MISSA DOS FIÉIS DEFUNTOS

A tradicional Missa pelos defuntos das Forças Armadas e das Forças de Segurança foi celebrada nos Jerónimos, a 3 de Novembro.

Marcaram presença altas patentes de todos os Ramos e Forças de Segurança, dirigentes dos Ministérios da tutela e muitos militares e polícias.

Este ano, o coro, instrumental e o terno de clarins era da Guarda Nacional Republicana. Como sempre, a guarda de honra ao altar foi prestada por cadetes das Escolas Militares de Ensino Superior e do ISCPSI. Pela primeira vez, há que registar alunos do Instituto dos Pupilos do Exército como acólitos.

Presidiu D. Manuel Linda e concelebraram praticamente todos os Capelães da Zona Pastoral de Lisboa.

O senhor bispo pronunciou a seguinte homilia.

 

 

Revesti-vos da armadura de Deus

 

A oração que fazemos é pelos nossos mortos; mas a mensagem da Palavra de Deus é para nós, os vivos. Para a compreensão desta mensagem, vou situar-me na primeira leitura da Missa de hoje (2Mac 12, 39-45).

 

Identidade nacional e fé em Judas Macabeu

O século II antes de Cristo foi conturbado, fundamentalmente, devido à expansão dos selêucidas que conseguiram um vasto império, da Pérsia ao Mediterrâneo, e tentaram a imposição de um modelo de cultura que se opunha à judaica. É neste contexto que, num misto de ardor de fé e defesa valorosa da identidade do seu povo, Judas Macabeu formou um exército para se lhe opor. E a campanha foi bastante bem sucedido, pois os judeus conseguiram resistir razoavelmente.

Mas numa batalha contra um tal Gorgias, morreram vários judeus. Quando iam proceder aos seus funerais, verificaram, com espanto, a existência de amuletos e ídolos nas vestes dos caídos, coisa perfeitamente abominável aos olhos da religião judaica, portadora de inúmeras regras fortemente zeladoras do monoteísmo. Neste contexto, vendo que os seus homens «morreram em pecado», o General Judas ordena uma colectar para que, com esse resultado, se ofereçam sacrifícios de expiação no templo de Jerusalém.

 

Militares e a fé na ressurreição

Esta narrativa revela-nos três coisas sumamente importantes para a nossa fé cristã, pois nós também somos «filhos» da fé judaica: que a oração consegue o perdão dos pecados e a «aproximação» do defunto a Deus; já que os mortos, agora, não a podem realizar, compete aos vivos fazerem essa oração de intercessão por eles; pela primeira vez na história da revelação, de forma explícita, afirma-se a crença na ressurreição. Note-se, pois, que é em contexto militar que se professam estas verdades da fé, que entram no nosso credo.

Mas esse acontecimento histórico dá-me pretexto para uma reflexão mais alargada sobre a interligação entre vida militar e vida da fé. Necessariamente, de forma quase telegráfica.

 

A «legítima defesa» de Deus e do seu povo

O Antigo Testamento reconhece, de facto, a «guerra santa». Mas nunca por motivos de expansão. Nem sequer da fé. Na prática, só poderia ser uma guerra de defesa: como só Israel era considerado o povo de Deus, opor-se ao povo era a mesma coisa que opor-se a Deus. Consequentemente, defender o povo era exercer o «santo ofício» de «defender» Deus. Quão longe estamos de perspectivas actuais que recorrem a esta noção para «imporem» os seus domínios, sejam estes da fé ou simplesmente ideológicos ou económicos!

 

O princípio da realidade

Como seria de esperar, o Novo Testamento ainda vai muito mais longe. Equaciona-se o que é perfeitamente do domínio humano e o que o é do divino. Sob o ponto de vista sócio-político, tudo converge para o que poderíamos denominar a regra do bom senso ou o princípio da realidade: se as nações livres e independentes não se protegessem com a força militar correriam sérios perigos, porquanto nada limitaria a ganância dos Estados predadores. De mais a mais, seria impossível imaginar a vida organizada e pacífica sem os militares e as rudimentares estruturas das leis, dos tribunais e das penas. No passado como no presente, o bem comum passa por aqui. Por isso mesmo é que não encontramos no Novo Testamento qualquer desaprovação da vida militar, não obstante os portadores desta condição, na prática, serem os agentes que impunham a política de Roma, tremendamente corrupta.

