D. Manuel Linda presidiu, no passado Domingo, 10 de Julho, à Festa de Nossa Senhora do Bom Despacho, na cidade da Maia. Apresenta-se a homilia desta que é também a festa do Concelho.
Nossa Senhora do Bom Despacho, 2016
“Farei correr a paz para Jerusalém como um rio” (Is 66, 12)
- Jerusalém, a cidade-mãe
É curiosa a primeira leitura que escutamos. O profeta Isaías tece um hino à maternidade e à função geradora de Jerusalém: a cidade é uma espécie de mãe com os filhinhos ao colo que os alimenta e os protege.
No mundo antigo, de facto, a cidade possuía uma significação profundamente religiosa. Quase sempre construída de forma circular –a linha perfeita, para os gregos, porque equidistante do centro- de alguma forma simbolizava a terra inteira, redonda na linha do horizonte. A cidade era vista, portanto, como elevação da terra na direcção do Céu. Melhor: como uma espécie de mãos estendidas para que o Céu descesse à terra.
Na mente religiosa judaica, a cidade exprimia a familiaridade de Deus com o seu povo: Deus como Pai e a cidade como mãe. Os que nela nascessem, por conseguinte, eram filhos de Deus, a ponto de afirmar: “O meu nome vive lá. Lá hei-de ouvir as súplicas dos meus filhos” (1 Rs 8, 29). E, de facto, é na cidade de Jerusalém que se cumpre a plenitude da nossa salvação no acontecimento pascal de Jesus Cristo: na sua morte, ressurreição e glorificação. Mais uma vez, a cidade foi «mãe»: gerou um novo povo fundado no “sangue da nova e eterna aliança”.
- A cidade dos homens, antecâmara da cidade de Deus
Esta noção esteve sempre presente na forma de os cristãos entenderem a história da salvação. Na Idade Média, concretamente, encontramos a interpretação alegórica da cidade santa de Jerusalém, como símbolo das várias fases da nossa história da salvação: segundo a mentalidade do Antigo Testamento, mas da qual, aliás, nós também somos herdeiros, Jerusalém exprime a morada do “grande Rei” junto do seu povo para o libertar, proteger, saciar; de acordo com do Novo Testamento, Jerusalém identifica-se com a Igreja, nascida da “água e do sangue” do Cordeiro de Deus suspenso na cruz; os místicos estabelecem uma relação directa entre Jerusalém e a pessoa de Nossa Senhora, pois, ainda mais do que na cidade, é no seio de Maria de Nazaré que se dá o encontro da divindade com a humanidade, de Deus com o homem e o consequente nascimento do homem novo; finalmente, Jerusalém exprime a nova dimensão da vida em plenitude do homem com Deus, a qual, na sua forma acabada e total, só se pode dar na eternidade. Como tal, falamos na “Jerusalém celeste”.
Curiosamente, o urbanismo medieval das nossas cidades, vilas e aldeias exprimia isto muito bem: era à volta da catedral ou de uma simples igrejinha que se edificava o casario e não de forma aleatória e desregrada como no urbanismo de hoje. A própria nomenclatura usada aponta para aí: “Paróquia”, isto é, urbanização à volta da mãe geradora que é a Igreja, ou “Freguesia”, cujo significado ainda é mais intenso, pois aponta para a filiação na Mãe Igreja.
- A «consolação» como o clima que se respira na cidade onde está Deus
Podemos perguntar-nos: que resulta desta coabitação «citadina» de Deus com o seu povo?
A segunda leitura falava-nos de “consolação”: “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação! Ele nos consola em todas as nossas tribulações para podermos consolar quem se encontra em tribulação” (2 Cor 1, 2-3). S. Paulo elabora um verdadeiro hino de exultação por sabermos que a presença de Deus junto de nós nos traz graça, ânimo e felicidade. A consolação –esse sentimento de paz e de alegria íntima que se segue aos sofrimentos ultrapassados- é o resultado da acção salvadora do nosso Deus. Por isso, já o Antigo Testamento lhe chama “o Deus de toda a consolação”. É que o Senhor revela-se como Aquele que escuta o grito aflito do seu povo e ordena àqueles que tinham responsabilidades na condução das pessoas: “Consolai, consolai o meu povo. Dizei-lhe que os seu cativeiro terminou” (Is 40, 1). Jesus, evidentemente, segue na mesma linha e declara solenemente: “Bem-aventurados os aflitos porque serão consolados” (Mt 5, 5). E promete e envia o “Espírito Santo Consolador” (Jo 14, 16), como presença contínua e definitiva na vida do crente e da sua Igreja.
De facto, o nosso Deus não é o impassível, o insensível ou imóvel. Muito menos o desinteressado com a sorte de cada um de nós. Não! O nosso Deus é como uma mãe e ainda mais que uma mãe: cuida de nós e alimenta-nos não só com a sua bondade providente, mas também com o olhar de misericórdia e ternura com que fixa os nossos olhos. Assim nós não voltemos o nosso olhar para outra direcção…
- Nossa Senhora, medianeira desta consolação
Finalmente, o conhecido Evangelho que escutamos (a tranformação da água em vinho, nas bodas de Canã) mostra-nos qual o lugar de Nossa Senhora nesta forma «maternal» como Deus nos trata: intervem, intercede, pede, particularmente quando confiamos demasiadamente em nós e nos nossos cálculos. De facto, se só entrar a dimensão humana, o sonho pode falhar e é fácil cair-se no desencanto e até na aflição. Mas, se pela mediação de Nossa Senhora, Deus intervém nas nossas vidas e aflições, então é a felicidade ainda mais plena, esse estado de completo bem-estar que designamos por “salvação”.
Esta salvação, neste caso concreto, é expressa e simbolizada pelo vinho: um vinho que, depois da intervenção de Jesus, é ainda melhor e mais saboroso do que o anterior, mero produto das mãos humanas. Se o vinho, na mentalidade bíblica, já é expressão do contentamento, do sentir-se bem com a vida e do são convívio, quando Nossa Senhora e Jesus intervêm, então irrompe a plenitude da alegria e o sentido da existência. Numa palavra, a plenitude da salvação.
- Nossa Senhora e o seu «Bom Despacho»
Caros cristãos da Maia, celebramos a festa de Nossa Senhora do Bom Despacho em Ano Santo da Misericórdia. É o tempo da tomada de consciência da ternura de Deus. Mas também a oportunidade para redescobrirmos que a Senhora vela e intercede por nós continuamente. Por vezes, essa intervenção é mais notória e visível, como o foi em Fátima, há cem anos. Mas, mesmo quando não nos damos tanto conta, a Senhora continua a interceder por nós, para que o «despacho» do seu Filho em nosso favor, seja de ajuda, de graça e de misericórdia.
Que a nossa cidade abra de par em par as portas ao nosso Deus. Que o Senhor nela possa morar para nos conceder a consolação. E que a solicitude da sua e nossa Mãe se faça sentir em nosso favor, particularmente quando nos faltar o «vinho bom» da alegria, do sentido da vida e da felicidade. Que aqui se gere um «novo povo de filhos de Deus», um povo «consolado» para se tornar consolador. A exemplo de Nossa Senhora.
Maiatos, não nos furtemos a esta exigência da nossa fé.