Este ano, a comemoração do Armistício da Grande Guerra e do fim das Campanhas do Ultramar foi enriquecida por duas realizações a todos os títulos notáveis: a edificação de uma capela no Forte do Bom Sucesso, em Belém, e a deposição dos restos mortais de um combatente por Portugal, caído na Guiné, num mausoléu construído para o efeito.
Para além de proceder à bênção destes dois espaços, o Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança foi convidado a usar da palavra na cerimónia oficial, perante o Ministro da Defesa, altas Chefias militares, autoridades civis e adidos estrangeiros. Acentuou a noção cristã da paz, como a única que serve ao nosso mundo.
Eis o texto do seu discurso
Na inauguração da Capela e memorial do combatente
A tradicional comemoração do armistício da I Grande Guerra e do fim da guerra do Ultramar que, ano após ano, a Liga dos Combatentes celebra, é, este ano, excepcionalmente enriquecida com dois momentos de fortíssimo significado: a inauguração de um espaço destinado à reflexão e à espiritualidade, dimensões inerentes à vida humana, e a deposição dos restos mortais de um combatente, expressão de reconhecimento da Pátria a ele e a todos os outros que a ela deram tudo, incluindo o sangue e a vida. Trata-se, pois, de um gesto marcante, até porque, com o túmulo do «soldado desconhecido», no Mosteiro da Batalha, nos trará à memória aqueles que, porventura, constituem os dois momentos de maior sofrimento da nossa Pátria no século XX: o heroísmo do Corpo Expedicionário Português e a angústia de uma juventude atirada para uma guerra colonial que, como se viu com o 25 de Abril, se deveria ter resolvido pela via política. E colocam-se como um enorme desafio: o repensarmos o timbre da nossa vida em sociedade e a qualidade do relacionamento com a comunidade das nações para, na fidelidade ao espírito humanista português do encontro de povos e culturas, não mais se repetirem acontecimentos da história recente.
Por conseguinte, quando me convidaram a tomar a palavra neste acto solene, aceitei fazê-lo movido quase que por aquela única razão –eu diria, «profissional»- que dá sentido à missão que exerço: reflectir a paz, pregar a paz, ajudar a amar a paz. Além disso, a dedicação de um espaço à reflexão e à espiritualidade e um memorial ao altruísmo vêm de encontro às minhas convicções mais profundas: a urgência de solidificar os laços entre a sociedade e a paz. Porque, curiosamente, como acontece nas famílias, por vezes desencontram-se, amuam-se, separam-se e odeiam-se. Eis, por conseguinte, uma reflexão apenas incipiente sobre este tema.
A antropologia cultural diz-nos que existem duas percepções fundamentais a respeito daquela espécie de moeda que se exterioriza nas faces da guerra e da paz: uma, a greco-romana, imagina a paz como mera trégua no belicismo habitual, já que a guerra seria a situação normal da vida das pessoas e dos povos, como que um fatalismo do eterno retorno; a outra, a concepção judaico-cristã, vê a paz como a naturalidade da vida, o resultado lógico e necessário da realização da justiça e da rectidão dos vínculos relacionais. A primeira perspectiva é pessimista e legitima o conflito contínuo; a segunda é realista -não ingénua nem simplória- e recusa aceitar a injustiça e a violência como últimas palavras da história ou até que elas se constituam em formas válidas de resolução dos conflitos, sempre possíveis.
Ora, como a civilização se constrói do menos para o mais, em linha ascendente, ainda que não linha recta, constituiria um terrível recuo o voltarmos à concepção pagã greco-romana. Curiosamente, ela recrudesce na história, mesmo ao nível do dito «alto pensamento». Pense-se, por exemplo, em Hobbes e na sua conhecida tese do «homem lobo do homem» e, actualmente, no tema da «inerradicável violência» de Girard, adocicado, é certo, com a ideia da possível descarga em novos «bodes expiatórios». De resto, algumas correntes de psicanálise falam mesmo da «pulsão da morte», isto é, da tendência quase irrefreável da pessoa, individual e colectiva, para a sua autodestruição.
