Foto: Academia Militar

Decorreu ontem, dia 23 de junho, pelas 16h30, na Academia Militar, a Bênção dos Finalistas do Exército e da Guarda Nacional Republicana, presidida pelo Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, D. Rui Valério.

A  cerimónia teve lugar na sede da AM, no campo de futebol, para salvaguardar as condições sanitárias.

Para além do Comando, do corpo docente também participaram muitos familiares destes Cadetes.

A Celebração foi preparada pelos próprios finalistas sob a orientação do Capelão, Pe António Borges.

Transcrevemos a homilia do prelado.

«Reza uma lenda oriental que na hora de um servo deixar a casa do senhor que servira, durante 20 anos, sem nada receber, este lhe perguntara o que queria: se o dinheiro dos 20 anos de trabalho ou se 3 conselhos que o ajudariam a regressar a casa são e salvo, mais um pão que comeria só à chegada. O homem optou pelos conselhos e o pão e conseguiu chegar a casa são e salvo.

Conselhos, não os tenho e, por isso, não os posso dar. Mas gostaria de vos deixar três palavras que quando assumidas e praticadas poderão estruturar uma vida e construir história:

1. (EM) SAÍDA. Palavra muito atual e apropriada.

Desde logo, porque se aplica a vós, finalistasque «estais a sair de um processo de formação académica» para entrar em cheio na etapa do trabalho.

Em segundo lugar, estamos todos a sair de um tempo de pandemia. Finalmente,desconfinámos.

Também a primeira leitura nos falava da saída de Abraão da sua terra para ir onde o Senhor lhe indicasse.

Por fim, se há palavra que sintetize o que é a portugalidade, essa palavra é «saída», sobretudo por causa da epopeia dos descobrimentos.

“Em saída” é mais do que um movimento, é um espírito, uma mística, que torna possível a criatividade e a inovação. Onde estaríamos nós, ainda, se Galileu Galilei não tivesse saído da visão aristotélica do mundo? O que seria do mundo sem essa saída que levou Portugal aos 4 cantos da Terra? Que seria da força transformadora do evangelho se os primeiros discípulos não tivessem saído de Jerusalém? Sair da rotina, da nossa zona de conforto, mas sobretudo sair de nós e fazer da vida uma saída da nossa autorreferencialidade para ir ao encontro dos outros. Ter uma abordagem de si mesmo que recuse viver em função de si próprio, mas sempre em função da Pátria e dos portugueses. Tanto mais que nós já não nos pertencemos. A farda que trazemos indica isso mesmo: somos do Exército, da GNR e permanentemente estamos a sair de nós mesmos.

Não, não vivemos enclausurados dentro das nossas preocupações, ou problemas, mas sempre fazemos nossos os problemas e as dificuldades dos que servimos.

Todos os grandes valores estruturantes, como a liberdade, a esperança e até o amor,possuem uma carga que nos mobiliza a sair, conforme escutávamos na segunda leitura. A propósito, o filósofo judeu, Emmanuel Levinas, dizia que o amor é um êxodo sem regresso do “eu” ao “tu”. E o amor só será mais do que um mero sentimento, será serviço, será a prática do bem se for animado pela grandeza do desprendimento de si.

2. A segunda palavra que vos quero deixar é SER. No passado refletia-se muito sobre o conflito entre ser e ter, tanto que o famoso psicanalista Erick Fromm escreveu um livro intitulado «Être et avoir». Depois, veio a dicotomia entre ser e fazer, bem como entre ser e parecer… Mas hoje o principal conflito já não é nenhum desses, pois há um valor que se sobrepõe nitidamente a tudo o resto: o valor da competência e da eficiência. O conflito que hoje perturba a vida humana é entre ser e competência.

Todos os outros valores perdem relevância face à competência. A Ética, a liberdade, o respeito pela dignidade humana… até mesmo a dimensão afetiva e psicológica, tudo está hoje muito relativizado face à eficácia e à competência.

Há cerca de uns trinta anos, surgiu um filme icónico com um título que é todo um programa: «O clube dos poetas mortos». Era um grito para que os jovens, num mundo cada vez mais tecnocrata e dominado pela técnica, não desistissem da ética, de exigir um sentido para a vida e conservassem um certo espírito de camaradagem e rebeldia, porque só assim haveriam de garantir e construir a própria felicidade. Tudo dimensões constitutivas da pessoa. Porque ao ser humano não basta ser competente, é preciso querer ser feliz. Esse filme, aliás, referia um aspeto lancinante da vida: «o mais dramático é estar no leito da morte e ter de subscrever a frase: vivi, mas foi tudo uma inutilidade’». Quando se tem que dizer algo assim é porque não se participou da aventura da vida. A vida não foi mais que um calvário, algo absurdo e pesado. Hoje, como dizem alguns, temos aí um hóspede irrequieto, que é o niilismos (uma corrente que promove o nada, o vazio) e que Nietzsche definia assim: 1) falta o objetivo; 2) falta a resposta ao porquê?; 3) todos os valores se transmutam. Qualquer uma destas caracterizações representa um empobrecimento cultural, social e humano. Hoje, a cultura dominante incide muito sobre o bem-estar, mas parece ter desistido da felicidade. Ou, se não desistiu, vive-a de modo diferente. Por isso, o apelo que vos faço é que não desistam da vontade de ser: de ser feliz, de ser necessário ao meu país.

3. A terceira palavra que vos quero sugerir é SACRIFÍCIO. Uma palavra interessante que significa não só privação, imolação, mas também (como sugere o seu sentido em latim)“sacer”+“ficium”: tornar um ato sagrado. É por isso que toda a vida do Militar é um ato sagrado, porque defender a Pátria e por ela estar disposto a derramar o próprio sangue é realmente um ato sagrado. Ato esse que se atualiza em cada missão que realizais.

Poucos hoje sabem viver criando o sagrado, o infinito, o imortal. Vivemos realmente apenas ao ritmo da mentalidade técnica, totalmente focada no imediato.

Li recentemente um ensaio produzido em Oxford por dois eminentes autores que advogavam a seguinte tese: A pandemia veio demonstrar como o funcionamento do mundo ainda depende largamente do ser humano. Por isso, quando o ser humano foi ameaçado por um vírus, o mundo parou. Se em vez de humanos que adoecem, que têm estados de alma, que caem em depressão, o mundo fosse regido e estivesse assente em tecnologia, tudo tinha continuado a funcionar normalmente, independentemente do que estava a acontecer aos humanos. Por isso, rematavam, há que incrementar a tecnologização da sociedade.

No entanto, o que enobrece o mundo, o ser humano, a sociedade e a história são os feitos protagonizados pelas pessoas. Por isso, nada pode conter tanta densidade quanto a ação praticada por um homem ou uma mulher. Só eles e só elas podem ser heróis. É o que Portugal e a Igreja esperam de Vós. E hoje, a salvaguarda do humanismo no mundo e na vida dependem daquilo que é específico do ser humano, o sentido da transcendência. Só a sociedade que assenta em Deus, como alicerce, está em grado de defender e proteger a dignidade do ser humano.

Termino evocando Luiz de Camões que, num soneto, canta toda a abrangência do ditoso sacrifício que consiste em alcançar a divina, infinita e clara fama pelo derramamento do próprio sangue, enquanto se segue a bandeira esclarecida e se assume a tarefa de ser um capitão de Cristo, a quem mais se ama».