Só onde existe memória, também existe esperança. É o sentido do passado que sustenta a construção do futuro”, escrevia S. João Paulo II

Comemorações do Dia do Combatente (EMGFA)

E hoje, acolhemos da história a magnitude dos atos heroicos dos Combatentes de todos os tempos;do testemunho do Soldado Desconhecido; e também dos que, na longínqua La Lys, no sul da Flandres, suportam o presente e projetam o futuro. Celebramos acontecimentos, mas igualmente atos e sobretudo pessoas. Em homenagem, em reconhecimento, mas também em oração e louvor. Por isso, estão connosco todos os Combatentes que, no Campo da Honra, derramaram a sua vida por um mundo livre e mais justo; ofereceram a sua vida por todos nós. A nossa atitude é certamente de reconhecimento,mas também de admiração, porque todo o Combatente sabe que em todas as batalhas há vencedores e vencidos e o simples facto de asenfrentar, na incerteza do desfecho, revela carácter e grandeza; ao mesmo tempo está consciente de que o conquistado triunfo nuncalhe pertence, torna-se património da Pátria e da humanidade. Ele apenas é um humilde servo que alcança o êxito que a todos pertence.

2. Os exegetas notaram que S. Marcos, na redação do seu evangelho, ao narrar a Paixão e Morte de Jesus, não usou praticamente palavras próprias,de sua lavra, mas serviu-se abundantemente dasEscrituras. estas estavam à altura da grandeza e da importância salvífica dos acontecimentos relatados.

Também eu, perante os atos heroicos dos nossos Combatentes e das vicissitudes humanas da Batalha de La Lys, confesso que me sinto como S. Marcos: sem palavras à altura dos seus feitos,e desse acontecimento incontornável no devir da nossa história. Por isso, me socorro da Palavra divina que escutámos e que, providencialmente, constitui uma preciosa gramática do que celebramos.

“Eu era como manso cordeiro levado ao matadouro e ignorava a conjura que tramavam contra mim”, afirma o Servo Sofredor na profecia de Jeremias. Um cordeiro conduzido pela vontade fraternal de ser instrumento dasalvação dos outros mais do que de si próprio. Age com aquela humildade própria de quem tem a consciência de que na vida nem sempre temos de nos afadigar para demonstrar a nossa superioridade. Que podemos e devemos confiarnos outros… Nos campos onde se trava o destino decisivo das nações e da humanidade, cada Combatente é, paradoxalmente, um pouco como esse Manso Cordeiro que vive na disponibilidade de oferecer a sua própria vida e fazer-se doação e entrega pela Pátria, pronto a derramar o sangue pelo seu povo.

Manso cordeiro porque imbuído da mais nobre confiança n’Aquele que é o nosso escudo e protetor, tanto nas trincheiras ou nos camposabertos das batalhas, como nas planícies e veredas da vida onde nos empenhamos a combater o não sentido da existência, o ódio e o tédio que porventura assolem a alma do ser humano, corroendo o seu incomensurável valor.Iluminados pela luz do seu Amor recebemos alento para defrontar o mal, para vencer o que denigre o ser humano e restaurar a grandeza da sua dignidade. Sim, de Deus, Pai de Bondade e Rico em misericórdia, revelado em Jesus Cristo, recebemos o convite e a força para não pactuar com nenhum atropelo à vida de nenhumamulher, nem de nenhum homem.

Manso Cordeiro também pela capacidade de confiar no ser humano, a ponto de esperar dele uma serena gratidão e uma operosa solidariedade na entrega aos demais.

3. Mas o Cordeiro é, sobretudo, a prefiguração do Cristo Ressuscitado, vencedor da Morte e do pecado. Ele alcançou a soberania da Ressurreição através do sacrifício da sua vida. Para todas as batalhas e combates constitui ponto assente que um gesto de bravura não se torna por si só um ato de perpétua recordação; só o que é feito e vivido sob a perspetiva dagratuidade e da total oferta de si transcende a barreira da temporalidade e penetra na memória eterna de Deus, bem como na perene lembrança da história. Por isso, hoje, aqui evocamos tanto as glórias dos Combatentes do passado, como os atos heroicos dos Combatentes do presente.
4. Como nas trincheiras de La Lys, assim em todo o campo da honra, tomamos realmente consciência da nossa exata medida. Talvez não exista outro momento que represente tão cabaloportunidade de conhecer a nossa verdadeira dimensão. O povo afirma que Deus escreve direito por linhas tortas. E, em certa medida, tem razão. La Lys, como todo o campo onde sucedam os embates da história e dos homens,desfaz toda a pretensão vazia, toda a exaltação sobranceira, todas as certezas em que temos fundado a nossa vida coletiva. Em vez disso, entre lágrimas e prantos, aprendemos a humildade de quem se sabe dependente dos outros e, em última instância, do Outro a quem devemos a existência e de quem esperamos a plenitude da vida.

