Decorrem hoje, dia 27 de setembro, as comemorações dos 210 anos da Batalha do Bussaco.
É um marco de extrema importância na história de Portugal porque, no contexto das Invasões Francesas, a vitória alimentou a determinação dos portugueses.

Também hoje Portugal necessita de tal determinação para enfrentar os desafios que tem perante si. Assim, assume de elevado significado, em pleno tempo de pandemia, esta celebração.
O ponto alto das celebrações foi a Missa campal no Bussaco, às 11h00, presidida pelo Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, D. Rui Valério.
Não obstante todas as contingências estiveram presentes uma centena de pessoas, além de entidades militares e civis. A Paróquia do Luso, na pessoa do seu pároco, dispensou para o efeito uma significativa colaboração.
Transcrevemos a homilia do prelado.

 

HOMILIA NA CELEBRAÇÃO BATALHA DO BUSSACO
XXVI Dom A

 

Caríssimos irmãos em Cristo

1. “Nas grandes batalhas da vida, o primeiro passo para a vitória é o desejo de vencer”, amava dizer Mahatma Gandhi. Certeiras palavras que se aplicam eloquentemente à Batalha do Bussaco, cujos ducentésimo décimo aniversário hoje evocamos.

De facto, o sucesso da Batalha do Bussaco não foi apenas o resultado do desejo de vencer. Consistiu num acontecimento que logo se tornou fonte de motivação e de força para que cada militar e a nação inteira prosseguissem a luta. A vitória dessa Batalha fomentou na alma dos nossos valorosos e destemidos soldados a determinação e a confiança na desejada vitória; os historiadores são concordes em referir o quanto elevou o moral das nossas tropas e alienou o do invasor francês. Indubitavelmente, selou os destinos dos atos sucessivos. Aqui ficou ratificado o desfecho vitorioso da campanha que envolveu Portugal e o empenhou até à medula na sua condição de Nação soberana a lutar pela sua autodeterminação.

2. Assim, podemos falar com alguma propriedade de um espírito de Bussaco, de uma mística aqui nascida que se reconhece no desejo interior e nacional de vencer, ao ponto de se constituir determinação inabalável e luz inextinguível de esperança. Neste sentido, aqui, deparamo-nos com uma profusão de otimismo que contrasta com os típicos tiques culturais de pessimistas inveterados que nos identificam como portugueses e que têm sido expressos em molduras existenciais como o conceito de saudade, ou em expressões culturais como o fado. Regressar ao Bussaco e recuar até 1810 conduz-nos ao encontro do espírito e da alma de Portugal, que é mais que uma geografia e mais do que uma terra: uma alma que aqui se plasmou e se encarnou nos sucessivos movimentos da Nação e do povo.

Hoje, podemos e devemos ousar mergulhar nesse espírito para perceber e descobrir qual o segredo dessa força e determinação.

2.1. Em primeiro lugar, o amor a Portugal. Visto como mãe e pai de quem nasce no seu território, Portugal é o berço acolhedor de cidadãos e homens livres. Amor forte devotado à Pátria foi esse o dos nossos militares que não hesitaram em aceitar o apoio dos ingleses. Esta aliança não nos humilhou porque inspirada pelo amor à Nação. Quando existe e onde existe amor, há nobreza, elevação, dignidade!

No Bussaco os combatentes lusos transformaram em ação a paixão por Portugal e demonstraram como é feita a reação dos portugueses quando são chamados a defenderem a sua Pátria. Este é dos principais valores dos portugueses de todos os tempos: o amor para com a sua terra. Nada toca e mobiliza tanto os portugueses como a intransigente e dedicada defesa da Pátria. Defendê-la, não é um impulso primário, mas, isso sim, um sentimento. E aqui impõe-se afirmar, em coro com a ciência, que os sentimentos são moldados pela formação e pela educação.

