próximo, e constituem passos salutares no caminho rumo a uma sociedade mais humana.
Há muitas organizações não-governamentais e grupos sócio-caritativos, dentro da Igreja e fora dela, cujos membros, por ocasião de epidemias, calamidades ou conflitos armados, enfrentam fadigas e perigos para cuidar dos feridos e doentes e para sepultar os mortos. Ao lado deles, quero mencionar as pessoas e as associações que socorrem os emigrantes que atravessam desertos e sulcam mares à procura de melhores condições de vida. Estas acções são obras de misericórdia corporal e espiritual, sobre as quais seremos julgados no fim da nossa vida.
Penso também nos jornalistas e fotógrafos, que informam a opinião pública sobre as situações difíceis que interpelam as consciências, e naqueles que se comprometem na defesa dos direitos humanos, em particular os direitos das minorias étnicas e religiosas, dos povos indígenas, das mulheres e das crianças, e de quantos vivem em condições de maior vulnerabilidade. Entre eles, contam-se também muitos sacerdotes e missionários que, como bons pastores, permanecem junto dos seus fiéis e apoiam-nos sem olhar a perigos e adversidades, em particular durante os conflitos armados.
Além disso, quantas famílias, no meio de inúmeras dificuldades laborais e sociais, se esforçam concretamente, à custa de muitos sacrifícios, por educar os seus filhos «contracorrente» nos valores da solidariedade, da compaixão e da fraternidade! Quantas famílias abrem os seus corações e as suas casas a quem está necessitado, como os refugiados e os emigrantes! Quero agradecer de modo particular a todas as pessoas, famílias, paróquias, comunidades religiosas, mosteiros e santuários que responderam prontamente ao meu apelo a acolher uma família de refugiados.
Quero, enfim, mencionar os jovens que se unem para realizar projectos de solidariedade, e todos aqueles que abrem as suas mãos para ajudar o próximo necessitado nas suas cidades, no seu país ou noutras regiões do mundo. Quero agradecer e encorajar todos aqueles que estão empenhados em acções deste género, mesmo sem gozar de publicidade: a sua fome e sede de justiça serão saciadas, a sua misericórdia far-lhes-á encontrar misericórdia e, como obreiros da paz, serão chamados filhos de Deus (cf. Mt 5, 6-9).
A paz, sob o signo do Jubileu da Misericórdia
- No espírito do Jubileu da Misericórdia, cada um é chamado a reconhecer como se manifesta a indiferença na sua vida e a adoptar um compromisso concreto que contribua para melhorar a realidade onde vive, a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho.
Também os Estados são chamados a cumprir gestos concretos, actos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade, como os reclusos, os migrantes, os desempregados e os doentes.
Relativamente aos reclusos, urge em muitos casos adoptar medidas concretas para melhorar as suas condições de vida nos estabelecimentos prisionais, prestando especial atenção àqueles que estão privados da liberdade à espera de julgamento, tendo em mente a finalidade reabilitativa da sanção penal e avaliando a possibilidade de inserir nas legislações nacionais penas alternativas à detenção carcerária. Neste contexto, desejo renovar às autoridades estatais o apelo a abolir a pena de morte, onde ainda estiver em vigor, e a considerar a possibilidade duma amnistia.
Quanto aos migrantes, quero dirigir um convite a repensar as legislações sobre as migrações, de modo que sejam animadas pela vontade de dar hospitalidade, no respeito pelos recíprocos deveres e responsabilidades, e possam facilitar a integração dos migrantes. Nesta perspectiva, dever-se-ia prestar especial atenção às condições para conceder a residência aos migrantes, lembrando-se de que a clandestinidade traz consigo o risco de os arrastar para a criminalidade.
Desejo ainda, neste Ano Jubilar, formular um premente apelo aos líderes dos Estados para que realizem gestos concretos a favor dos nossos irmãos e irmãs que sofrem pela falta de trabalho, terra e tecto. Penso na criação de empregos dignos para contrastar a chaga social do desemprego, que lesa um grande número de famílias e de jovens e tem consequências gravíssimas no bom andamento da sociedade inteira. A falta de trabalho afecta, fortemente, o sentido de dignidade e de esperança, e só parcialmente é que pode ser compensada pelos subsídios, embora necessários, para os desempregados e suas famílias. Especial atenção deveria ser dedicada às mulheres – ainda discriminadas, infelizmente, no campo laboral – e a algumas categorias de trabalhadores, cujas condições são precárias ou perigosas e cujos salários não são adequados à importância da sua missão social.
Finalmente, quero convidar à realização de acções eficazes para melhorar as condições de vida dos doentes, garantindo a todos o acesso aos cuidados sanitários e aos medicamentos indispensáveis para a vida, incluindo a possibilidade de tratamentos domiciliários.
E, estendendo o olhar para além das próprias fronteiras, os líderes dos Estados são chamados também a renovar as suas relações com os outros povos, permitindo a todos uma efectiva participação e inclusão na vida da comunidade internacional, para que se realize a fraternidade também dentro da família das nações.
Nesta perspectiva, desejo dirigir um tríplice apelo: apelo a abster-se de arrastar os outros povos para conflitos ou guerras que destroem não só as suas riquezas materiais, culturais e sociais, mas também – e por longo tempo – a sua integridade moral e espiritual; apelo ao cancelamento ou gestão sustentável da dívida internacional dos Estados mais pobres; apelo à adopção de políticas de cooperação que, em vez de submeter à ditadura dalgumas ideologias, sejam respeitadoras dos valores das populações locais e, de maneira nenhuma, lesem o direito fundamental e inalienável dos nascituros à vida.
Confio estas reflexões, juntamente com os melhores votos para o novo ano, à intercessão de Maria Santíssima, Mãe solícita pelas necessidades da humanidade, para que nos obtenha de seu Filho Jesus, Príncipe da Paz, a satisfação das nossas súplicas e a bênção do nosso compromisso diário por um mundo fraterno e solidário.
Vaticano, no dia da Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria e da Abertura do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 8 de Dezembro de 2015.
FRANCISCUS