No seguimento de uma tradição com bem mais de quatrocentos anos, o povo cristão de Lisboa, de forma multitudinária, dirige hoje o seu pensamento para a Mãe de Jesus Cristo e Mãe da Igreja, a quem designa com o significativo título de Nossa Senhora da Saúde. Celebra esta festa em primavera florida e em contexto de tempo pascal, precisamente quando a liturgia nos apresenta a figura do Ressuscitado como aquele que se preocupa tanto connosco como um Bom Pastor se preocupa com o seu rebanho. Que nos diz isto para nós crentes e para este tempo que nos é dado viver?

A grande afirmação da fé cristã é aquela que Pedro prega na primeira leitura que escutamos: que o Crucificado, objecto de desprezo por parte da multidão que d’Ele escarneceu e a quem injustamente condenou, foi por Deus exaltado e Se tornou, na sua Ressurreição, Senhor e Cristo, isto é, o Ungido de Deus, o Messias e Salvador. E que a salvação consiste precisamente na aceitação desse dado: no acreditar, dar assentimento ou passar a viver com esta certeza. Foi o que fizeram aquelas cerca de três mil pessoas que pediram o baptismo. E é o que fazemos nós que professamos que só Jesus é o Senhor, e que, mediante o baptismo e o estilo de vida crente, nos insere na Igreja, essa comunidade de salvação que vive a união entre os seus membros e com o seu Senhor e Guia, Ele que não se preocupa somente com os que lhe são fiéis, mas inclusivamente vai à nossa procura sempre que nos desgarramos e perdemos no deserto da vida. É que Ele não desiste de nós, mesmo que nós desistamos d’Ele. E por isso e para isso, associa a Si homens como Pedro e como os outros Apóstolos e discípulos. Associa-os para a nobre tarefa de trazer à vida e à unidade quantos precisam de ser congregados no grupo da sua intimidade ou nesse Corpo, disperso por toda a terra, de quem Ele é a Cabeça: são os portadores do sacerdócio ministerial, hoje mais urgentes do que nunca, e para cujo despertar vocacional a Igreja nos alerta neste dia do Bom Pastor.

 

Mas este Salvador e Messias não é um simples anjo caído do céu: é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. É o homem que foi dado à luz e nasceu como um simples mortal, veio de Nazaré e participou em tudo da nossa natureza humana, excepto no pecado. O homem real filho de uma mãe real. É aqui que se insere a grandeza e o privilégio único de Nossa Senhora: o mistério da nossa salvação passa, forçosamente, por Maria de Nazaré, Aquela que O trouxe ao seio de uma humanidade carente e que nós, aqui e agora, veneramos como Nossa Senhora da Saúde. Mas, o que é a saúde? Habitualmente, reduzimo-la à célebre noção proposta pela Organização Mundial da Saúde: um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença. Esta definição já diz alguma coisa, mas não diz tudo. A saúde é uma realidade ainda mais complexa e, porventura, não estará completa se lhe faltarem as dimensões espiritual e religiosa.

 

A grande convicção que perpassa pela mente dos cristãos é que só Jesus Cristo é a salvação do homem e do mundo. Ser «salvo», encontrar a «salvação» foi sempre a grande ânsia humana. Neste nosso tempo de acentuada crise de civilização, de globalização do terrorismo e de outras negatividades, o tema volta a colocar-se com especial acuidade. Há quem tenha caído no desânimo e não creia em na possibilidade da salvação, como escreve um notável pensador: “Outrora, havia as religiões de salvação: o cristianismo e o marxismo ofereciam uma esperança de resgate ou de redenção para o homem. Agora é preciso anunciar a má-nova, o anti-evangelho: «Não há nenhuma salvação»” (Edgar Morin, Pour sortir du xxe siécle).

 

Mas a noção de salvação coloca-se bem ao centro da perspectiva cristã, tal como se professa no Credo: “Por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus…”. Por isso, ao contrário de tantos cépticos, nós dizemos que há, efectivamente, salvação. Salvação que, pela negativa, não coincide com aquilo que as massas e a mentalidade dominante julgam: o poder, o ter, o dominar, o gozar, etc. Mas que é, pela positiva, a verdade de se sentir salvo no Amor e pelo Amor, de se experimentar valioso aos olhos de Deus e possuidor de um destino final bom, não obstante o pecado e todo o mal no mundo. Aliás, a palavra «salvação», proveniente de um étimo indo-europeu donde vieram os radicais latinos sanare e salvare (curar e salvar) faz referência a um mundo conceptual que tem a ver com saúde, são, sadio, saudável, mas também com inteireza, integridade, fortaleza, harmonia. Referida à pessoa, ser de divisões, de pecado e de morte, indica uma dinâmica e uma preocupação: a necessidade de completar um ser inacabado. Consiste na redenção de tudo o que é eticamente negativo, degradante e mau, daquilo que não ajuda ou até impede o homem de atingir o máximo das suas possibilidades materiais e espirituais; na libertação da tirania do mal e certeza (virtude da esperança) da vitória definitiva do bem; na redenção da prepotência da morte, como o maior sem-sentido, porque somos chamados à plenitude da eternidade gozosa com Deus.

 

Caros cristãos que participais nesta celebração que reactualiza o mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus Cristo, com o pensamento n’Aquela que O trouxe à luz e O deu à humanidade como sua salvação, Nossa Senhora da Saúde, convido-vos a fazer a descoberta do sentido da história à base desta noção de salvação: não estamos sós nem abandonados. O mundo tem à sua frente um destino feliz, um porto de abrigo, pois Jesus garante-nos a salvação e projecta-nos para o Reino de Deus que é liberdade, justiça, paz, amor, fraternidade e todas as outras boas qualidades e não caos, destruição ou sem-sentido. É esta a garantia da esperança ou do optimismo cristão. Porém, não tentemos a Deus: não esperemos que seja Ele a garantir-nos o que nós podemos e devemos fazer: um empenho muito forte e comprometido junto dos nossos irmãos que sofrem qualquer carência, particularmente o insuportável mal da solidão, o terrível infortúnio do abandono, a amargura da falta de amor, a tribulação da fome e da pobreza, a desventura da carência da saúde, particularmente quando ela se poderia recuperar.

 

Que Nossa Senhora da Saúde, a Mãe do manto largo para nele nos abrigar, nos alcance aquilo que só por nós não podemos obter e nos conceda o dom da força de vontade e da generosidade para nos pormos ao serviço dos outros como actualização da grande e definitiva salvação operada em Jesus Cristo.

 

Manuel Linda