Não obstante isso, os militares –e hoje, também os polícias- estão sujeitos a desafios éticos especiais, tais como honestidade, integridade e protecção dos mais débeis. Políbio reassume esta ética ao declarar: “Os Centuriões escolhem-se por mérito e, por isso, são homens extraordinários, não tanto pelo seu valor audaz, mas sim pela sua sensatez, constância e fortaleza de espírito”. Repare-se: os comandantes são extraordinários. Mas não tanto pela sua preparação física ou científica: são grandes pelas virtudes e pelos valores que os enformam. O Novo Testamento coincide completamente com esta visão pagã, pois todos os que lá referidos são louvados porque «tementes a Deus» e homens de carácter. Por vezes, também se diz que são esmoleres.

 

A «batalha» espiritual

Isto sob o ponto de vista estritamente humano. Porque no relativo à espiritualidade do «reino de Deus», as coisas ainda se elevam mais. “O meu reino não é deste mundo”, garante Jesus a Pilatos. E se não é deste mundo, deve ter critérios distintos. Por isso, algumas horas antes, quando vão prender Jesus, Pedro tira a espada da bainha e chega a cortar a orelha de um empregado do governador, um tal Malco. Mas logo Jesus intervém e admoesta Pedro: “Mete a espada na bainha. Não hei-de beber o cálice de amargura que o Pai me ofereceu?” (Jo 18, 11). E diz a tradição que fez o contrário de Pedro: este cortou a orelha e Jesus repo-la no lugar.

Não obstante, particularmente em S. Paulo, fala-se muito em armaduras, guerras e batalhas. Porém, não uma guerra travada contra os outros, muito menos de invasão. Mas sim uma guerra espiritual, travada contra nós próprios. Sim, o inimigo que imprta vencer encontra-se dentro de nós mesmos: é o nosso comodismo, a nossa falta de fé ou as obras que dela devem nascer, a nossa insolidariedade, enfim, o peso que nos atrai para a terra em detrimento das asas espirituais.

 

A «armadura de Deus»

Vale a pena transcrever um longo texto em que tudo isso é ressaltado e com uma beleza literária exclusiva de um autor intelectualmente brilhante, como São Paulo, e um verdadeiro apaixonado pela fé em Jesus Cristo. Escreve ele para um grupo de cristãos e, por eles, para todos nós: “Tornai-vos fortes no Senhor e na sua força poderosa. Revesti-vos da armadura de Deus, para terdes a capacidade de vos manterdes de pé contra as maquinações do mal. Porque não é contra os seres humanos que temos de lutar, mas contra […] o mundo de trevas, contra o espírito do mal. Tomai a armadura de Deus para que tenhais a capacidade de resistir [..].  Mantende-vos firmes, tendo cingido os vossos rins com a verdade, vestido a couraça da justiça e calçado os pés com as perneiras da prontidão para anunciar o Evangelho da paz. Acima de tudo, tomai o escudo da fé, com o qual tereis a capacidade de apagar todas as setas incendiadas do maligno. Recebei ainda o capacete da salvação e a espada do Espírito, isto é, a palavra de Deus. […] Sede sentinelas vigilantes com toda a perseverança e com preces…” (Ef 6, 10-18).

Pois é. Este é o combate ao qual somos chamados todos os dias. Este é o combate que combateram, por exemplo, o soldado Sâo Sebastião, o militar e rei de França São Luís, a comandante Santa Joana d’Arc e o condestável São Nuno Álvares Pereira. Combateram e venceram. E nós?

 

Manuel Linda

MISSA DOS FIÉIS DEFUNTOS