MENSAGEM QUARESMAL

DIOCESE DAS FORÇAS ARMADAS E FORÇAS DE SEGURANÇA

A NOSSA MISSÃO É A CARIDADE

A celebração da quaresma, no contexto do Ano Missionário, proporciona-nos uma ocasião para meditar sobre a relação entre missão e caridade, entre ser enviado e amar, que são frutos do Espírito Santo, o qual nos guia pelo caminho da dedicação a Deus e aos outros.

  1. Leva-nos à essência da Igreja

A Igreja, pela sua índole específica, é profundamente missionária. Famosas são as palavras de São Paulo VI, que ainda continuam a ecoar no coração dos crentes: “evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na santa missa, que é o memorial da sua morte e gloriosa ressurreição” (Evangelii Nuntiandi, 14). A Igreja, só é Igreja de Jesus quando é missionária. A missão não pode ser considerada uma espécie de passatempo de alguns membros do corpo eclesial, do qual os restantes poderiam até prescindir. A missão e a respetiva ação missionária estão no ADN da Igreja. Como tal, uma vez que é parte fundamental da sua identidade, só quando a Igreja se sente enviada é que também se pode reconhecer como Igreja de Jesus Cristo.

No meio militar e nas forças de segurança, onde operamos, é importante ter viva a consciência de que a nossa ação de serviço e de cumprimento do dever, também poderá ser ação eclesial, se for realizada e vivida num autêntico espírito missionário. Por isso, devemos resistir à tentação de nos fecharmos e de nos isolarmos no nosso mundo e nunca ousarmos ir ao encontro de alguém para lhe levar, quanto mais não seja, uma palavra de alento. Também seria importante sair dos claustros da nossa indiferença e estar mais atento às tantas necessidades que persistem escondidas por detrás de fachadas, às vezes intransponíveis. O Papa Francisco consagrou a expressão «Igreja em saída”, que equivale a dizer «Igreja em missão», para indicar a ousadia de sair da zona de conforto, do nosso cantinho e ir ao encontro das pessoas, numa atitude de comunhão, de serviço e de entrega.

Desponta, assim, o significado mais profundo da caridade (amor), enquanto «caminho-ao-encontro-do-outro», em que os irmãos se constituem sentido e razão de ser do peregrinar para eles, levando-lhes o dom da salvação. Torna-se assim evidente o alcance do mandamento “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 15, 13, 34) que é a excelência da mensagem do Senhor Jesus.

Na força do Espírito e inspirados pelo exemplo do Mestre, o amor constitui-se como alicerce e essência da Nova Criação, a Igreja, com a qual tem início a nova humanidade. Por isso, o Senhor diz “Nisto reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). O amor coloca-nos permanentemente num patamar muito elevado porque nos remete sempre, como fonte e referência, para o próprio Cristo. Ele, ao dizer “como eu vos amei”, oferece-nos decerto um conteúdo, mas também um estilo, um modo de realizar o amor. Esse Seu jeito de amar faz toda a diferença porque não é possessivo, nem interesseiro, nem tão-pouco calculista e não sufoca nem mata a autenticidade do amor, mas põe em grande evidência a sua gratuidade, o seu caráter concreto que se faz gesto na doação e entrega (cf 1Cor 13, 1-13).

Portanto, “o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência. Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove.” (Evangelii Gaudium, 179)

  1. Propõe o combate pelo essencial

A quaresma remete-nos para a centralidade do essencial. No contexto sociocultural de hoje, a promoção, vivência e salvaguarda do essencial — como o amor ao jeito de Jesus Cristo — conduz-nos a uma compreensão da vida em que, por vezes e paradoxalmente, se torna explícito o apelo ao combate, pois viver é lutar. Na oração de coleta da missa de quarta-feira de cinzas, faz-se referência às “armas” da penitência e ao “combate” contra o espírito do mal. Trata-se da luta que o cristão e todos os homens de boa vontade devem enfrentar, seguindo o exemplo de Cristo, uma vez que também Ele a travou no deserto da Judeia, onde durante quarenta dias foi tentado pelo diabo e, depois, no Getsémani, quando rejeitou a derradeira tentação por forma a aceitar totalmente a vontade do Pai. É, por isso mesmo, imprescindível empreendermos esta batalha espiritual contra o pecado e contra todas as formas de mal. Nomeadamente contra o egoísmo, a indiferença, o desamor e tudo aquilo que nos afasta do evangelho — a água viva onde paira o Espírito de Cristo. Esta luta envolve a pessoa no seu todo e exige uma vigilância atenta e constante.