2.2. Em segundo lugar, o exército português, em cooperação com as tropas inglesas, materializou o sentimento de autonomia e liberdade. Ontem como hoje, as nossas Forças Armadas são a afirmação de que ainda há portugueses disponíveis a tudo fazer, a tudo dar pelo seu País. Tudo, até a própria vida. Por isso, com a sua postura, os Militares do passado como do presente testemunham o superior valor de Portugal como Padrão fundamental das opções, das escolhas e das ações realizadas.

2.3. Em terceiro lugar, vem o poder da harmonia e da fraternidade. Aqui, há 210 anos, qualquer pessoa era naturalmente conduzida a experimentar e a viver uma tríplice relação: antes de mais, com a natureza; depois, com Deus e com os outros.

Tal como hoje, também no passado ninguém ficou indiferente ao cenário deslumbrante e místico destes bosques magníficos. A beleza que provinha das paisagens tocou fundo no coração e na alma dos soldados. Só isso já era bastante para que um soldado se reencontrasse consigo e se sentisse impelido à harmonia.

Por outro lado, a presença aqui do convento dos carmelitas, ladeado por uma infindável plêiade de ermidas, dedicadas, cada uma, a um santo, ou a acontecimentos sagrados, fazia deste lugar um centro de oração e de comunhão com Deus. Para os soldados, que confiavam as suas vidas a Deus Todo-Poderoso e se consagravam à proteção de Maria, o Bussaco era também um santuário onde Deus habitava. E, pormenor interessante, o convento existente pertencia à Ordem Carmelita: ordem contemplativa que se dedicava ao serviço dos pobres. Fora para essa mesma Ordem que Nun´Álvares Pereira se havia retirado no final da sua heroica vida. Na grandeza dessa comunhão, os nossos soldados pressentiam também agora e aqui a presença do Condestável. Já estava em Deus, na plenitude da sua vida, mas como Deus está também aqui, então também o defensor de Portugal continua aqui com eles.

2.4. Por fim, era impossível que não se vivesse ali uma verdadeira fraternidade. A presença de soldados oriundos de outras nacionalidades fazia com que o Bussaco se transformasse num pequeno universo ecuménico. Também a abordagem ao outro, ao estrangeiro, se realizou com grande cordialidade e não de forma violenta, nem agressiva. As crónicas dão-nos conta de como o relacionamento entre portugueses e ingleses era respeitoso sem que alguém se sentisse superior ou inferior aos outros: todos remavam no mesmo sentido. Mas esta fraternidade foi ainda mais longe quando encontrámos um verdadeiro clima de conciliação aqui reinante. Dizem os historiadores que “Combates intermitentes continuaram até às 16:00, quando Massena mandou parar o ataque sem ter empenhado as suas reservas. Por seu lado, Wellington entendeu que não devia contra-atacar no vale.” Que vemos? Certamente, observa-se a prudente tática de não se empenharem a fundo todos os recursos militares de que dispunham, mas também um quê de reconciliação de uns com os outros. Esta perspetiva vem até reforçada quando nos chegaram notícias sobre o auxílio sanitário exercido pela equipa de médicos e enfermeiros do nosso Exército que não se limitou a socorrer os feridos das nossas fileiras. Na verdade, não descuidaram, nem abandonaram os do lado oposto, os franceses. O que revela a presença de um superior espírito de solidariedade, de entreajuda a pairar na atmosfera do Bussaco.

3. Ora, é a harmonia com a natureza, com Deus e com os outros que, como tão assertivamente tem proclamado o Papa Francisco, propicia o ambiente interior para que cada um se reencontre consigo, se conheça como indivíduo e como soldado integrante de uma companhia, de um batalhão… E aqui chegamos à famosa lição de Sun-Tzu resumida na sua Arte da Guerra: «Se conheces o teu inimigo e te conheces a ti mesmo, se tiveres cem combates a travar, cem vezes sairás vitorioso. Se ignoras o teu inimigo e te conheces a ti mesmo, as tuas chances de perder e de ganhar serão idênticas. Se ignoras ao mesmo tempo o teu inimigo e a ti mesmo, só contarás os teus combates por derrotas.» Bussaco oferece pois, um clima favorável e propício ao conhecimento profundo de si e dos outros: no silêncio dado pela natureza, na luz que a graça de Deus irradia no coração de cada um e na solidariedade que o encontro face a face com o outro estabelece. Aqui se reuniram as condições para o conhecimento que conduz à vitória nos combates.

