Platão, o filósofo grego, trata o tema do amor de uma forma curiosa. Recorre a uma fábula –um “mito”, diz ele- segundo a qual o amor é filho de Póros (o Engenho) e de Penía (a Pobreza ou Penúria). Então, a mãe do Amor chama-se Pobreza e o pai, Engenho.
Que é que este mito quer dizer? Que o amor se origina na pobreza ou carência humana. Que em todos nós há um vazio, uma insatisfação, que tentamos «engenhosamente» suprir com o amor. E que este se apresenta como uma porção mágica ou remédio que intenta três funções: preencher o tal vazio, transformar a pobreza em riqueza e conduzir a pessoa a um estado de felicidade.
Mas se esta noção de amor vale para os humanos, não se aplica a Deus. Deus, que é a própria plenitude, não tem necessidades de qualquer espécie. Não é um pobre carente, como nós, um insatisfeito, um mendigo da atenção. Pelo contrário, é Ele mesmo a superabundância da felicidade. Por isso, se nos criou, rigorosamente não é por precisar do nosso amor, por esperar que retribuamos o amor que nos dirige: Deus não nos criou para obter de nós qualquer coisa que Lhe falte.
Assim sendo, a criação do homem e do mundo que este habita só se compreende como produto de um amor que se difunde e que não espera nada em troca. Apenas que abramos o nosso coração a ele. É o amor ilimitado que vai de encontro às nossas carências para as eliminar, que completa o que falta ao nosso vazio interior e que transforma em sentido para a vida a dor da chaga originada no medo de que a nossa existência não se realize. E esse amor tem um nome: chama-se Misericórdia. Ou Salvação, que é o mesmo.
Então, na Páscoa, e muito mais na Páscoa do Ano Jubilar da Misericórdia, somos chamados a contemplar a enorme grandeza de um Amor –“Deus é amor”, garante-nos S. João (1Jo 4, 8)- que nos envolve como graça, ternura, plenitude, felicidade, sentido, misericórdia, salvação. É o «Amor puro», que colmata e branqueia o nosso amor impuro, isto é, a perene tendência à posse e domínio da outra parte: o instinto não de fazermos os outros felizes, mas a exigência de que os outros nos façam felizes a nós. E como nos enganamos tantas vezes neste beco sem saída!…
Precisamos de pensar mais neste estranho paradoxo entre o que habitualmente designamos por amor e a misericórdia. Vulgarmente, quando falamos em amor, exigimos que o outro seja perfeito, para o amar sem reservas. Quando as imperfeições aparecem, o amor diminui. E o amor do bem conduz ao ódio do mal. Com as consequências que se conhecem: tornamo-nos insensíveis, rígidos, inflexíveis, mal-humorados. E facilmente chegamos ao ódio.
Pelo contrário, a misericórdia aumenta quando o mal é maior. Quando a misericórdia vê um mal, sente-o como seu e compromete-se a libertar a pessoa. Ela destrói as barreiras, todas as barreiras. Leva a sacrificar-se para socorrer quem precisa, mesmo a sofrer para fazer a outra parte feliz.
Eis, pois, a Páscoa de Cristo: não se trata de um simples «amor», na significação que a nossa linguagem corrente dá a esta palavra, mas da mais completa e plena misericórdia. Não é o amor que aumenta ou diminui de acordo com a correspondência da outra parte, mas a Misericórdia que abraça a todos, mesmo que o não mereçam e até a rejeitem. Ela faz-nos ver a grandeza de Deus: o seu operar magnânimo é completamente diferente da nossa mesquinhez interesseira. E assim se compreende o mistério pascal: Jesus Cristo entregou a própria vida à morte para que nós, pecadores ou «criminosos», possamos ter a vida. E vida em plenitude, pois se trata da participação da própria vida divina.
Caros militares e polícias, no nosso próprio interesse, deixemos que a misericórdia do Redentor supra as nossas carências e infelicidades. Abramos o nosso coração ao Senhor da Misericórdia!
A todos, feliz Páscoa!
O vosso irmão e amigo,
† Manuel Linda