Transcreve-se a mensagem do senhor Bispo para a quaresma de 2018.1. Há tempos, alguém me referiu uma notícia, aliás recorrente: que um futebolista muçulmano não comia durante o Ramadão, ainda que com prejuízos do rendimento físico. Por essa altura, recebi um daqueles muitos PowerPoints que enviam para os nossos emails: um “doutorado” brasileiro debitava a sua presumida sabedoria argumentando que a espiritualidade é imensamente melhor que a religião. E argumentava: esta leva-nos a voltarmo-nos para o que não vemos, despreza a vida, causa guerras, etc. A espiritualidade, segundo ele, insere-nos na natureza, concentra-nos na força vital, é factor de paz, etc., etc. E o arrazoado continuava, argumentando à maneira dele e sem qualquer prova ou dado científico.
2. Fiquei a pensar nestas duas atitudes contraditórias. No primeiro caso, um jovem, cheio de vida e de futuro, integra perfeitamente a religião na sua vida. E não sacrifica nenhum aspecto à sua fé: esta é que predomina e abarca os outros. No caso do brasileiro, são os lugares comuns repetidos até à exaustão, e hoje, neste tempo de «new age», elevados por muitos à categoria de um novo dogma. E que origina uma geração indiferente ao fenómeno religioso, tranquilamente agnóstica, despreocupada com o sentido da vida.
3. Mas, curiosamente, muitos dos que julgávamos indiferentes estão a refutar a aridez religiosa da sociedade, a questionar o seu lugar no mundo e a regressar à pergunta sobre Deus e sobre a meta da existência. Eu mesmo sou testemunha deste renascer religioso: tenho encontrado imensa gente que, com toda a naturalidade, conjuga alegria de viver, responsabilidade social e plena adesão à fé e aos valores que dela provêm. São pessoas de todas as idades. Mas chama mais a atenção quando se trata de jovens. Até porque alguns apressavam-se a proclamar solenemente que a fé tinha desaparecido da existência das novas gerações.
4. Começamos a quaresma. Na mente da Igreja, este tempo forte deve constituir como que um longo espaço de introspecção para ajuizarmos o timbre da nossa vida, as verdadeiras metas que nos colocamos e qual o relevo que concedemos à fé na nossa existência. E a mesma Igreja lembra-nos os três meios pelos quais reequacionamos o azimute da direcção de vida e transformamos o nosso coração de pedra em coração sensível e afectivo: oração, penitência, esmola. Claro que a maior oração é a Missa dominical: que ninguém a deixe por motivo algum. E também a confissão sacramental. A penitência passa por formas de autocontrole que a nossa consciência nos dite, mas procure-se valorizar os pequenos gestos, por vezes difíceis, para com aqueles com quem convivemos, especialmente a família e os camaradas de trabalho. A esmola revela um coração magnânimo e exprime uma certeza de fé: ricos e pobres, somos todos irmãos porque filhos queridos do mesmo Pai amoroso que é Deus.
5. Quando elas são entregues nas igrejas ou capelas, é costume destinar o produto destas esmolas –a chamada renúncia ou partilha quaresmal- a alguma grande causa, anualmente fixada. Escutados todos os capelães e outras estruturas de participação, decidiu-se que, neste ano de 2018, 25% desse quantitativo ficaria à guarda da Capelania Mor para acorrer a eventuais necessidades pontuais urgentes que surjam entre os militares e polícias e 75% seja enviado para Moçambique, especialmente por intermédio da associação AFIM (Ajuda Fraterna à Ilha de Moçambique – afimportugal.org), fundada por um capelão militar e com muitos outros militares nos órgãos sociais. Esta meritória associação possui as seguintes valências: um lar para os mais pobres, nove “escolinhas”, centro de encaminhamento (e pagamento) em caso de cirurgias urgentes, apoio social directo de alimentação e vestuário, apoio a estudantes e universitários e formação de professores.
6. Na rica mensagem que escreveu para esta quaresma, o muito querido Papa Francisco cita uma frase bíblica: “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24, 12). Precisamos, de facto, de mais amor. O nosso mundo está frio: frio nas famílias, frio nas redes sociais onde juras de amor eterno e bullyng se sucedem facilmente, frio nos ambientes competitivos de trabalho, frio numa sociedade violenta porque individualista. Estou em crer, porém, que o grande frio se verifica na relação com Deus: aí é que, com frequência, o nosso coração está gelado. E um coração frio não pode fazer uma vida quente de amor e fraternidade. Por isso, como profetiza a frase bíblica, multiplica-se a iniquidade.
7. Que esta quaresma seja um tempo de profundo aquecimento do coração. Quer o amor de Deus nos conduza ao amor dos irmãos e vice-versa. E que a iniquidade no mundo desapareça como quando o sol faz incidir o seu calor no gelo mais opaco. Para isso, não nos esqueçamos dos três meios: oração, penitência, esmola.
Santa quaresma. Feliz Páscoa.
+ Manuel Linda