4. Mas a nossa reflexão não estaria completa se não prestássemos a nossa atenção à Palavra que hoje escutámos e que nos permite ir mais em profundidade tanto na vida, como no evento que evocamos.

O evangelho (cf Mt 21, 28-32) apresenta uma curiosa parábola na qual aparece um Pai que dá aos seus dois filhos a mesma orientação: «Filho, vai trabalhar na vinha” (Mt 21, 28. 30). Porém, a resposta de cada um foi diferente: o primeiro respondeu que não ia, mas depois arrependeu-se e foi (cf v. 29). Já o segundo respondeu que ia, mas de facto não foi (cf v. 30). O evangelho retrata aqui a dicotomia entre as palavras e os atos. Visualiza-se uma rutura entre o dizer e o fazer. A ação não corresponde à palavra. Escutar este evangelho, no dia da batalha do Bussaco, leva-nos inevitavelmente a olhar para esses soldados franceses. Em teoria, eram os obreiros do espírito das luzes, os arautos dos ideais da Revolução francesa expressa na liberdade, fraternidade e igualdade — tudo palavras que enchem o olho e a alma. Mas, na prática, não passavam de invasores da terra alheia, ao serviço de um império megalómano, com o intuito de subjugar os povos e alargar o domínio da França. De facto, esta pretensão manifestava-se na ação concreta dos exércitos franceses, na delinquência dos seus gestos, no mais absoluto desrespeito por todos, espezinhando, destruindo tudo à sua passagem e violando as filhas do nosso povo. Como aquele segundo filho da parábola, também os franceses negavam, na prática, o ideal romântico e libertário do iluminismo.

Também hoje sucedem-se belos discursos, repletos de verdades insofismáveis, mas a prática desmente-os, não raras vezes. O pragmatismo da ação pouco se importa com os princípios superiores, com os valores éticos que os discursos proclamam.

Hoje, a nossa homenagem aos que serviram Portugal e particularmente aos que tombaram neste solo pátrio, vem também do facto dos heróis serem não só coerentes com o que diziam, mas detentores de uma só palavra pronunciada pelo verbo e concretizada na ação.

5. Também a primeira leitura (Ez 18, 25-28) contém uma desarmante atualidade: a justiça e o direito são o ponto de referência da história de uma pessoa e de uma nação. A sua não-prática torna até mesmo o homem mais virtuoso num condenado. Ao invés, a sua prática reabilita mesmo o mais miserável. A justiça e o direito são, pois, elementos determinantes da sorte e do destino de um povo. Por isso, esta concessão de Deus, esta possibilidade que Ele oferece de, através da prática da justiça e do direito, se poder contruir um país com futuro, revela a sua confiança no ser humano, pondo-lhe nas mãos a bússola para alcançar a felicidade e a grandeza humana e pátria. Deus acredita em nós e trata-nos como pessoas adultas a quem vem consignada a poderosa arma da responsabilidade. A execução do direito e da justiça exige um elevado grau de responsabilidade. Só quem alcançou um nível superior de maturidade está em condições de viver a justiça e o direito. Foram também estes os valores-padrão que estiveram em ação aqui no Bussaco.

Portugal, mais do que em qualquer outra época da sua história, está hoje desafiado a meditar seriamente nas palavras de Santo Agostinho: “Se se põe de parte o Direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de salteadores?” (De civitate Dei, IV, 4, 1).

Invoquemos a intercessão de São Jorge e São Nuno de Santa Maria: protejam o Exército, Portugal e os portugueses. Amen!

+ Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança