D. Rui Valério hoje, 25 de julho, nas comemorações dos 880 anos da Batalha de Ourique.
As cerimónias decorreram em Castro Verde e foram organizadas pela Câmara Municipal de Castro Verde, em conjunto com a Direção de História e Cultura Militar e o Regimento de Infantaria Nº 1 de Beja, para recordar um dos momentos marcantes para a proclamação do Reino de Portugal e do Reinado de D. Afonso Henriques.
As Comemorações iniciaram nos Paços do Município com a receção, com honras militares, da Secretária de Estado da Defesa Nacional e restantes Autoridades Civis e Militares, seguindo, posteriormente, para o São Pedro das Cabeças, local onde se realizou a cerimónia militar com o hastear da Bandeira Nacional, a deposição de flores junto ao monumento evocativo e homenagem aos mortos na Batalha.
Transcrevemos a homilia que o Bispo responsável pela Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança proferiu na Missa de Ação de Graças.
Caros irmãos em Cristo,
1. Muitos de nós ainda recordam o que disse D. Manuel Clemente, eminente historiador, quando no ido ano de 2004 nos veio falar sobre a Batalha de Ourique: “grande no que foi e grande no que fez ser”.
«No que foi», uma obra prima de estratégia e dedicação levada a cabo por Afonso Henriques e o seu Exército.
No «que fez ser», a batalha gerou uma pátria–nação e um sentimento nacional, ao mesmo tempo que operou o maravilhoso milagre de estabelecer uma ponte com o céu. E aqui refiro-me ao famoso milagre no qual D. Afonso Henriques terá vivido uma intensa experiência religiosa, vendo surgir no firmamento um radioso Crucifixo, cujos raios de luz plasmavam a nossa amada bandeira. Portugal não é, portanto, um mero projeto humano; Portugal como nação é vontade e desígnio de Deus.
E esta experiência mística de encontro com o Crucificado foi a principal referência, tantas vezes evocada nos momentos de crise nacional, quando a identidade e a autonomia pátria se apresentavam comprometidas.
Esta experiência foi de tal forma determinante na construção da identidade nacional, que o próprio Luís de Camões a não esqueceu na sua famosa epopeia. Escreveu ele a este respeito, no terceiro canto d’Os Lusíadas:
“A matutina luz, serena e fria, / As estrelas do Pólo já apartava, / Quando na Cruz o Filho de Maria, /Amostrando-se a Afonso, o animava. / Ele, adorando Quem lhe aparecia, / Na Fé todo inflamado, assi gritava: / “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis, / E não a mi, que creio o que podeis!”
2. Quais são, pois, os elementos da identidade nacional que são plasmados por este acontecimento de significado transcendente?
O primeiro é a referência à ideia de milagre. Desde Ourique, na primeira metade do século XII, passando por Aljubarrota, no século XIV, até à Restauração da independência nacional, em meados do século XVII, a ideia de milagre repropõe-se incansavelmente nas narrativas fundacionais, quando um novo ciclo de vida nacional se anuncia.
A ideia de mistério remete para o que está «para além de»; para além do nosso escasso entendimento sobre a natureza profunda da realidade, da nossa limitada compreensão da essência da vida, da diminuta capacidade humana para realizar tão grandes feitos… O milagre rasga os horizontes e as fronteiras onde se inscreve a pequenez humana.
E esta é, porventura, uma das principais facetas da identidade nacional. O português é alguém que sente o apelo da autossuperação, da vontade de “descobrir novos mundos ao mundo”, de ir mais além. E é esse o motivo pelo qual nos lançámos na vertiginosa aventura das descobertas.
Mas o português também pressente a inata capacidade de ir além das dificuldades e dos escolhos que em todas as épocas vai encontrando. O português sente o apelo da vitória face às contrariedades que lhe estorvam o itinerário da vida.
Mas o mistério, tão arreigado nos mitos e nas narrativas nacionais, é também a faceta que nos impele a sermos peregrinos do Infinito e do eterno, sedentos do que está para além do finito e do temporal. Temos aqui, porventura, uma linha de explicação para o facto de o cristianismo haver sido uma das linhas civilizacionais mais preponderante na moldagem da cultura nacional e da nossa identidade enquanto portugueses.
3. O segundo aspeto está em sintonia com o que acabámos de escutar no evangelho: a principal vocação de quem segue Jesus Cristo é o serviço. Também a identidade que foi plasmada nestas planícies se relaciona com o serviço à humanidade.
Ser português é ser ecuménico, capaz de criar espaços para todos, sejam eles quem forem, tenham eles as características que tiverem. Não somos um povo com natural tendência para discriminar, para separar ou dividir os povos, as culturas ou as mentalidades. Ser português é ser ponto de encontro dos outros, de modo a que se sintam na própria casa ainda que estejam longe do seu lar originário. O português acolhe e recebe o estrangeiro ou o desconhecido. Por aqui passaram tantos povos e daqui se partiu ao encontro de tantos povos e tantas civilizações. Esse facto incontornável está-nos no sangue e revela-se em cada encontro com o outro.
4. O terceiro traço do nosso caráter é o amor à liberdade e à autonomia. O pior que pode ser feito a um português genuíno é amarrá-lo, privando-o da tão amada liberdade ou da capacidade para gerir o seu destino. Amamos a liberdade e a autodeterminação. A história de Portugal dá múltiplos testemunhos disso mesmo.
Ser livre é viver a grandeza de sentir como próprio o que se faz, pois quando somos coagidos a realizar algo o resultado da nossa ação já não pode ser sentido como obra nossa. Tem sempre a marca da autoridade que no-la impôs. Por outro lado, só a liberdade potencia as capacidades que trazemos dentro de nós. Enquanto livres, damos o melhor de nós próprios. Não deixando de ser vasos de barro, a nossa condição parece transfigurar-se sempre que ousa assumir livremente os compromissos que a nação lhe lega. Porque somos habitados por uma grandeza e uma força que, não sendo nossas, a nós pertencem.
5. Fernando Pessoa declama “Porque eu sou do tamanho do que vejo. E não do tamanho da minha altura” (Alberto Caeiro, in O Guardador do Rebanho, Poema VII). Aqui, Afonso Henriques focalizou o alvo, o horizonte onde está focado o olhar e a visão do português: nada menos que em Jesus Cristo Crucificado, no supremo e grandioso momento da Sua vida feita oferta de amor ao Pai para a salvação da humanidade. Nesse ato de infinita doação que transcende todas as medidas imagináveis é onde os descendentes dos gloriosos guerreiros da Batalha de Ourique tem os seus olhos centrados. E, por isso, nós vemos alto, nós vemos longe o que nos torna grandes, elevados, do tamanho da grandeza da entrega de Jesus na Cruz.
Intercedamos junto de Santiago para que a nossa contemplação do Mistério de Jesus Cristo nos ilumine como iluminou Afonso Henriques e sobre nós derrame a graça da coragem e da fé para defrontar e combater todas as adversidades da vida. Amen!