Predestinados a sermos imagem de Jesus (cf Rom 8, 29)

 

Os textos bíblicos proclamados falam-nos da misteriosa intervenção de Deus que não abandona o mundo que criou, mesmo que este volte as costas ao seu Criador. E dizem-nos que Deus se preocupa tanto com a humanidade que se predispõe a enviar-lhe mensageiros e guias que a conduzam à grande meta do bem e da salvação.

 

A primeira leitura refere o caso paradigmático do profeta Samuel, nascido de uma mulher considerada estéril. O Povo da Aliança havia-se afastado do seu Senhor, a ponto de se entregar ao culto de Balial e a toda uma série de maldades e injustiças. Mesmo assim, Deus não o abandona. E manda-lhe Samuel que conduzirá o povo a uma reorientação de vida segundo os valores da fé e da lei.

 

Por sua vez, o Evangelho que escutamos fala-nos da dádiva maior de Deus, feita por intermédio de uma virgem: o seu próprio Filho, Jesus Cristo, reconhecido por Zacarias como o “Salvador poderoso” que fará com que possamos “servir a Deus sem temor […], em santidade e justiça na sua presença, todos os dias da nossa vida” (Lc 1, 69.74). Esta iniciativa santificadora de Deus está bem presente nas palavras do Anjo na Anunciação a Nossa Senhora: “O Espírito Santo virá sobre ti; a força do Altíssimo estabelecerá sobre ti a sua sombra. Por isso, Aquele que vai nascer é santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35). O Espírito de santidade, que já actuara na Criação do mundo (cf Gen 1, 2), agora, torna presente a acção eficaz de Deus no meio do seu povo para que este se torne sua pertença total e exclusiva. Eis, pois, o plano de Deus para o mundo, para o nosso mundo, e a vocação mais profunda dos homens e das mulheres que o constituem: reorientarmos o trajecto da nossa vida pelo horizonte de Deus e, em Jesus Cristo, deixarmo-nos tornar santos como Deus é santo (cf Mt 5, 48).

 

São Paulo compreendeu isto muito bem. Na passagem da Carta aos Romanos lida como segunda leitura, refere um “desígnio” de Deus: o de nos deixarmos transformar para passarmos a ser “uma imagem idêntica [à de Jesus], à do Filho de Deus, o primeiro entre muitos irmãos” (Rom 8, 28-29).

 

Caros cristãos, irmãos na fé e meus companheiros desta peregrinação, ser santo ou deixar que a santidade de Deus penetre na nossa vida também parece constituir o cerne e o centro da mensagem de Fátima. Os contínuos apelos à oração e à penitência feitos quer por Nossa Senhora, quer pelo Anjo, têm sempre um fim em vista e uma promessa: a reparação dos pecados que ofendem o plano de Deus para o mundo e a conversão dos pecadores, garantia de uma nova ordem social, expressa na paz e nos valores espirituais, simbolizados no triunfo de Cristo e do Imaculado Coração de Maria sobre o mal. Assim o notou a Irmã Lúcia quando, comentando as palavras do Anjo, na 2ª Aparição, que mandou aos pastorinhos rezar, rezar muito e oferecer constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios, escreveu: “Estas palavras do Anjo gravaram-se em nosso espírito como uma luz que nos fazia compreender quem era Deus, como nos amava e queria ser amado, o valor do sacrifício e como lhe era agradável e como, por atenção a ele, convertia os pecadores” (Irmã Lúcia, Quarta Memória).

 

Falar, hoje, em reparação, em sacrifício e em pecadores pode não ser a linguagem mais entusiasmante para muitos. Mas, curiosamente, é a linguagem da Igreja. O Concílio Vaticano II, modernidade e actualidade máxima da vida eclesial dos nossos tempos, indica esta via: “A Igreja, que acolhe no seu seio santos e pecadores, e é, por isso, simultaneamente, santa e necessitada de purificação, avança continuamente pelo caminho da penitência e da renovação” (LG 8). E o Catecismo garante: “A Igreja, unida a Cristo, é santificada por Ele; por meio d’Ele e n’Ele torna-se santificadora” (CIC 824). O que traz consequências. Eis algumas: aquilo que a Igreja tem de próprio –e não nos esqueçamos que ela também é constituída por nós, os que nos encontramos neste recinto- é ser santificada e santificadora; pertencer a ela equivale a comprometermo-nos na santidade e a «revelar» aos outros esta sua faceta; a santidade é direito e dever de todos, pois não é apenas para privilegiados, como não é um opcional; e, fundamentalmente, a santidade é acção de Deus em nosso favor. É que toda a iniciativa é divina, como foi iniciativa divina enviar Samuel e Jesus Cristo. De nós apenas se exige abertura e colaboração. É como quando, nos gélidos dias de inverno, queremos aquecer a casa: bem pouco valeria abrir as portadas das janelas se o sol não brilhasse. Mas também, sem as abrirmos, o sol não entra.

 

Caros peregrinos, a santidade é, hoje, produto raro no nosso mundo consumista e materialista. Por isso, é também o mais valioso. Nesta Peregrinação Aniversaria, comprometamo-nos com ela. É também isso que pedem os Bispos de Portugal, num documento, datado de Abril do ano passado, aliás no seguimento de milhares de achegas para renovação da vida religiosa do nosso país. Vale a pena transcrever a primeira proposta porque constitui um reconhecimento dos meios concretos de santificação: [Propomo-nos] “formar comunidades assentes no primado da graça, da contemplação, da comunhão e da oração, sabendo todos […] que o essencial da vivência cristã […] depende sobretudo da transformação da nossa mente e da conversão do nosso coração operadas pela acção da graça de Jesus Cristo, que disse: «Sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5). Neste sentido, queremos intensificar a oração pessoal e comunitária, dar a todas as acções litúrgicas a dignidade que lhes é devida, valorizar a celebração dos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação, criar grupos de escuta e partilha da Palavra de Deus”.

 

O lema desta peregrinação de Setembro é a conhecida pergunta feita aos pastorinhos: “Quereis oferecer-vos a Deus?”. Ora, o que é a santidade senão esta confiança filial em Deus a ponto de nos oferecermos a Ele, de nos colocarmos nas suas mãos sem reservarmos nada para nós mesmos? É isto o que se requer de nós. E é a graça de correspondermos a este desígnio que nós pedimos a Nossa Senhora.

 

Manuel Linda