Reflexão do 2º domingo da Páscoa 2020
Domingo da Divina Misericórdia

Está a ser tudo tão repentino, tão incontrolável, tão imprevisível… A comunicação não é fácil… As previsões indefinidas… Não estamos habituados a cancelar tantos eventos, a ter planos em suspenso, a perceber que os comandos da vida nos escapam… Há algo de novo para além do vírus: a simples constatação de que não somos autossuficientes, de que há muito que nos ultrapassa, de que não temos o domínio sobre tudo, nem sequer o controlo sobre nós, de que os outros tanto podem ser solidários como colocar-nos em perigo, de que as estruturas e recursos têm limites, de que a natureza surpreende… Há algo de novo que exige reflexão, recolhimento, ponderação, humildade.

Entramos num vórtice de tal ordem que parece que a vida precisa de ser recomeçada. É tudo tão atípico. Tantas certezas de diferentes âmbitos do saber postos em causa. Tantos estudos científicos aclamados e reclamados como evidência há semanas, nas mais prestigiadas plataformas de publicações, carecem hoje de revisão profunda. Tanta necessidade de parar, de se fechar em casa, de rever comportamentos e hábitos… Tanta importância dada ao distanciamento e ao confinamento… o inimigo está no meio de nós… enquanto o Evangelho narra que Jesus se colocou no meio dos discípulos….

A consciência da fragilidade, a crueza da realidade, a dificuldade do controlo das variáveis espalha a insegurança, o receio, a incredulidade. Será possível? Teremos andado a apostar numa cultura do fiasco? Se tivéssemos estado fora deste planeta nos últimos 4 meses talvez também nos fosse difícil acreditar sem ver e sem tocar a nova realidade, o emergir de uma nova forma de transformar o caos em cosmos.

O Evangelho de hoje fala dos apóstolos reunidos num “entardecer do dia”, com “as portas fechadas”, com “medo”. Estavam confinados, tomados pela insegurança, focados na incredulidade esmagadora, duvidosos do investimento feito em Jesus Cristo durante três anos. Não se davam conta de que estava a emergir uma nova era, uma nova época, uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova vida, uma nova criação, novos padrões de entendimento, de preocupação, de solidariedade, de comunidade…

  1. “Veio Jesus, colocou-se no meio deles”.

Jesus não se colocou só entre eles, mas no “meio deles”. Tal como Jesus supera as leis da física em relação às “portas fechadas”, também permeia os corações empedernidos e as mentes fossilizadas. Jesus coloca-se não só como “centro” da comunidade, mas também como “centro” de cada pessoa: “no meio”. Continuamos a ser cada um de nós, mas com uma referência Cristológica no âmago, com um núcleo que unifica, com uma autenticidade geradora de comunhão, com o Amor divino que nos ressuscita para enfrentar as vicissitudes da vida.

Ter Jesus “no meio”, “ao centro”, “no interior” é determinante para que o ser humano manifeste toda a sua potencialidade, toda a sua plenitude. A presença de Jesus “no meio” faz vencer o medo, abordar a hostilidade do mundo, organizar a comunidade, desenvolver o saber, dar origem a uma nova criação. Jesus no centro do nosso ser e do nosso estar irmana-nos e faz-nos filhos de Deus.

  • “…mostrou-lhes as mãos e o lado…”.

São as marcas da paixão e da morte ressuscitadas. A Ressurreição não é uma operação de cosmética, nem um jogo de computador que se recomeça, quando não fomos suficientemente hábeis passar ao nível seguinte. Jesus Cristo mostra à comunidade as marcas da doação, da entrega, da fidelidade à missão, da obediência ao Amor.

A vida tem obstáculos, exige disciplina, requer esforço, confronta-se com adversidades, lida com maldades, enfrenta os inopinados… sempre movidos pela graça, pelo sonho, pela alegria, pela bondade, pela construção da beleza, pela vida em abundância.

Claro que ficam marcas, claro que ficam cicatrizes, claro que ficam rugas, claro que ficam relevos mais ou menos profundos… mas é tudo luminoso… é tudo ressuscitado para sermos agentes de paz e de segurança.

  • “A paz esteja convosco”.

A harmonia, a serenidade, a confiança, a esperança, a vida plena esteja em ti. “A paz esteja convosco” é sinónimo de “colocou-se no meio deles”. Jesus, o Amor encarnado, o Amor derramado pela salvação de cada mulher e de cada homem traz a reconciliação, a paz a vitória sobre todo o tipo de morte, sobre toda a opressão, sobre todas as vicissitudes do presente ou do passado, para que cada um de nós não tenha medo de construir o presente e o futuro no Amor Verdadeiro, isto é, em Deus.

