Caminhar na vida de rosto voltado para Deus e para os irmãos

Por esta altura, nas nossas dioceses, é costume divulgar-se o chamado “Plano Pastoral”, instrumento de orientação que concede unidade à acção religiosa e nos leva a sentirmo-nos igualmente responsáveis nos assuntos da fé. Também eu o venho fazer, embora de forma porventura mais humilde.

  1. Sob o signo do centenário de Fátima

Em sintonia com a Igreja que está em Portugal, este novo ano religioso será marcado pelo centenário das aparições de Fátima. Vamos tê-lo sempre presente. Mas, especialmente no contexto da nossa Peregrinação Militar Nacional. Por essa altura, tentaremos realizar um qualquer evento que leve a uma tomada de consciência, por parte da família militar e policial, de que o tema da paz, estruturante nos acontecimentos da Cova da Iria, nos diz muito respeito. E tentaremos que Forças Armadas e de Segurança de outros países, particularmente da lusofonia, venham, connosco, rezar à Mãe de Jesus e Mãe da Igreja.

Como sabemos, antes das manifestações de Nossa Senhora aos pastorinhos, verificaram-se outras aparições daquele que se designou por “Anjo da Paz” e “Anjo Custódio de Portugal”. Logo na primeira, na primavera de 1916, quando o mundo se debatia com a “carnificina inútil” da I Grande Guerra, foi dito aos videntes: “Não temais. Sou o Anjo da paz. Rezai comigo”. Os estudiosos da mensagem de Fátima chamam a atenção para estas três pequenas frases que vão como que balizar tudo o que se iria seguir, em Fátima: o anjo reconhece que há medos, neste mundo instável e violento; mas a paz é possível e há pessoas que se dedicam à sua construção e defesa; para isso, é necessário que não nos fechemos em nós, mas fixemos o nosso olhar em Deus de tal forma que permitamos que Ele nos transforme com a sua graça e, por nós, transforme o mundo. Quando se apela à oração, aponta-se para isso mesmo: deixar de nos centrarmos em nós, esquecendo-nos de Deus, para voltar para Ele o nosso olhar.

  1. Conversão é olhar de frente para Deus

No diálogo de Nossa Senhora com os pastorinhos está sempre presente esta tónica da necessária saída de nós para nos abrirmos ao amor misericordioso de Deus. Logo em Maio, pergunta aos três pequenitos se se querem oferecer a Deus pela conversão dos pecadores. E eles entendem: o pecador é o que vive nas suas loucuras e na sua auto-suficiência e volta as costas a Deus. Por isso, «converter-se» significa reorientar a vida: olhar de frente o Mistério ao qual se voltou costas.

É esta, também, a reorientação que nós e o nosso mundo temos de fazer. Hoje e sempre. Mas particularmente neste tempo que vive uma cultura por muitos classificada como «antropologia radical»: cercamo-nos de bens materiais, com eles construímos um castelo à nossa volta e julgamos que não temos necessidade de mais nada, pois cremo-nos protegidos por essa sólida fortaleza. E pensamos só em nós e em mais ninguém. Mas a realidade do dia-a-dia mostra que estas fortalezas se desmoronam como um baralho de carta.

  1. Em Deus, superamos os nossos dramas

O Papa Francisco não se cansa de nos alertar para isso. Previne-nos para a mentira e para o perigo de imaginarmos que não somos seres de relação: com Deus e com os outros. E, há tempos, proferia uma afirmação forte, na qual devemos reflectir: “Um antropocentrismo desordenado gera uma sociedade desordenada”.

Não há dúvidas. Muitos dos nossos dramas –falta de esperança, tristeza existencial, suicídios, recurso a drogas e álcool, violência estrutural, corrupção, cultura do «salve-se quem puder», instabilidade familiar, divórcios, incapacidade de educar os filhos, abandono dos mais velhos e doentes, desprezo dos que não podem produzir, remorsos e problemas de consciência, fácil recurso a curandeiros e bruxos exploradores, alguns sobre-endividamentos, etc.- são a causa e a consequência do nosso individualismo extremo que nos fecha a uma relação harmoniosa com Deus e com os outros. Por isso, só recuperando esta relação seremos capazes de equilibrar as nossas vidas e a vida do mundo. Mundo que nunca teve tanto bem para oferecer, mas que, entretanto, globalizou a instabilidade, os medos e as ameaças sectárias. Numa palavra: está a impor o ódio, o terrorismo e a guerra onde nós imaginávamos que só a paz imperaria. Oxalá, ao menos, nos faça acordar para a realidade.