É igualmente verdade que o caráter das pessoas se reconhece sobretudo em momentos de aflição, quando a própria existência é abalada pelas derrocadas com que a vida nos vai surpreendendo. É por isso que a guerra, com toda a desumanidade que encerra, pode revelaras maiores vilanias, mas também os atos mais heroicos e sublimes do comportamento humano. Tanto a face obscura como a luminosa do ser humano se manifestam em tempos de crise severa. Os muitos que derramaram sobre os campos lamacentos de La Lys como em todos os campos da honra o seu sangue e ai verteram a própria vida foram heroicos combatentes, tendosempre travado essas Batalhas não apenas numa, mas em três frentes distintas.

a. A mais evidente das frentes é, sem dúvida, a bélica. Defrontando a incerteza do desfecho de batalhas atrozes, o Combatente iluminado pelo vigor do patriotismo e pela força da fé não hesita em se identificar com o pequeno David face ao gigante Golias, e certamente procura configurar-se a Cristo que não vacila face à crueldade da Cruz do Calvário. E é exatamente nessa disponibilidade ao sacrifícioque se torna evidente a corajosa bravura e a abnegada entrega destes homens, cuja glória reside no facto de, ancorados à rocha segura que é Deus, permanecem firmes na dureza da peleja, quando, por vezes, se torna claro umdesenlace porventura letal.
b. Mas todo o Combatente, no desenrolar da tormentosa batalha, não se confronta apenascom um inimigo externo. Todos têm de enfrentar os seus demónios interiores. Dois deles, constituem as outras duas frentes com que se veem obrigados a confrontar-se: a descrença e o desespero.

Descrer de si próprios, do seu valor, de toda a possibilidade que o futuro possa oferecer reduz o ser humano a um mero objeto sem dignidade. Quantas batalhas perdemos na vida por não acreditarmos em nós mesmos, nas nossas capacidades, no nosso valor enquanto pessoas? Porém, todos os nossos heroicos combatentes desde os Campos de Ourique, aLa Lys, passando por África, Asia e América, até aos atuais campos da República Centro Africana, do Afeganistão, ou do Iraque, ou Mali, ou no Golfo da Guiné sempre acreditaram e acreditam até ao fim e esse éum dos mais honrosos aspetos da sua glória. Decerto, para todos chega o momento de se perguntar onde está Deus misericordioso e bondoso, esse Deus protetor, esse guardião do ser humano? Muitas das respostas terão sucumbido com eles no terror do campo de batalha. Mas o facto de lá terem permanecido e permanecerem até ao limite das suas forças diz bastante acerca da sua crença em si próprios e da sua fé em Deus que, apesar das aparências, jamais abandona o ser humano quando este tropeça junto ao abismo da morte.

c. À terceira frente de batalha — a do desespero —, responderam e respondem os nossos soldados com a seiva da esperança, que corria e corre nas veias da alma com a mesma prontidão com que pronunciam o seu “sim” à chamada para o serviço. E se a esperança projeta o ser humano no futuro e o faz confiar num amanhã possível e radioso, como foi e ainda é possível, perante as adversidades, manter essa chama acesa?

É possível graças à convicção de que a existência de cada um faz parte de um todo bem maior do que o indivíduo e de que o sacrifício da própria vida pode fazer sentido, quando há futuro para os outros em relação a quem se foi solidário até à dádiva da própria vida. E os valorosos soldados sabem que Portugal há-de permanecer para lá da sua morte e, eventualmente, graças à sua morte. A esperança, toda a esperança tem um carater transcendente porque orientada sempre para um futuro absoluto, não efémero ou transitório, que só em Deus encontra abrigo definitivo. Para lá da morte, ainda cintila uma pequena luz que aos olhos da fé é dado apenas entrever.

E é assim que, parafraseando Camões, os nossos Combatentes e Soldados desconhecidos, se foram da lei da morte libertando e podem ser recordados pelos seus concidadãos por causa da valentia, da coragem, da confiança e da esperança que a sua persistência tão eloquentemente manifestou.

Qua Nossa Senhora da Vitória nos proteja, acompanhe e conduza pelas estradas do serviço e da santidade. Amen!

+ Rui Valério

Comemorações do Dia do Combatente (EMGFA)

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