O CORONAVIRUS E O PECADO

No trágico momento que o mundo está a viver, parece haver já “dados” que nos consentem estabelecer algumas ligações com a mais antiga e universal tragédia vivida pela humanidade, cuja origem está descrita no texto sagrado,em Gn 3, 1-24. Referimo-nos, pois, ao «pecado original».

Em ambos os casos o da disseminação do pecado e o da contaminação pelo vírus atual , intriga a presença ativa do elemento animal: a serpente que seduz a humanidade e o coronavírus que, ao que tudo indica, parece ter tido origem num animal infetado, tendo transitado para um primeiro ser humano, que o transmitiu a outros.

Mas o que nos deixa perplexos é a reutilização da fórmula própria da teologia do pecado original para descrever a dinâmica do coronavírus e que São Paulo tão bem explicita nos seguintes termos:Por isso, tal como por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte atingiu todos os homens, uma vez que todos pecaram” (Rm 5,16). São Paulo faz uma nítida referência à solidariedade entre todos os seres humanos, pois aquilo que um vivencia ou toca passa a ser vivenciado ou tocado pela humanidade no seu todo.

Nem todos os dias é para nós clara esta relação estreita entre todos. Contudo, se nos debruçarmos um pouco sobre a condição humana, veremos que partilhamos todos um destino comum, temos todos a mesma origem e em todos nós vive essa necessidade premente de partilhar com os demais as nossas experiências, seja para o bem, como para o mal. Na verdade, o que a um diz respeito terá uma qualquer incidência sobre todos. Somos solidários tanto na alegria como na desgraça. E é assim que o texto bíblico descreve a desolação primordial do ser humano, vencido pelo desejo de ser igual a Deus. Em Adão e Eva está representada a totalidade da humanidade, porque o mesmo desejo de autossuficiência que os levou à desobediência para com Deus vive na natureza de cada ser humano, como um vírus terrível.

Neste momento, todos somos pecadores pelo pecado de Adão, como todos somos potenciais infetados pela infeção que um ser humano anónimo sofreu.

No mesmo texto bíblico, a serpente representa o poder sedutor do mal que leva à perdição do ser humano. Também o vírus representa para nós um perigo evidente que põe em risco a nossa própria sobrevivência. A natureza não nos é apenas favorável. Existem nela forças hostis cuja ação constitui uma ameaça para a humanidade. Só vivendo solidariamente poderemos contribuir para a derrota dessas forças adversas.

Porém, o que absolutamente não deve ser replicado, sob pena de nos fragilizarmos desmedidamente, é a reação de Adão e Eva face à verdade dramática do ocorrido: iniciaram simplesmente um penoso processo de acusação mútua. Adão culpou Eva de ter sido a causa da sua perdição e Eva, sem mais demora, procurou desresponsabilizar-se atirando sobre a serpente a totalidade da culpa. Foi esse um dos pontos mais frágeis de toda aquela tragédia. Em vez do reconhecimento da corresponsabilidade relativamente à calamitosa decisão tomada, a acusação mútua toma a dianteira. É o salve-se quem puder que, infelizmente, vamos testemunhando, aqui ou ali, através de atitudes pouco solidárias.

Mas a mensagem que hoje gostaria de vos deixar é de esperança e não de culpabilização ou de abatimento. Vivamos na esperança da continuidade da história e com São Paulo digamos “se pela falta de um  e por meio de um  reinou a morte, com muito mais razão, por meio de um , Jesus Cristo, hão de reinar na vida aqueles que recebem em abundância a graça e o dom da justiça.” E mais “como pela falta de um só veio a condenação para todos os homens, assim também pela obra de justiça de um só veio para todos os homens a justificação que dá a vida(Rm 5, 17-18).

Embora profundamente desfigurada pelo pecado, a humanidade pôde, através de Cristo, vislumbrar um destino de libertação e de redenção global. A última palavra da história humana não foi dada à loucura humana e à perversão do seu coração, mas ao amor infinitamente misericordioso de Deus, que a nós chegou pela palavra, pelos gestos e pelo destino de Jesus de Nazaré. Por isso, não temos motivos determinantes para nos deixarmos vencer pelo desespero e pela tristeza. Em tempos de solidão espiritual, contemplemos Cristo ressuscitado, que o amor infinito do Pai resgatou da morte. Se Cristo venceu o pecado e a morte, como não ter a certeza que Ele hoje nos salva desta calamidade? Parafraseando São Paulo: “como foi por um homem que a infeção entrou no mundo, também será pela ação d’Aquele que venceu o pecado e a morte que advirá a salvação.

É essa a razão pela qual esperamos de Deus a última palavra sobre a história global e pessoal, na certeza de que não há vírus nem pandemia que possa ocultar esse amor desmedido que Ele nos votou sem que nós alguma vez o houvéssemos merecido.