Irmãos e irmãs
1. Esta Quaresma sintoniza-nos já com a Sexta-feira da Paixão. Se Jesus foi condenado ao suplício da cruz, a pandemia está a condenar cada um de nós ao confinamento, à impossibilidade de contactar com familiares e amigos, de celebrar presencialmente e em comunidade a fé. Há quem tenha sido e esteja a ser vítima de sofrimentos atrozes e quem tenha sido condenado ao desemprego e à pobreza. O caráter avassalador da pandemia verifica-se ainda nos imensos casos de contágio e de doentes que surgem todos os dias, arrastando aqueles e aquelas que estão na linha da frente, sejam profissionais de saúde, sejam militares ou elementos das forças de segurança, para além de qualquer limite, condenando-os a um trabalho sem tréguas. Realmente, esta será uma extenuante Quaresma que antecipa a sempre dramática Sexta-feira Santa! Contudo, com firmeza e esperança, bradamos desde já que foi esta sexta-feira que tornou possível o domingo de Páscoa; houve ressurreição porque, antes, se passou pela cruz e pela morte!
Assim, nesta hora de tamanha gravidade, o nosso olhar, volta-se para Jesus Cristo, Aquele que sempre nos inspira e pode conduzir na travessia deste árido deserto, para descobrir, naqueles momentos mais amargos da Sua vida, as quatro principais atitudes que Ele assumiu. E serão essas que vos convido a cultivar e a tornar presentes na vida pessoal.
2. Em primeiro lugar, a serenidade. Desde que entrou no Jardim das Oliveiras e foi preso, condenado e, por fim, crucificado, Jesus nunca perdeu a serenidade (cf Mc 14, 32).
No meio de uma singular turbulência, como a que estamos a viver, tudo nos impele à agitação. E como se não bastassem as circunstâncias da própria pandemia, têm vindo a público, ultimamente, palavras como “desorganização”, “incompetência”, “astúcia”… que só aumentam ainda mais o sofrimento do povo, lhe rouba a paz e gera inquietação.
Sem falsas receitas, convido cada um a assentar as âncoras da existência em algo mais sólido e profundo do que essas brumas dos dias. Desde logo, a deixarmo-nos inundar pela brisa da esperança. E tantas razões existem para estarmos otimistas! Vejamos: há já vacinas que, tendo em conta os tradicionais prazos da ciência, são verdadeiros milagres de rapidez e prontidão. Ao mesmo tempo, encontramos nas pessoas que estão a combater a pandemia na linha da frente qualidades excecionais como a competência, um genuíno e firme sentido de missão, um insuperável espírito de sacrifício e dedicação absoluta a quem assistem e prestam auxílio.
Mas é, sobretudo, quando olhamos para esses inauditos avanços científicos e vemos a generosidade e o espírito de entrega dos profissionais e voluntários que ficamos certos de que eles são sacramentos da presença e da ação de Deus no meio de nós. É através desses factos bem como das pessoas envolvidas no combate à pandemia e dedicadas a auxiliar os que necessitam que o próprio Deus intervém e opera no mundo.
Podemos até dizer, em jeito de reconhecimento, que “a graça de Cristo já estava no conhecimento dos cuidados básicos sanitários, indispensáveis para prevenir o contágio”. E o espantoso é que, antes mesmo da pandemia chegar a Portugal, nós já detínhamos esse conhecimento.
Por isso, a nossa serenidade é semelhante à dos discípulos quando Jesus acalmou a tempestade (cf Mc 4, 35): Ele, cuja presença nos protege nas adversidades da vida, estava lá com eles tal como hoje está e caminha connosco.
3. Em segundo lugar, a confiança. Jesus viveu toda a vida numa profunda confiança para com o Pai, confiando também no ser humano. Mas foi sobretudo na sua paixão que Ele deu a essa atitude uma arrebatadora forma: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas sim a tua” (Mc 14, 36). Se, por um lado, enquanto ser humano, ele sente a premente necessidade de afastar o sofrimento, por outro, acima deste sentimento natural, está o firme propósito de levar a bom porto a vontade do Pai. Fazer sempre a Sua vontade: eis o alimento com que Cristo nutriu quotidianamente a sua existência. Já suspenso na cruz, Jesus dirá: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). A confiança era o sentido da sua vida, porque viver é confiar. Esta profunda confiança de Jesus no Pai e na humanidade não se revelou apenas através dos seus gestos ou somente em alguns momentos concretos. A totalidade da sua vida foi marcada pela confiança, no sentido de entrega e doação. Por isso, até a sua morte estava imersa na vida, porque imbuída de confiança.