Não é esta a minha visão. Eu acredito na paz como o resultado lógico do desenvolvimento humano integral: não apenas o económico, muitas vezes obtido à base da exploração dos outros e da natureza, o que só gera injustiça e desejo de vingança, mas o pleno amadurecimento, individual e colectivo, das nossas capacidades físicas, intelectuais, sanitárias, culturais, familiares, relacionais e, fundamentalmente, dos valores mais nobres, quais sejam os da colaboração, da solidariedade, da dedicação e do amor altruísta. Acredito, portanto, numa «cultura de paz» como compromisso ético concreto que passa, em primeira instância, pelo respeito pelas leis justas e pela formação das consciências para o valor da socialidade, do sadio relacionamento, do mútuo auxílio e da dedicação generosa aos mais frágeis. E isto a nível pessoal, familiar, nacional e internacional. Creio na paz como específica moralidade ou timbre do homem não deformado, isto é, daquele homem que não cresce apenas numa dimensão, mas procura atingir o máximo das suas possibilidades em todos os domínios, sem esquecer o que lhe é mais exclusivo: os valores e a espiritualidade.
Ingenuidade minha? Penso que não. A experiência indica que desmascarado o círculo da violência antropológica dissolve-se o seu fascínio perverso. Não obstante, olhamos para a história e para o que se passa à nossa volta e divisamos o egoísmo das pessoas e dos povos a sobrepor-se à boa vizinhança, a febre do domínio a tentar constituir-se em supremo motor da história, as ideologias a tornar cega a inteligência de quem deveria pensar e até o fundamentalismo religioso mais primário a confundir a selvajaria com a vontade de Deus. Os resultados estão à vista: a barbárie, as lágrimas e a dor, as múltiplas pobrezas, as deportações e os exílios, a tentativa de chegar a lugar seguro e a morte no mar, a crescente xenofobia de quem não quer ser incomodado, o genocídio de povos, culturas e civilizações, o espezinhar dos direitos humanos.
Perante isto, coloca-se-nos novamente a pergunta que já se tinha posto a Ambrósio de Milão, aquando da chegada das tribos bárbaras: será moralmente lícito assistir placidamente a estes horrores e nada fazer para defender o inocente? Não é crime do mesmo jaez fazer o mal a alguém ou permitir que o outro o faça, podendo eu impedi-lo? É por isto que se exigem as Forças Armadas e as Forças de Segurança: a Nação sente a obrigação moral de proteger todos e cada um dos seus cidadãos e de assumir os compromissos internacionais que estabelece com os seus pares para a defesa da paz e do bem comum. E é aqui que a paz se demarca de um certo pacifismo balofo: aquela preocupa-se efectivamente com o outro; este olha para si mesmo e nada mais.
Então, esta comemoração não pretende justificar a história nem, muito menos, braquear as opções que os políticos tomaram e impuseram às Forças Armadas para que estas as executassem. Mas deseja vincar fortemente que, mais que ninguém, as Forças Armadas acreditam e querem a paz e que a sua razão de existir está no contributo dado à causa da liberdade, da justiça e da boa convivência, factores sem os quais a pessoa não pode atingir o tal desenvolvimento integral de que antes falei. E que, por esta causa, muitos sofreram e verteram o sangue e que os seus familiares e amigos ficaram para sempre inconsoláveis. Eis o alto preço da nossa liberdade, da harmonia social e da possibilidade de dispormos do nosso futuro. Para eles, o nosso muito, muito obrigado. Sejamos dignos do seu sacrifício.
Curiosamente, muitos de nós celebramos hoje a memória de um ilustre militar: Martinho de Tours, o tal São Martinho que repartiu a sua capa com o pobre. Este gesto constitua como que o símbolo do ser militar nos dias de hoje: dar e dar-se à sociedade, em generosidade e grandeza de espírito para que esta tenha paz, liberdade e harmonia.
+ Manuel Linda