Assim, a quaresma, ao mesmo tempo que nos conduz à essencialidade do amor, também nos faz compreender que, atualmente, não é possível viver e testemunhar o que é determinante na vida sem a fadiga do combate. Que é purificante! Neste sentido, também nos recorda que a existência cristã é um combate incessante, no qual devem ser utilizadas as “armas” pacíficas da oração, da esmola e da penitência. Lutar para afirmar e salvaguardar o verdadeiro amor implica combater o mal, combater todas as formas de egoísmo e de ódio e morrer para si mesmos de modo a viver em Deus e para Deus. Este é o itinerário ascético que cada discípulo de Jesus é chamado a percorrer com humildade e paciência, com generosidade e perseverança.

  1. A arma da oração resgata-nos da abstração e da fantasia com que, por vezes, tratamos Deus e os “assuntos” relacionados com Ele. Realmente, a falta de uma autêntica experiência de Deus e a inexistência do contacto pessoal com Cristo podem conduzir a uma ideia desfocada do próprio Deus. Em quantas mentes não subsiste a convicção de que Ele não é mais que uma mera ideia ou então um juiz severo ou, o que é mais grave ainda, algo que, a existir, suscita apenas indiferença. Só a oração nos mergulha numa experiência de encontro com o Senhor Vivo. Como escreve o Papa Francisco, na Mensagem para esta Quaresma: “orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia.” (Mensagem do Santo Padre para a Quaresmal 2019) Os espaços e os tempos de comunhão com Ele revelam-no vivo, real, presente.
  2. A arma da esmola — enquanto partilha dos bens que possuímos com os que deles carecem — representa uma forma concreta de socorrer quem se encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, configura uma prática ascética de jejum, através da qual nos libertamos da afeição aos bens terrenos. “Jejuar – escreve o Papa Francisco – é aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração.” (Mensagem do Santo Padre para a Quaresmal 2019). Jesus declara, de maneira perentória, quão forte é a atracão das riquezas materiais e como deve ser clara a nossa decisão de não as idolatrar, quando afirma: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Lc 16, 13). A esmola, enquanto partilha solidária, ajuda-nos a vencer esta incessante tentação, educando-nos a ir ao encontro das necessidades do próximo e partilhar com os outros aquilo que, por bondade divina, possuímos. Tal é a finalidade das coletas especiais para os pobres, que são promovidas em muitas partes do mundo durante a quaresma. Desta forma, a purificação interior é corroborada por um gesto de comunhão eclesial, como acontecia já na Igreja primitiva. São Paulo fala disto mesmo quando, nas suas Cartas, se refere à coleta para a comunidade de Jerusalém (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27). Este ano, o fruto da renúncia quaresmal da nossa diocese das Forças Armadas e Forças de Segurança destina-se à construção de uma cantina social da obra das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, em Neves, São Tomé e Príncipe. Ainda recentemente visitei esta obra e a urgência deste refeitório é ditada pela preocupação real em alimentar pessoas.
  3. A arma da penitência, enfim, focaliza-nos na interioridade do ser humano. Hoje é cada vez maior o número daquelas e daqueles que, movidos pelas solicitações da vida profissional, dos compromissos afetivos, das responsabilidades familiares ou até do ritmo alucinante da sociedade hodierna, como que emigraram de si próprios e se tornaram estranhos a si mesmos, o que os levou a afastarem-se do sentido profundo da realidade e da vida. Viver numa cultura onde existe a banalidade do mal é tão alarmante como viver na banalidade do bem, renunciando a interpretá-lo como marca divina no coração humano e, portanto, ligação fraterna aos outros e ao cosmos. O mesmo se diga sobre a banalidade do ódio ou do amor.

Por isso, este tempo quaresmal lança-nos o desafio de regressar ao deserto da interioridade da alma e descobrir que é precisamente aí que se situa a fonte de tanta ação maldosa, a origem de muitos pensamentos destrutivos, a nascente de palavras que ferem. A quaresma, ao propor uma caminhada penitencial, procura mergulhar-nos na sabedoria da vida interior e, consequentemente, da profundidade da consciência humana. Tocar essa profundidade da nossa estrutura existencial permite-nos não só encontrar o berço do bem e do mal, mas também nos mostrará onde estão as raízes das nossas feridas que só o perdão e a misericórdia de Deus conseguem sarar e corrigir.

Votos de uma santa caminhada quaresmal, estaremos unidos no propósito de crescer, como Igreja diocesana castrense, em santidade e graça, segundo a medida de Cristo Senhor Nosso. Ámen!

† Rui Manuel Sousa Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança