E hoje, acolhemos da história a magnitude dos atos heroicos dos Combatentes de todos os tempos;do testemunho do Soldado Desconhecido; e também dos que, na longínqua La Lys, no sul da Flandres, suportam o presente e projetam o futuro. Celebramos acontecimentos, mas igualmente atos e sobretudo pessoas. Em homenagem, em reconhecimento, mas também em oração e louvor. Por isso, estão connosco todos os Combatentes que, no Campo da Honra, derramaram a sua vida por um mundo livre e mais justo; ofereceram a sua vida por todos nós. A nossa atitude é certamente de reconhecimento,mas também de admiração, porque todo o Combatente sabe que em todas as batalhas há vencedores e vencidos e o simples facto de asenfrentar, na incerteza do desfecho, já revela carácter e grandeza; ao mesmo tempo está consciente de que o conquistado triunfo nuncalhe pertence, torna-se património da Pátria e da humanidade. Ele apenas é um humilde servo que alcança o êxito que a todos pertence.
2. Os exegetas notaram que S. Marcos, na redação do seu evangelho, ao narrar a Paixão e Morte de Jesus, não usou praticamente palavras próprias,de sua lavra, mas serviu-se abundantemente dasEscrituras. Só estas estavam à altura da grandeza e da importância salvífica dos acontecimentos relatados.
Também eu, perante os atos heroicos dos nossos Combatentes e das vicissitudes humanas da Batalha de La Lys, confesso que me sinto como S. Marcos: sem palavras à altura dos seus feitos,e desse acontecimento incontornável no devir da nossa história. Por isso, me socorro da Palavra divina que escutámos e que, providencialmente, constitui uma preciosa gramática do que celebramos.
“Eu era como manso cordeiro levado ao matadouro e ignorava a conjura que tramavam contra mim”, afirma o Servo Sofredor na profecia de Jeremias. Um cordeiro conduzido pela vontade fraternal de ser instrumento dasalvação dos outros mais do que de si próprio. Age com aquela humildade própria de quem tem a consciência de que na vida nem sempre temos de nos afadigar para demonstrar a nossa superioridade. Que podemos e devemos confiarnos outros… Nos campos onde se trava o destino decisivo das nações e da humanidade, cada Combatente é, paradoxalmente, um pouco como esse Manso Cordeiro que vive na disponibilidade de oferecer a sua própria vida e fazer-se doação e entrega pela Pátria, pronto a derramar o sangue pelo seu povo.
Manso cordeiro porque imbuído da mais nobre confiança n’Aquele que é o nosso escudo e protetor, tanto nas trincheiras ou nos camposabertos das batalhas, como nas planícies e veredas da vida onde nos empenhamos a combater o não sentido da existência, o ódio e o tédio que porventura assolem a alma do ser humano, corroendo o seu incomensurável valor.Iluminados pela luz do seu Amor recebemos alento para defrontar o mal, para vencer o que denigre o ser humano e restaurar a grandeza da sua dignidade. Sim, de Deus, Pai de Bondade e Rico em misericórdia, revelado em Jesus Cristo, recebemos o convite e a força para não pactuar com nenhum atropelo à vida de nenhumamulher, nem de nenhum homem.
Manso Cordeiro também pela capacidade de confiar no ser humano, a ponto de esperar dele uma serena gratidão e uma operosa solidariedade na entrega aos demais.
É igualmente verdade que o caráter das pessoas se reconhece sobretudo em momentos de aflição, quando a própria existência é abalada pelas derrocadas com que a vida nos vai surpreendendo. É por isso que a guerra, com toda a desumanidade que encerra, pode revelaras maiores vilanias, mas também os atos mais heroicos e sublimes do comportamento humano. Tanto a face obscura como a luminosa do ser humano se manifestam em tempos de crise severa. Os muitos que derramaram sobre os campos lamacentos de La Lys como em todos os campos da honra o seu sangue e ai verteram a própria vida foram heroicos combatentes, tendosempre travado essas Batalhas não apenas numa, mas em três frentes distintas.
Descrer de si próprios, do seu valor, de toda a possibilidade que o futuro possa oferecer reduz o ser humano a um mero objeto sem dignidade. Quantas batalhas perdemos na vida por não acreditarmos em nós mesmos, nas nossas capacidades, no nosso valor enquanto pessoas? Porém, todos os nossos heroicos combatentes desde os Campos de Ourique, aLa Lys, passando por África, Asia e América, até aos atuais campos da República Centro Africana, do Afeganistão, ou do Iraque, ou Mali, ou no Golfo da Guiné sempre acreditaram e acreditam até ao fim e esse éum dos mais honrosos aspetos da sua glória. Decerto, para todos chega o momento de se perguntar “onde está Deus misericordioso e bondoso, esse Deus protetor, esse guardião do ser humano?” Muitas das respostas terão sucumbido com eles no terror do campo de batalha. Mas o facto de lá terem permanecido e permanecerem até ao limite das suas forças diz bastante acerca da sua crença em si próprios e da sua fé em Deus que, apesar das aparências, jamais abandona o ser humano quando este tropeça junto ao abismo da morte.
É possível graças à convicção de que a existência de cada um faz parte de um todo bem maior do que o indivíduo e de que o sacrifício da própria vida pode fazer sentido, quando há futuro para os outros em relação a quem se foi solidário até à dádiva da própria vida. E os valorosos soldados sabem que Portugal há-de permanecer para lá da sua morte e, eventualmente, graças à sua morte. A esperança, toda a esperança tem um carater transcendente porque orientada sempre para um futuro absoluto, não efémero ou transitório, que só em Deus encontra abrigo definitivo. Para lá da morte, ainda cintila uma pequena luz que aos olhos da fé é dado apenas entrever.
E é assim que, parafraseando Camões, os nossos Combatentes e Soldados desconhecidos, “se foram da lei da morte libertando e podem ser recordados pelos seus concidadãos por causa da valentia, da coragem, da confiança e da esperança que a sua persistência tão eloquentemente manifestou.”
Qua Nossa Senhora da Vitória nos proteja, acompanhe e conduza pelas estradas do serviço e da santidade. Amen!
+ Rui Valério