  1. O exemplo da Rainha Santa Isabel

Para ilustrar isto, gostaria de chamar a atenção para uma mulher extraordinária que, por sinal, é a Patrona da Administração Militar: Santa Isabel de Portugal. Foi beatificada em 1516. Estamos a comemorar, portanto, os quinhentos anos da sua elevação às honras dos altares. Isto é, o ter sido apontada aos crentes como modelo a imitar.

Não vou referir a sua vida, muito rica de ensinamentos. Creio que ela é bem conhecida. Mas atrevo-me a chamar a atenção para algumas facetas da sua espiritualidade: era uma mulher de paz e uma pacificadora nata, numa altura difícil em que as guerras civis foram ou estiveram para ser originadas por membros da sua própria família, concretamente o marido e o filho; nutria uma especial devoção à Eucaristia e a Nossa Senhora, aliás, de acordo com a maneira franciscana de viver a fé que ela admirava tanto que acabou por se fazer clarissa, em Coimbra; alimentava a fé a partir do que hoje chamaríamos «religiosidade popular», feita de devoções, peregrinações, visitas a santuários, etc., a ponto de realizar duas peregrinações a Santiago de Compostela; mas o que nos ficou mais gravado na memória foi a sua caridade e extrema dedicação aos pobres de que o “milagre das rosas” funciona como expressão poética.

 

  1. As cinco áreas estruturantes do nosso plano pastoral

Convido os cristãos do Ordinariato Castrense a imitá-la ao longo deste ano pastoral. Nestas cinco vertentes referidas: sermos pessoas de paz ou gente simpática que sabe dialogar com os outros, mormente na família ou com os camaradas; frequentadores da Eucaristia, especialmente a dominical; devotos de Nossa Senhora, verdadeiro modelo dos crentes; sem vergonha de mostrarmos publicamente a fé, como ela nunca teve; e muito sensíveis à pobreza, a todas as formas de pobreza.

Se o nosso Plano Pastoral passa por aqui, peço, de forma directa, aos capelães, aos conselhos pastorais e outros agentes de evangelização que, com acrescido afinco, se empenhem nestas causas e programem as suas actividades tendo-as presentes. Tentaremos acções de evangelização no interior das Unidades ou, se tal não for viável, que alguns militares participem naquilo que as dioceses locais organizarem: Cursilhos de Cristandade, Cursos Alpha, acções da pastoral juvenil e familiar, retiros, movimentos eclesiais, etc. Continuaremos com a celebração da Eucaristia em cada capela/Unidade, pelo menos num dia por semana. Não descuidaremos a devoção a Nossa Senhora, seja na celebração das suas festas, em possíveis actos típicos do mês de maio, seja na organização de peregrinações aos santuários marianos locais. Haverá em todas as Unidades uma acção sócio-caritativa: recolha de alimentos ou brinquedos, loja solidária, tômbola de caridade, dádiva de sangue, etc. E tudo isto nos projectará para um momento alto da nossa vida eclesial no Ordinariato Castrense: a Peregrinação Nacional a Fátima que, neste centenário das aparições, se deseja mais participada numérica e intensamente.

Invoco a Mãe de Deus: seja ela a estrela que nos vai guiar ao longo deste ano. E seja, também, o regaço que nos dá conforto e segurança. Mas invoco também Santa Isabel de Portugal e esse rosto da alegria da santidade que é a «nova» Santa Teresa de Calcutá: elas nos obtenham a força para sairmos de nós mesmos, do que julgamos ser o nosso núcleo de conforto -mas que é falso- e nos façam caminhar na vida de rosto voltado para Deus e para os irmãos.

Bom ano!

Lisboa, 4 de Setembro de 2016, dia da canonização de Santa Teresa de Calcutá

O vosso bispo e irmão,

Manuel Linda