Depreendemos então que viver, para além de desenrolar o novelo da vontade de Deus ao longo do tempo, consiste em entregar-se, oferecer-se a Alguém que se ama. Não é apenas dedicação a uma causa ou a um ideal, mas a uma Pessoa. E nela enxertar a vida, edificando sobre esse alicerce a própria existência.
A Quaresma convida-nos a redescobrir Deus que em Jesus Cristo se fez presença no meio da humanidade e a recentrar a nossa vida n’Ele. E partindo d’Ele, com Ele e n’Ele trilhar os caminhos da história, acompanhados pelo auxílio da Santíssima Virgem e por São José, neste ano a ele dedicado.
4. Em terceiro lugar, uma sábia inteligência. Jesus nunca perdeu o sentido da verdade. Bem pelo contrário, vemo-lo sempre Senhor da situação. Tanto frente ao sinédrio (cf Mc 14, 53-15,1), como perante Pilatos (cf Mc 15, 2-15), Jesus mantém uma atitude de profunda e penetrante inteligência. Revela a Sua elevada capacidade de compreender os sucessivos factos e discerni-los à luz de um plano superior (cf Mc 14, 62; Jo 18, 28-19,16). Mantém-se timoneiro dos acontecimentos. Por isso, mesmo que seja ultrajado, açoitado, flagelado, nunca é dominado, nem perde a dignidade. Diante de um julgamento iníquo e manipulado, não só não se defende, como não tenta “salvar a pele” (cf Mc 14, 61). Ele é a imagem da inteligência (cf Jo 19, 11). E é essa sabedoria que nos convém cultivar.
São Cipriano de Cartago, no Tratado Imortalitate. Sobre a epidemia, escrito por ocasião da epidemia que, nos anos 252 e 254, assolou e devastou o império, diz: “por ignorância da verdade, alguns comportam-se com pouca valentia e não mostram uma coragem divinamente forte e invencível.” Palavras proféticas que revelam bem como a ignorância é a causa da fraqueza moral e ética, da falta de caráter e ainda do entorpecimento do espírito.
Nem sempre os combates da vida são travados com sabedoria e inteligência. Verificamos também agora que a ignorância, por vezes, tem gerado pânico e mergulhado as pessoas numa atmosfera de medo. Ora, isso significa que a força da racionalidade se desvanece.
Vamos procurar agir e reagir com inteligência sapiencial. Isto é, com o gosto e o sentido da verdade, pois só “a verdade nos torna livres” (Jo 8, 32). Estruturemos, pois, a vida segundo os seus padrões.
5. Por fim, a solidariedade. A cruz e a morte que ela representa são os meios através dos quais se manifesta a salvação. A cruz representa a doação de Cristo até ao limite da própria existência, para nos resgatar do amargo egoísmo em que as nossas vidas tantas vezes se desenrolam. Porque viver para si mesmo não é dar sentido à existência. Só na dádiva de si por amor se pode encontrar um sentido definitivo pelo qual valha a pena aventurar-se no caminho da vida, até ao limite que a morte encerra. Solidariedade é doação de Si e partilha da nossa condição, incluindo o sofrimento e a morte, mas fundamentalmente é a única alternativa à condenação a que o egoísmo nos vota. A solidariedade, vivida como partilha e participação, será sempre a força que liberta da pobreza espiritual quem a ela vive amarrado; que resgata da solidão quem a ela está obrigado; que salva do egoísmo mesquinho no qual cada um julga salvar-se sozinho ou, pior ainda, atropelando a vida dos demais…
Acolhendo a sábia inspiração do Papa Francisco, a nossa solidariedade será enriquecida pela abrangência e profundidade da fraternidade. O que a alma é para o corpo é a fraternidade para a solidariedade. Por isso, com razão escreve: “a solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir as formas muito variadas de cuidar dos outros” (Fratelli Tutti, 115).
Neste sentido, desejo que a Quaresma seja o tempo em que aprendemos a superar-nos a nós próprios e a viver solidários na oração para com todos os que sofrem e para com quem, a seu lado, garante toda a assistência e todo o apoio de que precisam. Ao mesmo tempo, também este ano, o fruto da nossa renúncia será para a diocese de Bangui, na RCA, a fim de promover a escolarização das crianças. Porque sem escolarização não há conhecimento e sem conhecimento dificilmente avançaremos rumo a uma humanidade em que todos tenham acesso aos bens a que efetivamente têm direito.
São José, prudente e sábio, nos guie neste êxodo Quaresmal rumo à santidade.
+Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança