Este ano, a 8 de Dezembro, D. Manuel Linda presidiu à Solenidade da Imaculada Conceição na igreja de santo António dos Portugueses em Roma. Apresenta-se a homilia aí pronunciada.
Imaculada Conceição
Santo António do Portugueses (Roma), 2015
No léxico católico, a palavra que hoje mais se pronuncia será, porventura, o termo “porta”. Referimo-nos, evidentemente, à abertura da «porta santa», na basílica de S. Pedro, início de um Jubileu de Misericórdia, ano de graça e de conversão salvífica. Mas, curiosamente, a ladainha de Nossa Senhora também a designa por “Porta do Céu”. Motivo, então, para nos determos, um pouco nesta expressão.
A noção de «porta» transcende a mera referência ao equipamento das casas e torna-se uma verdadeira metáfora. Se estiver aberta ou fechada, a porta permite ou impede a passagem. E assinala o limite entre dois espaços: o de fora e o de dentro, o de hoje e de amanhã, o profano e o sagrado. Mas também os põe em contacto, também faz «serventia» e abolição dos limites. É neste sentido que Jesus Cristo declara, numa conhecida passagem evangélica: “Eu sou a porta. Aquele que passar por mim será salvo” (Jo 10, 7)
“Aquele que passar por mim”. Para entrar em contacto com o mistério do “verdadeiro Deus” e para ir comunicar alegremente a todos que Esse mesmo é o “verdadeiro homem”. Então, esta passagem é uma entrada e uma saída. Não no sentido de abandono. Mas no de uma circularidade que se move entre contemplação e missão, entre divino e humano.
É o que acontece com as portas dos nossos templos. Se a «porta santa» exprime, visualmente, a necessidade de darmos um passo para nos aproximarmos da misericórdia de Deus, também se abre novamente para, com a mesma obrigação, levarmos ao mundo a certeza de que a ternura de Deus é a última palavra da história e aquela que a humanidade mais necessita de ouvir.
Mas se isto pode parecer abstracto, na Imaculada Conceição encontra-se a exemplaridade concreta. Ela é a “porta do céu” para que o homem não se afunde no lodo da existência, mas experimente a mão de Deus que o sustem; é a abertura por onde os nossos rogos chegam ao Alto, evitando tornarmo-nos animais entre os animais; é o acesso à segurança de um porto de abrigo que fornece respostas à pergunta terrível sobre o sentido da vida. E, da parte de Deus, é a “porta do céu” na medida em que o sagrado toca o profano e lhe concede valor salvífico, o eterno insere-se na história e faz dela história de salvação e um Redentor congrega em novo povo uma humanidade que se dirige para a meta do Reino de Deus. É a porta que o Eterno escolhe, no seu plano, para que a luz divina inunde as trevas deste mundo, os gritos da escravidão sejam substituídos pelo sorriso do encanto e os encontrões dos que não sabiam caminhar conjuntamente dêem lugar à fraternidade da grande família universal.
Esta porta, que é a Mãe de Deus e Mãe da Igreja, não range de violência, não ostenta ferragens que magoem, não apresenta fissuras de fealdade. Pelo contrário: é beleza que cativa, simpatia sem limites, ternura inesgotável. É assim que a retratam os grandes artistas. E é assim que a podemos designar por «Imaculada Conceição». A sua integridade manifesta-se no conjunto de valores morais mais apreciados no mundo das relações humanas: agradabilidade, simpatia, beleza, delicadeza, suavidade, ternura… O que a torna tanto mais atractiva quanto pensamos no desagradável que são os opostos a esses valores: aspereza, dureza, má educação, malvadez, violência… Estes repugnam; os outros, aproximam.
O nosso mundo precisa de colocar aqui o seu olhar. Urgentemente. O que se passa à nossa volta demonstra a premência deste reequacionar o horizonte para onde nos dirigimos. O que observamos, de facto, são conflitos sem fim: de nós connosco mesmos, dos membros na sua família, dos interesses contraditórios no mundo do trabalho e da organização política, na forte conflitualidade e violência social e, agora, nesta “terceira guerra mundial em folhetins”, para usar a expressão do Papa Francisco, que um grupo de fanáticos, anquilosados no tempo, está a tentar levar a todo o planeta.
Mas esta violência estrutural, desde a que exercemos sobre nós mesmos e sobre a natureza até à do terrorismo, pode suplantar-se. Sim, a ternura é possível. A ternura de uma mãe, seja a humana, seja Maria de Nazaré, não é apenas uma possibilidade, mas é um dado experimentado por muitos de nós. É esta a «profissão de fé» deste Jubileu da Misericórdia: o nosso coração, acolhendo a ternura de Deus, torna-se mais sensível e ternurento para edificar a nova história.
É aqui que a Senhora da Conceição é verdadeiro protótipo. Como ela, somos chamados a uma necessária opção básica: o lugar, a posição, em que nos colocamos. A primeira leitura desta Missa dizia que Eva se colocou do lado do mal, da serpente. Conhecemos os resultados. O Evangelho, pelo contrário, mostra Maria de Nazaré colocada do lado de Deus e da humanidade: o «sim» que diz a Deus é em benefício de todos, é salvífico. Por isso, são Paulo, na segunda leitura, fala da “bênção da plenitude”: por intermédio de Maria, recebemos graças sobre graças, bênçãos sobre bênçãos. O que só pode gerar a atitude perfeitamente humana: dobrar os joelhos, para cantar “um hino de louvor à sua glória”.
Caros cristãos, esta celebração da Imaculada, Padroeira de Portugal, acontece na igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, no dia da abertura do Jubileu da Misericórdia. Para mim, esta igreja associa-se à beleza das coisas sublimes, à sinfonia e à harmonia da música, à excelência de um coração que bate ao ritmo nacional. Que tudo isso nos disponha a modelarmos o coração pela ternura de Nossa Senhora, verdadeira «porta santa» ou «porta do céu» por onde Deus eleva o homem à categoria de sua “imagem e semelhança” e a humanidade, no seu todo, toca o fermento da divinização.