A paz, o sentir-se bem consigo próprio, a vivência da reconciliação, o conhecimento de si, a aceitação na humildade, a experiência profunda da graça, é condição necessária para se viver segundo o Espírito de Deus.

  • “Assim como o Pai me enviou também eu vos envio a vós”. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo»”.

Ao acolher Jesus no meio de nós, ao percebermos que ele Ressuscita com a identidade da doação e que continua a dar-se a nós para sermos envolvidos pela paz e pela serenidade… somos enviados, tal como Jesus, para a doação. Não somos enviados de forma desgarrada, individualista, desagregada. Somos enviados com o Espírito Santo, o Espírito do Amor, o Espírito de Deus, o Espírito da comunhão e da comunidade que se doa entre si. O Espírito Santo é uma força multifacetada, amorosa, de uma nova criação que (re)descobre caminhos novos e já conhecidos para transformar, para desenvolver, para fazer progredir, para criar, para comunicar, para formar comunidade. O Espírito é uma energia que nos torna peregrinos da Casa do Pai, numa doação mútua constante, tornando-nos mais competentes e responsáveis na vida e, concomitantemente, desencadeando mudanças benéficas na nossa relação com os outros e com os contextos em que se nos é dado trabalhar e viver. Sim, porque o Espírito Santo também nos ilumina para cuidar da casa comum que é o lugar da comunidade humana, antes de chegar à comunhão dos santos.

  • “Àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes serão retidos”.

Doar-se é solidariedade, é empatia, é debruçar-se sobre as feridas e misérias dos outros com a generosidade e a magnanimidade de quem eleva, de quem promove, de quem cura, de quem dignifica, de quem quer que o outro brilhe e manifeste o melhor de si.

A entrega à missão cristã segue as pegadas de Jesus, a abordagem de Jesus, os gestos de Jesus. O Espírito Santo é o amor constantemente refletido, que faz entender e aprofundar, ao longo da vida e da história, aquilo onde é possível ir mais longe, conhecer melhor, desenvolver mais, para servir com mais abundância e qualidade o bem comum.

Os gestos de misericórdia que cada um conseguir levar à prática abrirão janelas de esperança e portas de luz para os que caíram nas trevas do infortúnio, das tentações, dos desequilíbrios. Os gestos que, por alguma razão ou falta dela, omitires, recusares, desleixares… não elevarão a humanidade.

Por isso, o Espírito Santo é também um apelo gritante à responsabilidade de cada crente: temos de estar à altura de responder pelos dons que recebemos para cumprir a missão; se não fizermos a nossa parte ela ficará por fazer; Cristo Ressuscitado conta com a doação, com a misericórdia de cada um de nós em Seu nome.

  1. Tomé estava fora. Se não vir, se não tocar… não acreditarei.

Todos temos um pouco de Tomé e, em certos momentos da vida, temos muito de Tomé. O nosso sistema de defesa, os nossos medos, os nossos juízos sobre o desempenho dos outros, os nossos dilemas interiores, muitas vezes impede de aderir, de acreditar, de confiar. Tomé não faz caso do testemunho da comunidade que lhe diz: “vimos o Senhor”; nem percebe os sinais de alegria, de esperança, de vida nova que a comunidade expressa. Parece até pretender um briefing especial, uma demonstração particular do Cristo Ressuscitado. Nós, por vezes, também passamos por pretensões semelhantes.

E Jesus acede. Oito dias depois, estando Tomé na comunidade, Jesus, uma vez mais, vence as leis da física, coloca-se no meio deles, dá-lhes shalom, e dirige-se a Tomé para que ele inspecione as marcas da dádiva, da identidade de Cristo. Com efeito é na comunidade, no encontro com o amor fraterno, na solidariedade, na construção e na luta por causas de vida que vemos e tocamos o Cristo Ressuscitado; não só experimentamos a comoção, mas aderimos com o coração e com a mente à Ressurreição. É na comunidade que se experimenta a aceitação e o perdão, que se escuta e reza a Palavra, que se partilha o pão e a vida, que se é tocado e se toca o Ressuscitado.

Somos chamados a aderir a Cristo Ressuscitado, a viver na serenidade de Cristo Ressuscitado, a testemunhar Cristo Ressuscitado, construindo comunidades que se doam, que se perdoam, que são misericordiosas, que lutam juntas pela vida com mais qualidade. Claro que há maldades a vencer, claro que ficam as marcas da luta, mas a realização de cada um, a Ressurreição de cada um de nós com Cristo é uma certeza.